Quando o Santo António se aproxima, começam os segredos entre Luís Ribeiro e Filipa Grova. O casal está dividido pelos dois desfiles que nos últimos anos têm disputado o título de campeões das Marchas Populares de Lisboa. Luís, 22 anos, é marchante do Alto do Pina e Filipa, 21 anos, de Alfama. “Quando começamos os ensaios tentamos não contar nada um ao outro. Cada um treina os seus passos numa divisão da casa e esconde a música da sua marcha do outro”, revela Luís Ribeiro. Numa pausa do derradeiro ensaio da marcha de Alfama antes da apresentação no pavilhão Meo Arena, onde o júri avalia a exibição de cada bairro de forma minuciosa antes da atuação na Avenida da Liberdade, Filipa Grova confessa que os Santos Populares também são sinónimo de algumas discussões entre o casal… “Ele gosta mais da dele, eu gosto mais da minha. Às vezes entramos nesta conversa e depois dá discussão”, conta, divertida. Mas a zanga “só dura umas horas”, explicará o namorado.
De um lado e do outro, a curiosidade dos companheiros de marcha sobre os rivais é muita. No caso de Luís, sucedem-se as perguntas sobre o que ele sabe sobre Alfama por viver com uma marchante do bairro: “Há coisas que juramos não contar e faço-os compreender que não posso mesmo dizer”, explica. No ano passado, ficaram separados apenas por um ponto. Coube ao campeão Luís confortar a derrotada Filipa mas, este ano, a marchante está confiante de que será diferente: “Alfama vai recuperar o título!”.
Confiança era, aliás, o sentimento dominante entre os apoiantes que aguardavam a abertura de portas do pavilhão Meo Arena para verem as marchas atuarem no passado fim de semana. Todas as claques se mostravam convictas de que este é o ano da sua marcha. Um grupo de amigas de Alfama aguardava há mais de quatro horas para entrar no pavilhão, mas a boa disposição não esmorecia. “Vamos rumo ao 19! Afinal, somos a rainha das marchas!”, gritava Cláudia Vaz, 36 anos. Os “adeptos” de Alcântara e do Alto do Pina agitavam-se na fila e lá se iam ouvindo umas provocações. Clementina Maia, 62 anos, nascida no Beco do Pocinho, soma muitos anos de marchas e desenvolveu técnicas de defesa: “Quando começam as ordinarices e provocações a gente põe-se a cantar”, garante. “É tudo nosso! Vamos ser bicampeões!”, interrompia um apoiante do Alto do Pina. Estava na hora da cantoria.
O “Mourinho das marchas”
Carlos Mendonça, 77 anos, é o obreiro da rivalidade entre os bairros de Alfama e Alto do Pina, ainda que não se reveja nesse papel: “Nunca alimentei o bairrismo exacerbado”, garante. Coreógrafo, figurinista, cenógrafo, letrista e, por vezes, também autor das músicas, assumiu as rédeas da marcha de Alfama durante 20 anos, conseguindo a proeza de ser pentacampeão nas Marchas Populares (1996-2000). Afinal, não será por acaso que é conhecido como o “Mourinho das marchas”. Quanto a isso, tem algo a dizer: “Odeio que me chamem ‘Mourinho das marchas’! Quando ele apareceu já eu era o Mendonça das marchas. Quando muito, ele é que é o Mendonça do futebol!”, afirma, veemente. Há cinco anos, deixou Alfama por culpa de um desaguisado com um elemento da organização. E quando “Mourinho” está livre… O mercado anima. Venceram os argumentos do Alto do Pina, o seu bairro de nascença. Nos quatro anos que lá passou conquistou dois títulos, os primeiros da história daquela marcha. Tal como no futebol, a transferência não seria pacífica.
“Claro que ficámos um bocado chateados, não é? Mas era o bairro da mãe dele”, relativiza Vítor Fernandes, 53 anos, conhecido como Cem Gramas pelos lados de Alfama por ser franzino. Atualmente, é um dos aguadeiros da marcha (gere os adereços durante a coreografia), mas conta com duas décadas de marchante nas pernas. Quanto a rivalidades, é perentório: “A gente não tem rivalidade com ninguém, os outros é que têm connosco”. Um clássico do seu arquivo de histórias obriga a recuar a 1994, ano em que Alfama não ganhou o concurso e a madrinha da marcha, a fadista Alexandra, foi atingida com uma lata. “A malta foi por aí acima, com os paus dos arcos nas mãos, pedir satisfações à Mouraria”, conta. Diz-se que terão mandado três para o hospital…
Há três anos, Carlos Mendonça regressou a Alfama, agora como figurinista e cenógrafo, e Cem Gramas garante que foi fácil aceitá-lo de volta porque “ele é mesmo bom naquilo que faz”. Não são só as transferências de “treinadores” que podem causar celeuma. Diogo Gaspar, 27 anos, é da Mouraria, mas marcha no bairro rival: Alfama. “Houve pessoas que deixaram de me falar e outras que passaram a mandar-me bocas”, revela.
