Derrotados, mas também vencedores. Assim são as personagens do romance de Luis Sepúlveda, A sombra do que fomos. O escritor chileno, que é uma das caras mais conhecidas da literatura de expressão iberoamericana, regressa ao trágico golpe que derrubou Salvador Allende, em 1973, para nos oferecer uma crónica da sua geração. E de uma juventude que, de um momento para o outro, se desvaneceu ao som das balas.
Um dia, de passagem por Viana do Castelo, Luis Sepúlveda visitou a oficina de um dos vários ourives da região. Há muito que tinha vontade de desvendar os segredos daqueles brincos, pendentes e corações de filigrana.
Aproveitando a disponibilidade do mestre, pediu que lhe mostrasse por onde começava a fazer aqueles magníficos trabalhos. O ourives deu-lhe uma lupa, disse para estar atento, pegou num cordão, atirou-o para cima da mesa e disse: «Já está». Perplexo, o escritor chileno contrapôs: «Já está? Então e qual é o passo seguinte?». A resposta não podia ser mais elucidativa: «Isso agora só as mãos é que sabem». Nunca mais esqueceu aquela sabedoria.
E nela encontra a melhor imagem para a Literatura. Acima de tudo, considera-se um «artesão» que aos poucos vai desfiando uma história que dita as regras em que quer ser contada. Uma palavra puxa a outra, uma frase antecipa a próxima, seguindo a torrente de vida que emana da pena do escritor. Assim aconteceu com muitos dos seus best-sellers, como O velho que lia romances de amor, História de uma gaivota e do gato que a ensinou a voar ou Diário de um killer sentimental, com os mais de 100 contos e relatos breves que tem no seu escritório, em Gijon, onde vive, e com o novo livro que acaba de ser lançado em Portugal pela Porto Editora. Distinguido em Espanha com o Prémio Primavera de Romance, A sombra do que fomos narra o reencontro de quatro amigos depois de muitos anos. É a história da sua geração, daquela que lutou por um ideal um Chile livre, democrático e mais justo e que se viu forçada ao exílio depois do golpe militar de Augusto Pinochet.
E tudo terá começado num almoço entre amigos. Luis Sepúlveda olhou para os seus camaradas, antigos guerrilheiros e anarquistas, incansáveis lutadores, alguns dos quais procurados pela ditadura «vivos ou mortos». Um deles com dificuldades em andar, por ter duas balas dentro do corpo, em local inacessível. No entanto, ali estavam, a preparar a refeição, a assar a carne e a temperar a salada. Pouca atenção prestavam à importância que tiveram no passado ou ao sofrimento que suportaram. Conservavam intacta a sua integridade e capacidade de rir de si próprios. «Foi aí que me lembrei de contar uma história com personagens parecidas connosco», diz Sepúlveda.
Jornal de Letras: Como foi a sua infância no Chile?
Luis Sepúlveda: Muito feliz. Cresci num bairro tradicional de Santiago. Foi uma infância de livros, já que os meus pais e avós paternos eram bons leitores. Um dos momentos que mais recordo é o dia em que íamos à livraria fazer as ‘compras do mês’. De resto, tive uma infância normal. Estudei sempre no ensino estatal, do liceu à universidade.
A intervenção política já estava presente na infância?
Sim. Houve uma influência muito forte do meu avô, um anarquista que teve uma vida extraordinária. Fugiu de uma prisão em Almería, em Espanha, esteve nas Filipinas, depois no Equador, onde fundou o movimento anarquista. Aí voltou a ser preso e a conseguir fugir, para chegar ao Chile. Uma figura maravilhosa. Toda a minha família era de esquerda. O meu pai era um militante comunista da velha escola, tal como os meus tios. Nunca faltávamos ao desfile do 1.º de Maio. E comecei cedo a militar na Juventude Comunista.
A partir de que idade?
