Paris é a grande personagem de Honoré de Balzac. A paisagem, as personagens, a história, a sociedade, as ruas, os edifícios, as árvores. Em 95 romances, contos e novelas que constituem o conjunto da sua obra, entre 1829 e 1847, a que chamou A Comédia Humana, ele construiu o que outro escritor, Italo Calvino, denominou de “enciclopédia parisiense”, mas não se limitou à capital e traçou o retrato da França no momento da ascensão da burguesia. Em plena Restauração Francesa, fez a ponte entre o fim do romantismo e um tempo novo na literatura de que foi talvez o principal criador: o realismo moderno.
A VISÃO desta semana oferece o livro ‘A Mulher de Trinta Anos’, de Balzac
“Balzac descobriu a grande cidade como incubada de mistério e o sentido que mantém sempre desperto é a curiosidade. É a sua Musa. Nunca é nem cómico nem trágico, é curioso”, escreveu outro italiano, Cesare Pavese, no seu diário, acrescentando: “Penetra num enredo de coisas sempre com o ar de quem fareja e promete um mistério e vai desmontando toda a máquina peça a peça com um gosto acre, vivo e triunfal.”
Em O Tio Goriot, romance de 1835, põe a moralidade parisiense debaixo da lupa através de uma das suas grandes personagens que ali aparece pela primeira vez, Vautrin, um dos maiores vilões literários. “Mas o que imagina o senhor que seja o homem honrado? Em Paris, honrado é aquele que se cala, e se recusa a repartir (…). Assim é a vida. Não é mais bela que a cozinha, cheira mal como a cozinha e é preciso sujar as mãos para fazer um guisado. O caso é saber lavá-las; nisso está toda a moral da nossa época.” O romance saiu um ano depois de Balzac ter a ideia de agregar todos os seus livros numa obra única, A Comédia Humana, uma grande panorâmica sobre a sociedade francesa da época.
Sobre o escritor, Charles Baudelaire afirmou: “Todas as personagens de Balzac, até os porteiros, têm qualquer coisa de génio.” E Marcel Proust disse: “Não esconde nada. Diz tudo.” E o que diz pode ser simplesmente o sublinhar a beleza de um dia na cidade, como a notou o narrador de A Mulher de Trinta Anos: “Se o Sol lança jorros de luz sobre essa face de Paris, purificando-lhe as linhas, refletindo-se nos vidros, alegrando os telhados, abrasa as cruzes douradas, branqueando os muros e transformando a atmosfera num véu de gaze; se torna ricos contrastes com as sombras fantásticas, e o céu está azul, e os sinos tangem, desfruta-se dali uma dessas mágicas paisagens que a imaginação jamais olvida, de que se fica idólatra apaixonado como de um maravilhoso panorama de Nápoles, de Istambul ou das Floridas. Tudo é harmonia nesse concerto. Ali, murmuram o ruído do mundo e a poética paz da solidão, a voz de um milhão de seres e a voz de Deus. Ali jaz uma capital deitada sob os serenos ciprestes do Père-Lanchaise.” Tudo parece simples no modo como capta o ar do tempo, mas essa simplicidade é a do génio. Na sua A Comédia Humana, ele ousou compor um universo inteiro.
Romancista dos pés à cabeça
Para autores como Henry James ou Charles Baudelaire, Honoré de Balzac era mais do que um grande escritor. Era um visionário. No esforçado exercício de escolher apenas uma qualidade do criador de A Comédia Humana – que muitos críticos, como Harold Bloom, comparam à Divina Comédia, de Dante –, James disse: “Quando se lê Balzac, abrindo aleatoriamente um dos seus livros, aquilo que nos surpreende de imediato é a atenção que ele dá, e qualquer descrição, às condições das criaturas com as quais ele lida.”
Seria longa a lista de elogios a um autor que surge inquestionável no cânone da literatura ocidental. Nasceu em Tours, cidade no centro de França, a 20 de Maio de 1799, segundo filho de uma família de origens modestas, mas que conquistou o respeito social graças às funções de secretário no Conselho do Rei do pai de Honoré. A infância foi passada em colégios internos, lendo compulsivamente, uma maneira de se refugiar de um método de ensino a que não se adaptava. O seu sentimento de desajuste social permaneceu, mesmo quando a família se mudou para Paris, era Honoré adolescente, e tentou mesmo o suicídio. Em 1896, entrou para a Sorbonne, tentou ser advogado por vontade do pai, experiência que o levou à literatura quanto observador privilegiado das nuances do comportamento humano e da ideia de crime. Recusou, no entanto, um emprego considerado indeclinável. Não queria ser um advogado banal e procurou a exceção na literatura. Essa seria a sua vida. Alguém chegou mesmo a perguntar que homem foi Balzac se Balzac só escreveu? Escreveu por vontade e por contrato, por necessidade de pagar as contas e em resposta a um ímpeto invulgar. Harold Bloom, o influente crítico do século XX, escreveu uma das sínteses mais completas do que foi essa entrega. “Viveu sempre apocalipticamente endividado, trabalhava a um ritmo louco, dormindo às vezes só umas duas horas por noite, ao mesmo tempo que se afogava em café. Sujeito a alucinações tanto de audição como de visão, Balzac reviveu em si a antiga associação do génio com a loucura. Um monomaníaco tão grande como Victor Hugo, e romancista dos pés à cabeça…”
Falta dizer que, nos 51 anos em que viveu, procurou avidamente captar as diversas fórmulas da existência humana. Morreu em 1850, está enterrado no cemitério parisiense de Père-Lachaise e coube a Victor Hugo o discurso da cerimónia fúnebre: “Hoje temos (…) uma nação de luto pela morte de um génio.”