O Amor em Lobito Bay é a quarta recolha de contos de Lídia Jorge, depois de Marido e Outros Contos, de 1997, O Belo Adormecido, de 2004, e Praça de Londres, de 2008, a que se pode juntar duas histórias curtas que mereceram edição isolada: A Instrumentalina, em 1992, e O Organista, em 2014. “Em termos de género, o conto é um híbrido. Ele promove os dotes copiosos da narrativa mas dirige-se para a forma sucinta do poema. Gostaria que os meus contos, oscilando entre uma e outra forma, contivessem filmes de ação no seu interior, e ao mesmo tempo se aproximassem da música livre, sucinta, feita com um mínimo de palavras”, escreve a autora na contra capa deste volume. Ao JL, confirma a tendência de escrever e juntar contos entre romances. Absorvida na escrita de uma nova ficção longa, deixou de lado a árvore que a tem dominado para se dedicar aos ramos que surgem ao correr das experiências do quotidiano. É essa, de resto, a marca das nove histórias de O Amor em Lobito Bay: são enigmas, viagens, confissões violências retirados da vida. E convertidos, através de um fluxo verbal transformador, numa vontade de captar o tempo que já vivemos e o que se adivinha através da escrita.
Jornal de Letras: Nove contos que tomaram o lugar do diário, assim descreveu numa entrevista estes contos. A ficção curta substituiu o registo diarístico?
Lídia Jorge: Não se pode dizer que tenha substituído, porque são registos muito diferentes. Além da atitude fragmentária, o diário exige uma outra atenção: mesmo o que não é essencial é fixado. No conto, retém-se apenas o mais importante de determinados momentos. Quando associo estes contos a um diário é porque eles têm, de facto, a marca de um percurso. Provêm de acontecimentos que podia dizer biográficos, que ocorreram e se destacaram.
O que fez com que se destacassem?
Apresentaram uma espécie de face enigmática que não consegui resolver. Escrevo contos dessa forma: quando há um acontecimento ou um dado que não se resolve. Tenho a ideia que ao escrever me aproximo do que poderá ser uma solução. Na busca, cria-se um caminho. Não há desenlace, mas o percurso ilumina.
No conto Novo Mundo escreve: “No meio do enigma está o suspense, e no meio do suspense está a descoberta”.
Exatamente. A solução está no frémito do suspense, o que é sugerido noutra passagem: “Acredita que no meio da inteira disponibilidade existe sempre uma aventura para o espírito. E no meio do espírito está o coração de carne e sua loucura, enquanto músculo vivo.” A própria busca é, para mim, a solução. O caminho é o fim. É a este princípio que a escrita dos contos obedece. E a um outro, que esteve para servir de epígrafe ao livro. É um provérbio oriundo dos desertos: “Uma mulher contou um conto às nuvens e choveu durante três dias”. É uma espécie de testemunho vital.
Que corta a ligação entre o episódio biográfico e o resultado final?
Sim. Neste jogo, a transfiguração entre aquilo que se passa e o que se imagina depois é redentora. Os episódios que deram origem a estes contos foram, logo no início, aventuras de alma muito intensas, que em geral decorreram de testemunhos. Nasceram da voz dos outros.
Um tom de confissão percorre, efetivamente, todo o livro.
Motivado por encontros em espaços distantes e sobretudo incomuns, sem nada de turístico. São experiências singulares em situações inusitadas, como no caso do segundo conto, Overbooking, que recria a conversa entre dois desconhecidos, na qual um fala de um remorso sem remissão, do sentimento mais radical e duro que o acompanha. Mas ao falar em voz alta, a personagem (não o autor) encontra para si uma solução.
Tempos de violência
Usando a imagem do primeiro conto, podemos dizer que todas as personagens deste livro vivem o dilema de comer o coração da andorinha, de cair na violência ou ser capaz de a superar?
Foi por isso que senti que estes contos faziam um livro. Ainda tinha outro mas saía fora do conjunto.
Foi o primeiro, O Amor em Lobito Bay, a puxar os outros?
Sim. Primeiro, puxou os que já estavam escritos: O Tempo do Esplendor, Dama Polaca Voando em Limusine Preta e Um Rio Chamado Mulher. Depois, incentivou a escrita dos outros cinco, que seguiram idêntica direção. De vez em quando escreve-se sob uma mesma atmosfera. Senti que estes nove contos obedeciam a uma espécie de verdade temporal.