Dos 13, 14 anos. Na companhia de outros camaradas, ia com um carro e duas grandes bandeiras vermelhas para a saída das fábricas exercer a nossa militância. Éramos uma espécie de evangélicos em versão vermelha… Havia uma mística especial. Além disso, um jovem comunista tinha de ser o primeiro na escola e dar o exemplo. O prestígio da causa estava em jogo.
Imagino que em sua casa se discutisse muita política às refeições.
Mais do que discutir, eram sessões em que se imaginava um futuro melhor. Na minha casa, havia uma grande cordialidade. O meu pai nunca gritava. «Só levanta a voz quem não tem argumentos », dizia. Este espírito e carácter dialogante marcaram-me. Assim como as constantes preocupações sociais.
A escrita surgiu para servir a política ou independentemente?
Sempre separei as duas coisas. Claro que, no início, era muito mais activo na política do que na literatura. Mas também comecei cedo a escrever poesia, depois contos, teatro, um pouco de tudo. Aos 16 anos já trabalhava como jornalista.
Como surgiu esse emprego?
Já sabia que a escrita seria a minha vida. Um dia pedi ao meu pai que falasse com um dos muitos jornalistas que frequentavam o seu restaurante. E fui parar ao El Clarín de Chile, um jornal de esquerda, o maior do país na época, com meio milhão de tiragem. Lembro-me do director perguntar onde queria escrever. «Na Cultura», respondi-lhe de imediato. Ao que ele me disse: «Não, isso é um prémio. Vais começar pela secção policial». Acompanhava todos os dias a ronda do carro de patrulha da polícia criminal. Vi pessoas mortas, assassinadas, degoladas, de tudo. Ao final do dia, tinha de ir para o jornal, antes do fecho, às duas da manhã, escrever o texto. Tive a sorte de ter como chefe de redacção uma lenda do jornalismo. Dizia-se que ele nunca dormia, pois era o primeiro a chegar e o último a sair, e que se alimentava de café e tabaco. Ele lia os meus textos e comentava: «Isto não está bom, não é jornalismo, é literatura. Tens de o reescrever».
Cronista do seu tempo
À sua semelhança, as personagens deste romance também denunciam a omnipresença da política. Nos anos 60/70 era impossível escapar à sua influência?
Completamente. O Chile era um país especial na América Latina. Tinha grandes desigualdades sociais, mas ao mesmo tempo uma classe operária muito forte, vigorosa e intelectualmente rica, herança dos primeiros movimentos proletários. Havia uma burguesia progressista que permitia, por exemplo, uma escola laica, pública e gratuita. Era um país com esperança e com conquistas sociais que precisavam de ser mantidas, defendidas e aprofundadas. Acima de tudo, tínhamos uma grande tradição democrática. Até 1973, o nosso parlamento funcionou 138 anos sem interrupções. Melhor só em Inglaterra.
Isso faz do golpe militar de Pinochet algo ainda mais trágico e chocante?
Exactamente. Foi o fim de uma forma de vida. Ninguém imaginava que ia haver um golpe militar. Estávamos convencidos que as nossas forças armadas eram democráticas, não beligerantes, que não se imiscuíam na vida civil. Equivocamo-nos.
É qualquer coisa impossível de esquecer?
Sim, embora já faça parte do passado. Um passado muito bonito, rico e vivo.
No entanto, para estas personagens parece o contrário. O golpe pode tornar-se uma obsessão?
Sou um cronista do meu tempo. E calhou-me viver uma época privilegiada. Nasci em 1949 e a segunda metade do século passado foi, para a América Latina, o epicentro do bem e do mal. Este é o meu primeiro livro que se passa inteiramente no Chile, na cidade de Santiago. As personagens são muito representativas da minha geração e das várias atitudes da época, desde os que tinham uma posição mais séria aos que defendiam uma solução global para o continente latino-americano, passando pelos radicais, que, completamente despegados da realidade, se imaginavam num filme. Mas em todos há um dominador comum: a determinação em participar na Revolução. Ninguém dizia «não» porque sabíamos que valia a pena. Se é verdade que a história oficial escrevem os vencedores, aos escritores cabe escrever a dos perdedores.
Há uma poética dos perdedores?
