O cinema francês está em grande. Ao mesmo tempo que se estreia em sala o alucinante Titane, filme fantástico de Agathe Rousselle que recebeu a Palma de Ouro em Cannes, a Medeia repõe em sala, em cópia restaurada, seis filmes de Éric Rohmer, a segunda parte do ciclo iniciado antes do verão. Por aqui não se encontra grande filiação. A fantasia visual de Rousselle está mesmo nos antípodas do tratamento literário e sóbrio de Rohmer. Titane aproxima-se mais de Cronenberg, Tarantino ou Ridley Scott, ou, mais do que isso, é o filme que Leos Carax nos estava a dever só que, em vez disso, nos trouxe o insonso musical Annette. Titane talvez seja uma das maiores experiências audiovisuais do ano e tem entrada provável para a galeria de filmes de culto.
Mas passemos adiante, porque o culto de Rohmer é mais antigo e consolidado. Rohmer inventou a sua própria nouvelle vague. Se a primeira parte deste ciclo situava-nos nos anos 60, aqui saltamos diretamente para as comédias e provérbios dos anos 80. Mudam-se os tempos, não se mudam necessariamente as vontades, mas estas adquirem novas formas e novos contextos. Há uma atenção precisa ao tempo que corre, aos sinais sociais e contextuais, também nesta perspetiva é Rohmer um moderno. Moderno porque não tem medo do retrato localizado no espaço e no tempo, mas que nem por isso deixa de ser universal, pelas leituras abrangentes e paralelas que se podem fazer da sua obra.
Rohmer é um grande ensaísta sobre o relacionamento amoroso e os novelos de paixão. Só que, em vez de criar longas dissertações sobre o tema, coloca as questões, de forma aberta e explícita, no diálogo e comportamento das suas personagens. Os filmes têm mais palavra do que ação, personagens autoconscientes que se expõem e analisam em diálogo umas com as outras, na construção de quadro tipos, de pequenas histórias exemplares, que nos ajudam a melhor entender, universalmente, os mistérios do relacionamento humano.
A Mulher do Aviador, o primeiro desta série, é o de argumento mais engenhoso. O filme no seu todo é uma dissertação sobre o amor, o ciúme, a jovialidade. Há uma sucessão de amores não correspondidos que redunda numa angústia geral. Os próprios sentimentos são expostos e debatidos e de certa forma hierarquizados. Mas o ponto mais interessante talvez seja mesmo a caminhada da personagem de François que, sem ser demasiado obsessivo, torna-se um stalker não premeditado.
Em Pauline na Praia, o mais conhecido dos títulos, há também um jogo de incorrespondências amorosas: Pierre ama Marion que ama Henri que não ama ninguém. E depois há Pauline, na pureza pré-adolescente (uma das obsessões e fraquezas de Rohmer) que, de certa forma, tem uma história de amor mais madura do que a dos adultos que a rodeiam.
Em O amigo da minha amiga, o mais recente dos seis filmes, essa casual incorrespondência amorosa é resolvida em duas penadas, através de uma hábil troca de casais. Aqui está em debate a lealdade e fidelidade, assim como a casualidade das relações e os ínvios caminhos do destino.
A lealdade, a aceitação do outro e a fidelidade também são temas base de Noites de Lua Cheia. Aqui encontramos também um casal disfuncional, em que ela almeja uma liberdade que para o outro se confunde com libertinagem. Desde início que percebermos que é um caminho aventuroso por onde espreitam inúmeros perigos. Mas Rohmer inverte o texto: e quando a mulher finalmente trai é porque ela própria foi traída.
Em O Bom Casamento há um outro pressuposto, igualmente forte. Farta de uma relação frívola com um homem casado, Sabine decide ela própria casar-se, mesmo não tendo pretendente. Há assim uma racionalização extrema do amor em prol de um conceito fora de moda de futuro. Só que essa racionalização calculista do amor é algo com que Rohmer nunca pactua. E o preterir da espontaneidade amorosa e passional em nome de um desígnio da razão não dá, naturalmente, o melhor resultado.
E se em O Bom Casamento há uma luta por um ideal de vida, uma imposição racional que pretende comandar sentimentos e vontades, em O Raio de Verde há, de certa forma, algo diverso. Aqui Rohmer defende tese semelhante mas usando um ângulo inverso. Saída de uma relação, sentindo-se sozinha, Delphine tem como plano encontrar novo parceiro. Mas tudo se parece desmoronar a cada frágil tentativa. Mais do que obstáculos do meio, Delphine depara-se com uma luta anterior, há algo que não a permite ir além da sua vontade, arriscar o desconhecido, até ao dia em que…
Neste seis filmes, como em grande parte da sua obra, Rohmer revela-se um dos mais extraordinários ensaístas sobre o amor, colocando as personagens em situações-tipo, para nos confrontar com opções e condições da natureza humana. Os filmes, de alguma forma, são todos parecidos e diferentes entre si. Devem ser lidos como capítulo de uma imensa e genial obra completa.