Em pleno séc. XXI, há um novo espaço onde o bate-boca da rivalidade entre bairros se manifesta: as redes sociais. Rute Brás, 43 anos, nascida e criada no Alto do Pina, explica a dinâmica cibernética em que “uns fazem posts a dizer que o bairro deles é o melhor, os outros vão lá comentar e dizem que não e vai-se por aí fora”. Rute admite que às vezes dizem umas “gracinhas” a Alfama… E, neste campeonato, é o sexo feminino que toma a dianteira: “As mulheres provocam-se mais umas às outras. Se o meu marido estiver por perto já sei que não posso mandar vir como gostaria”, conta, com uma gargalhada.
O coordenador da marcha de Alfama, João Ramos, 57 anos, dá-lhe razão. “É mais habitual haver picardia entre elas, mas hoje é tudo muito mais salutar”, defende o também coordenador do Ministério Público de Castelo Branco que, por amor ao antigo bairro, chega a fazer 550 quilómetros por dia na altura dos Santos Populares. “Os bairristas vivem as marchas com uma paixão mais doentia do que o futebol”, adianta, e explica que a rivalidade é maior entre a população do que entre as direções dos clubes que organizam as marchas ou entre os marchantes. Prova disso é que perante o aperto de quatro marchas – que se viram sem o guarda-roupa pronto a um par de dias da apresentação no Meo Arena – vários bairros uniram-se para ajudar. O figurinista Joaquim Guerreiro, a quem já chamavam “o novo Mourinho” não terá aguentado a pressão de ter tantos fatos em mãos… “Uma pouca vergonha”, sentencia Carlos Mendonça. No Alto do Pina, uma das marchas lesadas, juntaram-se cerca de 20 costureiras, algumas de bairros rivais como Marvila ou Olivais. Também Alfama se ofereceu para ajudar.
Bairrismo ou turismo
Antigamente, era raro o ano em que não havia “arraial” entre as marchas no velhinho pavilhão Carlos Lopes, antes da transferência para o Parque das Nações. O olisipógrafo Appio Sottomayor, 79 anos, recorda um episódio histórico ocorrido nos anos 1960: “Como a Madragoa desfila descalça, conta-se que uma claque rival espalhou pionés no chão, mas alguém deu conta e mandou varrer antes da atuação”, recorda.
“Oh Mendonça, de quanto é que era o cheque que deram ao júri este ano?”. A pergunta, feita em tom de desafio, foi atirada por uma “bairrista de Marvila”, à saída do Carlos Lopes, depois de Alfama vencer mais um concurso das Marchas Populares, há uns anos. Carlos Mendonça disparou a resposta: “Era do mesmo valor que vocês deram no ano em que ganharam!”. Incrédula, a mulher decidiu chamar os jornais alegando que Carlos Mendonça tinha confessado o suborno do júri… Hoje, confessa-se amigo da bairrista desafiadora e é com uma gargalhada que recorda o incidente.
A origem da rivalidade entre bairros é difícil de situar no tempo, explica a antropóloga urbana Graça Índias Cordeiro, 55 anos. “Por um lado é uma construção do Estado Novo, por outro também não podemos dizer que ela nasceu aí, porque já existiam rivalidades territoriais – e as marchas aproveitaram-se disso”, esclarece a docente do ISCTE-IUL. A partir de 1932, quando surge o concurso das marchas populares pela mão de Leitão de Barros, a rivalidade intensifica-se. “Este tipo de fenómenos nunca são inventados do nada, daí a forte adesão popular às marchas”, constata. O entusiasmo esmoreceu no pós-revolução, mas acabou por renascer.
Appio Sottomayor teme a descaracterização das marchas de manifestação bairrista para acontecimento turístico. Mário Pereira, 60 anos, presidente da coletividade Magalhães Lima, responsável pela marcha de Alfama, partilha a inquietação: “Qualquer dia só há cá turistas e ninguém vem marchar”.
Carlos Mendonça assegura que a tradição está viva – a média de idades dos marchantes de Alfama é 24 anos. E acredita que haverá muitos herdeiros do seu amor pela marcha. Mas não será fácil igualá-lo: apesar de estar internado a recuperar de uma cirurgia, deixou o hospital por escassas horas para assistir à atuação de Alfama no Meo Arena. Claro que valeu a pena ir. Afinal, a marcha é liiiinda!
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