Há uma razão poética muito grande nos injustamente derrotados.
Em Portugal, no final do século XIX, um grupo de escritores apelidava-se de Vencidos da Vida. O mesmo se passa com estas personagens e com a sua geração?
Foram vencidos em muitas causas, mas ganharam definitivamente a batalha da vida. Porque apesar das derrotas conservaram a dignidade e o humor. Conseguem rir-se de si próprios. Fizeram coisas importantes, mas não são seres transcendentais. Jogaram tudo num determinado tempo e isso faz deles vencedores. Tentaram mudar a sociedade e não conseguiram. Porém, a sociedade também não os mudou. Continuaram os mesmos. O que aconteceu foi que no dia do golpe, em 1973, a nossa juventude acabou abruptamente. No meu caso, aos 23. Depois veio o pior, a prisão e o exílio. De um momento para o outro era necessário pensar como um homem de 40 ou 50 anos, conseguir sobreviver e organizar a resistência.
A viagem do exílio
Qual é a imagem mais forte que guarda do golpe militar?
São várias e passam na minha cabeça como um filme. Nesse dia 11 de Setembro de 1973 tinha a cargo, com outros companheiros, a defesa do abastecimento de água de Santiago, a 20 quilómetros do centro. O depósito já tinha sido atacado várias vezes, mas nem por isso tínhamos um armamento especial, apenas umas pistolas e espingardas de caça. Quando chegou o alarme do partido a dizer que estava em marcha um golpe, a primeira ordem que recebemos foi a de ficarmos onde estávamos. As horas passaram muito lentamente. Até que dissemos: que se lixe a água, vamos lutar por Allende.
Mas a cidade estava tomada pelos militares. Era impossível passar. Vimos e participámos em muitos tiroteios pelo caminho. A imagem mais forte é essa: o desejo de chegar. A um quilómetro do palácio La Moneda percebemos que a coisa era séria e que a missão dos militares tinha como objectivo espalhar o terror. Aí seguimos as palavras do último discurso de Allende. Era fundamental continuar vivo. E resistir.
Essa parece ser a lição da personagem principal deste romance: a Sombra. Como a criou?
A Sombra é uma metáfora da força que nos levava a agir. Muitas vezes perguntávamo-nos: Como sabemos tantas coisas? Os guerrilheiros chilenos não foram treinados em Cuba ou noutro país. Onde aprendemos a lutar? Quem nos ensinou? No fundo, foi a sombra que projectavam os que lutaram antes de nós, os fundadores do grande movimento operário do Chile. Na casa do meu avô, por exemplo, havia uma cadeira onde ninguém se podia sentar. Pertencia a Durruti, um anarquista que no início do século XIX andou de país em país a assaltar bancos. E ele aparece no romance. Tal como um companheiro seu, de quem pouco se sabe. Chateava-me pensar que ele pudesse ter morrido de velho. Por isso, criei-lhe uma morte causal, como deve ser a de todos os anarquistas. Algo que se torce no seu destino. É a Sombra.
Não há, por isso, um travo pessimista no título do livro?
Pelo contrário. As pessoas a quem está dedicado este livro continuam a projectar uma força boa e poderosa. A ditadura não a apagou. Ainda somos uma referência para as pessoas que prosseguem a luta por um Chile melhor.
Outro tema forte deste romance é o exílio. Como foi vivê-lo na primeira pessoa?
Do exílio nunca mais se volta. Na altura já tínhamos essa certeza. Conhecíamos a história dos exilados espanhóis, embora a ditadura franquista tenha sido mais longa. Ao sair do nosso país sabíamos que estávamos a iniciar uma viagem sem regresso possível.
Porquê?
Porque o país que deixámos para trás mudou rapidamente. A ditadura impôs o seu critério ideológico, a ausência de valores, matou tudo o que de belo existia. Por outro, porque nós próprios continuámos as nossas vidas nos países para onde fomos viver. Estudámos, trabalhámos, fundámos uma família, criámos amigos. Regressar ao Chile só por ser o país onde nascemos era um preço demasiado alto a pagar pelo universo emocional que entretanto conquistámos.
