Bastaria uma destas duas obras para garantir a imortalidade ao seu criador: Guerra e Paz ou Anna Karenina. Mas Leo Tolstoi fez mais. Ascendeu à categoria de mito, pela biografia pessoal e, pelo menos, por mais três pequenas obras – pequenas na extensão – escritas já no final da sua vida: Sonata a Kreutzer, Hadji-Murat e A Morte de Ivan Ilitch. A estas, acrescenta-se outra produzida logo no início da sua existência criativa: Os Cossacos. O conjunto dá um legado literário que o próprio, num misto de admiração e algum desdém, comparou ao de Shakespeare. Se alguém fosse capaz de igualar ou suplantar o do mestre britânico seria ele. De Tolstoi pode, pois, dizer-se que fez tudo para se tornar uma lenda.
Contraditório e obsessivo, foi jogador e moralista, proprietário rural e radicalmente contra a propriedade privada, renunciou ao título de conde para ficar mais próximo dos pobres; era racional, mas também um fervoroso pregador, crítico do imperialismo russo, converteu-se à Igreja Ortodoxa para depois se afastar dela considerando-a ao serviço do regime, e foi-se aproximando do catolicismo, mas sobretudo de um ideal de religião despido de rituais, onde Jesus surgia como figura exemplar. Consta ainda que era sexualmente insaciável, teve 13 filhos com a mulher, Sonia, e era portador de grandes doses de culpa. Escreveu sobre essa condição ambígua que era, afinal, a sua em relação ao mundo. Olhava o universo como um omnisciente e de cima, como Deus, tentado apagar-se da narrativa através de uma escrita depurada e resultado de um invulgar sentido de observação. No clássico confronto Tolstoi-Dostoievski, o digladia dos génios russos, ele surge como o cerebral versus o emotivo, um é Apolo outro Dionísio, como sugeriu o crítico George Steiner.
Ao ler Tolstoi, o dos romances extensos como o dos livros breves ou dos contos, o leitor está perante um exímio narrador capaz de suscitar todo o tipo de emoções numa difícil gestão de linguagem, limpa de excessos, fruto da tal observação panorâmica, inclusiva. Estamos dentro do universo criado pelo escritor, sabe-se tudo como ele parecia saber, acha-se que por momentos também se achava um Deus. Essa sensação de cumplicidade divina talvez explique o fascínio que a obra de Tolstoi causa em quem a lê.
Nascido em setembro de 1828, morreu vítima de pneumonia, aos 82 anos, na pequena estação de comboios da vila de Astapovo, duas semanas depois de ter saído de casa e de ter deixado a família com a intenção de se viver uma vida de deambulação e despojamento. Deixou uma carta à mulher, dizendo que ia fazer o que um homem da sua idade devia fazer.
– SAIBA TUDO SOBRE O LER FAZ BEM