Publicado em 2012, A Instalação do Medo conhece agora uma 2ª edição, depois de ter sido levado ao palco pela mão de Jorge Listopad (foi a sua última encenação) e pelo Festival de Teatro de Avignon, e de a sua edição francesa, de 2017, ter recebido o Prémio Utopiales para o melhor romance estrangeiro (Cf. Nota do Autor”, pp. 191 ss.).
Desde a sua primeira novela, Hotel Lusitano, publicada em 1986, Rui Zink (RZ) tem-se afirmado como um verdadeiro escritor de ideias, isto é, de uma literatura que, como o ensaio, iluminando os grandes temas do presente à luz de um novo horizonte mental e de novas interpretações, nasce tanto para interrogar e duvidar quanto para esclarecer e afirmar. Neste sentido, a sua obra subverte o atual paradigma literário dominante, fundado ora na exploração da pequena história realística de carácter sentimental, como se o escritor fosse um mero fotógrafo do mundo, ora na intelectualização letrada das relações sociais, como se o escritor se sentisse obrigado a provar pertencer aos sábios do mundo, que só outros sábios entendem, não o povo leitor de todos os dias.
Diferentemente, RZ transpõe o espírito inquiridor do ensaio para o seio do romance, indagando subterraneamente verdades tão simples como a igualdade entre os homens, a existência de guerras, o destino de Portugal, o domínio da ignorância pela qual os Estados controlam os cidadãos. Neste sentido, as suas novelas e romances obrigam o leitor a pensar e, como é habitual na totalidade da sua obra, dominada pela ironia, a sorrir. Justamente, pensamento inquiridor e sorriso irónico apresentam-se como as duas colunas maiores da sua arte literária. Assim, não receia “descer à arena” e “sujar as mãos” (Antero de Quental), tomando posição pública, como sempre o fizeram os grandes escritores portugueses, de Gil Vicente a José Saramago.
Em A Instalação do Medo, escrito no tempo da troika e de Passos Coelho, RZ intenta desmascarar o modo ora subtil, ora violento, como o medo social se instalou em Portugal, a ameaça do desemprego, a falência de empresas, a passividade com que a população aceitou a “enorme” carga fiscal imposta, como se se sentisse culpada, tivesse sido ela e não os Governos a causadora dos desequilíbrios financeiros do Estado. Como tornou claro em entrevista ao Jornal de Notícias: “As mentalidades levam muito tempo a mudar. Portugal esteve séculos vivendo com o medo e com uma estranha culpabilização da vítima: [se és perseguido] ‘Alguma fizeste’. O conformismo está-nos no ADN, por isso somos tão violentos nas redes sociais e na estrada: libertamos a fera açaimada” (11 de julho de 2021).
Dividido em quatro partes, A Instalação do Medo, escrito maioritariamente em forma de diálogo, com a descrição e a narração em frases curtas, semanticamente diretas, dispensando a eloquência, é intercalado com exposições em itálico de formas diversas do medo [a floresta e os adultos para a criança (“Para que são esses dentes avô?”, com outra mancha gráfica), os novos habitantes do bairro para os idosos, as novas doenças – o vírus ameaçador, repercutindo o medo da opressão da troika -, a viagem por regiões desconhecidas, os assaltos na cidade]. É um autêntico catálogo, por assim, dizer, das formas assumidas pelo medo na atualidade, inclusive o recente medo do COVID 19, este mais aterrador devido à sua invisibilidade e uma paradoxal ubiquidade.
A Instalação do Medo pode ser estatuído, literariamente, como um todo, como um símbolo e uma alegoria ao mesmo tempo. Símbolo do mal social dominante nas atuais sociedades, das desigualdades económicas e da injustiça prevalecente. Alegoria do medo de que as elites se servem para mascarar a opressão sobre os deserdados dos privilégios que o progresso traz e dos velhos que habitam em bairros degradados.
Alegoricamente, é o inverso de Ensaio sobre a Cegueira. Saramago evidencia a crueza da atual sociedade como resultado de uma doença inexplicável, fazendo cair a película de moralidade existente no homem; Zink evidencia a mesma sociedade através do humor: dois funcionários, Carlos e Sousa, vão proceder a uma instalação do medo como se instalassem uma máquina de lavar, uma televisão ou uma conduta de gás urbano. A dona de casa desconhece essa obrigação e eles explicam-lhe que o fazem em nome do “bem comum” (pp. 12 e 17) e que é absolutamente necessário sentir o medo para se normalizar o todo da sociedade, é mesmo uma “disponibilidade mental” e “moral” (p. 19). O medo e o “mercado” (pp. 53 ss.; pp. 79 ss.) são os grandes reguladores sociais, o primeiro (o chicote ou o pau) contém ou suaviza as revoltas sociais e os comportamentos individuais marginais; o segundo (a cenoura), mobiliza as populações disponibilizando os entreténs que “distraem” as populações, forçando-os a não pensarem.
Neste romance, a frase de RZ (autor facilmente identificado com o narrador), para além de ser breve e referencialmente direta, é envolvida por um manto humor devido ao seu sentido disparatado, forçando, pelo absurdo, o leitor a sorrir. É a ironia presente em quase todos os seus romances, registando algo de grave e sério cujo contexto aponta para o seu desmascaramento.
Será de facto o medo instalado pelos dois funcionários? Ficará passiva e resignada a dona de casa passiva? O leitor descobrirá no final.
Ser forçado a pensar e a sorrir – eis o que o leitor recebe dos textos de Rui Zink, de quase todos. E a pensar e a sorrir, constata-se ser A Instalação do Medo um dos romances mais politicamente empenhados dos últimos anos.