Duas peças de um ato, duas comédias, dois casamentos. Em comum, um permanente jogo de aparências que ora revela, ora esconde o verdadeiro rosto das personagens: em A Boda (1889), de Anton Tchékhov, a chegada de um estranho convidado vem pôr a nu aquilo que é, afinal, um casamento de conveniência, já na de Bertolt Brecht, A Boda dos Pequenos Burgueses (1926), ergue-se uma festa falsa, na qual uma família pequeno-burguesa tenta imitar os códigos de comportamento da alta burguesia. Bruno Bravo leva-as à cena num único espetáculo, sem intervalo, com os mesmos atores e cenário, a estrear-se hoje, 16, no espaço Negócio, ao Bairro Alto, onde fica até 27 (quarta a domingo, às 21 e 30). Uma coprodução da companhia Primeiros Sintomas e da galeria Zé dos Bois que conta com interpretações, entre outros, de Ana Brandão, Miguel Loureiro, Luz Câmara e António Mortágua.
JL: Porquê pôr em confronto estas duas peças?
Bruno Bravo: Há muito tempo que queria encenar A Boda de Brecht. Suscita-me imenso interesse: o tema do casamento, esta família deslaçada, os noivos que parecem um casal já ‘gasto’, a relação vertiginosa com o presente, de comer e beber como se não houvesse amanhã, e, sobretudo, a polifonia do texto. Estas nove pessoas a falarem em torno de uma mesa, todas ao mesmo tempo, sem que haja propriamente diálogo. Até que descobri, quase por acaso, a peça do Tchékhov, que tem exatamente o mesmo tema. O que os distingue é a linguagem e uma sensação de que, com Tchékhov, a tentativa de manter uma aparência de normalidade vai mais longe. Apesar da família se endividar para ter lagosta e gelado com rum à mesa, ou da necessidade de contratar um general para ir ao casamento, tenta-se manter uma aparência até ao fim. Neste sentido, há em Tchékhov uma espécie de promessa de teatro, enquanto que em Brecht tudo se desmancha, tudo é mais exposto. Então pensámos que seria interessante Tchékhov construir qualquer coisa e Brecht destruir. Costumamos dizer que é uma peça punk.
A encenação valoriza, sobretudo, a interpretação do texto e o trabalho dos atores: tudo se passa com eles sentados à volta de uma mesa (o único elemento cénico)…
Esse foi precisamente o ponto de partida: Como trabalhar com os atores duas peças que, no fundo, são uma? Não nos interessou tanto construir rigidamente os personagens que cada uma delas sugere, mas mais a possibilidade dos atores absorverem ambos os textos e como passariam de um para outro. Por exemplo: de que forma o personagem da mãe do Tchékhov (Miguel Loureiro) se envolve com o texto e, depois, começa a dizer palavras que já são da mãe do Brecht? De resto, a opção de que a peça se desenrolasse só com os atores sentados à mesa está relacionada com o tal desmanchar das aparências.
Em que sentido?
Nesta peça, é como se o teatro que Tchékhov promete no início desaguasse, com Brecht, numa sensação de desolação, e quisemos explorar isso do ponto de vista cénico. Não temos o ambiente sugerido no texto. Nem salão, nem orquestra: temos nove atores, uma mesa, e a possibilidade deles viverem estes dois textos. E quisemos ver até que ponto podíamos trabalhar essa desolação com ritmo, vida… Como se o teatro persistisse independentemente de tudo. Espero que isso possa acontecer com força, e que a comida, a bebida, as danças e todo o ambiente esteja lá só com uma mesa e os atores.
É também uma reflexão sobre o próprio teatro?
Sim. É possível fazer leituras políticas a partir dos dois textos, sobre o teatro e a atualidade. Além disso, é a primeira vez que trabalhamos comédias, e essa leveza e despretensão estão ligadas com a situação política atual, mas gostaria de devolver a sua questão ao público.