Seria um segundo exílio?
Quase. Além disso, depois da ditadura, ao visitar o Chile apercebemo-nos de que o país que tínhamos na memória era muito mais bonito do que aquele que realmente existia. E que mudar o país real já não era tanto um trabalho nosso, mas dos que vieram depois.
Segredos da avó
A colectânea de contos A Lâmpada de Aladino, lançada no ano passado, e A Sombra do que Fomos têm sido apresentados como o seu regresso à ficção. Trata-se mesmo de um regresso ou houve apenas um interregno voluntário?
Nunca deixei de escrever ficção. O problema é que os editores nem sempre percebem que os escritores não têm obrigação de lhes entregar um novo livro todos os anos. E a verdade é que eu demoro o tempo que quero. Não me deixo pressionar. É certo que antes de A Lâmpada de Aladino publiquei dois volumes de crónicas jornalísticas, mas continuei a escrever outras coisas.
O romance exige mais tempo?
Tenho a impressão que o romance é mais metódico. Um livro de relatos ou de contos vai-se escrevendo, mesmo sem sabermos se algum dia é publicado. A certa altura descobrimos que temos 10 ou 15 textos que permitem formar um volume. No meu escritório sou capaz de ter mais de 100 contos e relatos que nunca publiquei porque não sou capaz de construir um livro com eles. Isso também me aconteceu com a primeira colectânea que lancei depois de O Velho que Lia Romances de Amor.
Não sabia o que fazer, por isso peguei numa caixa de sapatos cheia de textos e entreguei à minha editora, dizendo-lhe: «Vê o que consegues fazer com isto». Com um romance é mais simples porque só começo a escrevê-lo quando tenho a história toda na cabeça.
É reconhecidamente um grande contador de histórias. Como é que decide as que são boas para contos, as que estão destinadas a romances e as que apenas se contam entre amigos?
É a própria história que diz como quer ser contada. A escrita tem esse poder revelador. Há coisas que estão difusas no início e que só se tornam claras quando se começa a escrever. Por isso deixo-me levar, inclusivamente na escolha do género literário que devo usar. E como trabalho em vários projectos ao mesmo tempo, há sempre um que se impõe.
Esses projectos influenciam-se mutuamente?
Às vezes. A sombra do que fomos, por exemplo, resolveu o problema do livro que estou a escrever neste momento. É um romance em que me proponho contar a história da militância chilena, desde 1968 a 1989. Tinha muitas páginas escritas, mas só ideias de capítulos. Ao fazer as correcções deste último livro percebi que a chave era o humor.
Será um olhar para o passado, como este?
Sim, mas de uma forma diferente. O ponto de vista é o de um casal de jovens que já nasceu no exílio. Estão em Berlim, porque se ofereceram para esvaziar uma casa que o pai de um deles tinha alugada, para assim ficarem um fim-de-semana sozinhos. À medida que arrumam a casa vão conhecendo o passado das pessoas que ali viveram. Mas mais do que o passado, o que eles descobrem é o futuro.
Quando é que percebeu que tinha essa vocação de contador de histórias?
Provavelmente, a minha avó foi determinante. Era uma senhora do País Basco, muito amorosa e terna. Desde pequeno que cultivava segredos comigo. Usávamos palavras na sua língua materna, o Euskera, que eu julgava que tinham um significado oculto, poético, maravilhoso o que nem sempre era verdade. Não havia noite em que não me lesse ou contasse um conto. Era uma grande efabuladora. Tudo tinha ou dava uma história, incluindo o açucareiro, que a minha avó dizia que de manhã estava vazio por causa de um duende. Cheguei a passar uma noite acordado só para o ver chegar. Foi um grande estímulo para a minha imaginação. Viveu até aos 102 anos. Todos os dias, às 11 horas, tomava um copo de vinho do Porto para abrir o apetite para o almoço. E, à noite, um conhaque para dormir bem. Era a sua receita da longevidade.