Depois de George Orwell, o criador de O Apelo da Selva é o segundo autor a integrar o projeto da VISÃO Ler Faz Bem
Um tipo bruto, selvagem, dizem, que gosta de lutas a dinheiro e de atrocidades”, com jeito para mexer nas canetas, sabedor da arte dos charlatães e com os inevitáveis defeitos e imperfeições de quem se fez a si próprio, pouco sofisticado, um selfmade-man que se esforça, com algum êxito, para se esconder “numa atitude de aspereza e inconvencionalidade”. Este é Jack London como ele acha que os outros o veem, uma imagem que ajudou a criar graças a um passado cheio linhas em branco por preencher – como por exemplo a identidade do pai – que mantêm o mistério sobre uma personalidade que sempre se revelou controversa.
“É muito fácil criticá-lo, claro, porque os seus defeitos são grandes e óbvios, mas é muito mais proveitoso chegar ao seu íntimo e simpatizar com a sua perspetiva de vida”, escreveu Anna Strunsky Walling, escritora, companheira de London no grupo de jovens radicais californianos de esquerda, chamado The Crowd, e autora de um livro de memórias sobre o autor de O Apelo da Selva. Outra forma de dizer que é preciso tentar perceber o contexto histórico e social em que nasceu o homem que cultivou o conflito e ajudou a construir uma caricatura de si próprio até ser impercetível o que é verdade e ficção na sua vida.
Tem-se escrito bastante, e quase sempre exacerbando defeitos sobre Jack London, nome literário de John Grifith Chaney. Nasceu em São Francisco, na Califórnia, a 12 de janeiro de 1876, filho de Flora Wellman, uma professora que acreditava estar possuída por um chefe índio, e que vivia com o astrólogo William Chaney. Quando ele soube que Flora estava grávida, negou ser o pai da criança, conta-se que lhe terá pedido para abortar e que ela atirou sobre si própria num ato de desespero. Esta história podia pertencer a um dos romances de London. A solidão desesperada que leva à violência, ao ato extremo. Mas Flora ficou apenas ligeiramente ferida, a criança nasceu e ela entregou-a a uma enfermeira, ex-escrava, Daphne Virginia Prentiss, que se tornaria uma figura central na vida de Jack London.
Foi ela quem lhe falou da identidade do pai. Aos 22 anos, Jack escreveu-lhe uma carta e recebeu outra em resposta: ele não era seu pai, a relação com Flora fora celibatária. Pedia desculpas, mas não tinha nenhum filho.
A relação com as suas origens e com o seu nome estava inquinada. Era um ilegítimo, criado como o mais novo de três irmãos. Os outros filhos de Daphne e do seu marido, Alonzo, eram alguns anos mais velhos e adotaram-no criando à sua volta um ambiente emocionalmente protegido, com as dificuldades inerentes à classe média baixa de São Francisco numa época politicamente conturbada, marcada pela corrupção, por protestos, pela luta de classes. De um lado o capitalismo e os seus valores, do outro o socialismo que os condenava. John, que ainda não tinha mudado o seu nome, cresceu a assistir a fortes desigualdades sociais quando era construído, num clima de extrema rudeza, o caminho de ferro da Califórnia. Ser testemunha disso fundou-o enquanto homem e escritor, alguém dividido entre a crítica ao capitalismo e a ambição pessoal. Começou a ficcionar a partir daquela realidade dura, solidificando uma personalidade atraída pelo desafio e pela aventura, característica que levaria para a sua literatura.
Mas, antes, foi pescador, andou a montar trilhos, trabalhou numa fábrica, foi vagabundo e preso por vadiagem, navegou numa escuna japonesa na caça às focas, andou em marchas de protesto ao lado dos desempregados e rumou ao noroeste do Canadá, até Kondlike, naquela que ficou conhecida como a segunda grande corrida ao ouro americana no século XIX, uma experiência que o marcaria para sempre, física e intelectualmente.
Perseguia o dinheiro e diz-se que queria sobretudo saber como ganhá-lo com pouco esforço. Diz-se também que começou a escrever depois de ter lido Moby Dick, de Herman Melville. O fascínio pelo livro e a perceção de que era capaz de ficcionar foram reveladores. Talvez estivesse ali a tal vida longe do trabalho duro, braçal. Escrevia contos que tentava vender ao melhor preço a quem os publicasse e com pouco mais de 20 anos, escreveu algumas obras que o notabilizaram. Caso de O Apelo da Selva, que finalmente lhe deu acesso à profissão que quis ter. Foi o romance que lhe abriu as portas para se tornar, com 30 e poucos anos, num dos escritores de maior êxito nos Estados Unidos.
Financeiramente, não foi um bom negócio para ele, mas permitiu-lhe vender todos os que se seguiram em que London revelava um estilo muito próprio, o homem sozinho numa violenta batalha com a natureza da qual quase sempre saia derrotado.
Era um escritor. Contou como foi até lá chegar em Martin Eden, uma autobiografia ficcionada sobre a luta de um homem pelo reconhecimento da sua escrita. Já estava casado e divorciado de Elizabeth Maddern, e casado pela segunda vez, com Charmian Kittredge. A sua relação com as mulheres foi tão conflituosa como com a vida em geral. Entre a paixão e a insatisfação. Já perto do fim da vida, instalou-se numa fazenda na Califórnia, entre a escrita, o álcool e problemas respiratórios que teve desde a aventura em Kondlike. Especula-se também acerca do que o matou. Houve quem falasse de suicídio. Morreu aos 40 anos, com 23 romances publicados, várias coleções de contos, textos autobiográficos, três peças de teatro, livros de poesia e de ensaio. Talvez tivesse sido esta imensa obra a esconder um homem que parecia não ter qualidades para tanto.