Se acertamos na matéria ficcional, conseguimos alargar o tempo, falar de uma época, do presente e antever ainda o que aí vem. Gostaria que estes contos fossem lidos assim, com as suas marcas cronológicas e datas, mas também com antecipação do que aí vem
Sabendo que sempre se mostrou atenta à História e aos seus movimentos, a violência que encontramos nestes contos está de alguma forma relacionada com a crise em que vivemos?
Quando acertamos na matéria ficcional, conseguimos alargar o tempo, falar de uma época, do presente e antever o que aí vem. Gostaria que estes contos fossem lidos assim, com as suas marcas cronológicas e datas, mas também como uma antecipação. Passagem para Marion, por exemplo, é um conto sobre o futuro que já nos toca.
Um futuro no qual a nossa dignidade está a ser posta à prova?
Pelo menos, em que uma gramática da violência nos quer padronizar e insensibilizar. Um futuro em que, desculpe-se o cliché, as pessoas são números ou meros fatores de produção. É essa a linguagem que encontramos no dia-a-dia, absolutamente cruel e verdadeira. Hoje, até os sentimentos humanos são incluídos nos contratos económicos. Num projeto de captação de petróleo, já se imagina que as multidões se vão amotinar e quantificam-se os seus prejuízos. Estamos no domínio do homem instrumental, sem que se perceba a sua finalidade. Passagem para Marion é uma revolta de um jovem que não aceita essas regras. No meio do deserto das emoções, apaixona-se por um animal. Fiel a um sentimento, destrói o que podia ser um futuro brilhante.
A estranheza dos lugares distantes
Todos os contos se passam em geografias distantes. Foram ditados por viagens?
Também, embora o sentimento que lá está, conduzido pela voz narrativa, seja português. Há nestes contos a ideia de que em sítios estranhos a confissão é mais provável e forte. Longe deparamo-nos com um espelho mais iluminado e que nos fala de outra maneira.
A distância é por si só personagem, acontecimento, aventura, que permite que enigma esteja presente. É propícia à revelação. Toda a Literatura é uma proposta de viagem que se cumpre num fluxo verbal criador.
A escrita muda nessa distância?
A distância é por si só personagem, acontecimento, aventura, que permite que enigma esteja presente. É propícia à revelação. Toda a Literatura é uma proposta de viagem que se cumpre num fluxo verbal criador.
No conto Um Rio Chamado Mulher essa fusão entre viagem e criação, realidade e literatura, está muito presente.
É o verdadeiro conto sobre a literatura, em que Old Man, de Faulkner, acaba por ser vivido intensamente, quer por quem escreve, quer pela personagem. A verdade literária, que é uma mentira mas não uma falsidade, transforma-se em algo de concreto e real, numa vivência possível, uma viagem dentro de outra viagem.
Em encontros com os leitores, já se cruzou com pessoas que se apropriaram das suas personagens, como faz a Bárbara desse conto em relação ao romance e ao filme A Escolha de Sofia?
Acontece muito. E o contrário também: as pessoas contarem um episódio e eu aproveitá-lo. É o caso de O Tempo do Esplendor, que me foi contado, abreviado. Por sentir que tinha percebido o que está por de trás, arrisquei uma espécie de excursão aumentativa. Apresentar o conto à pessoa revelou-se um jogo muito tocante (“foi exatamente isto”, disse-me), porque reforçou a ideia de que nos adivinhamos uns aos outros. O grande fascínio da literatura é percebermos que, encontrando um autor com o qual nos sentimos bem, podemos fazer parte de uma matéria humana mais vasta, uma enorme rede de relações. Uma pessoa lê Tolstói e não deixa de se espantar com a forma como aqueles sentimentos continuam vivos. É por isso que defendo que os escritores, independentemente do seu nível ou da sua sorte literária, que é uma outra coisa, têm uma capacidade de premonição, de sentir o que está no fundo das coisas. Em geral, são capazes de descrever um tempo que não é o jornalístico. O que um esconde, o outro desvenda.
O volume acaba com O Poeta Inglês, um conto desconcertante. É um retrato do escritor enquanto carne?
É um conto sobre escritores, seu ofício e, acima de tudo, sobre o desfasamento entre a capacidade de se superarem através da escrita e as suas falíveis dimensões humanas. Neste caso, tão mortal, tão mortal, que morre diariamente. A última coisa que esse poeta inglês diz é justamente: “Adeus, meninos/ Tudo no mar me chama/ Viagem, Vela/ Mortalha/ Cama.” Ele tinha um vício, uma limitação, a morte dentro dele e mostrou-a. Talvez seja o mais sério de todos, que de certa forma repensa e questiona o autor dos oito contos anteriores.
Entrevista publicada no JL 1190, de 11 de maio de 2016.