Quando a fome aperta a meio da manhã, Rafael, 7 anos, só precisa de atravessar a estrada que separa a escola da mercearia Baviera, no número 385 da Estrada de Benfica, em Lisboa, para ter acesso a um menu luxuoso. As opções variam entre “morangos deliciosos”, “pêssegos especiais” ou um manancial de “bebidas frescas”, como alerta o pequeno cartaz amarelo com letras manuscritas colocado à entrada da loja. Hoje, a avó do rapaz está surpreendida: “Esta manhã foi só uma banana que levou”, conta, enquanto procura uma moeda de 50 cêntimos.
“Ainda vou receber troco!”, exclama Maria Pinto, 70 anos. Francisco Ferreira está habituado a que o rapaz passe na loja quase todos os dias. É um dos seus clientes habituais mais jovens, embora a despesa de Rafael raramente ultrapasse €1. O valor é baixo, mas a confiança é muita. Abriu a Baviera quando tinha 25 anos, hoje, Francisco Ferreira soma 77. “Tenho clientes que vêm desde a primeira hora”, revela, orgulhoso. Maria Pinto é uma delas.
Em 50 anos de atividade, já viu muitos filhos tornarem-se pais e pais que chegaram a avós. São estes clientes “históricos” que merecem a sua confiança na hora de vender fiado. Enquanto nos anos 1960 não perdia de vista o “calhamaço”, o livro estreito e comprido de capa preta em que apontava as despesas dos clientes que pagavam ao mês, hoje apenas restam meia dúzia de clientes que mantém o mesmo hábito. E do livro nem sinal, basta guar- dar os talões da máquina registadora.”Há algumas pessoas mais velhas que preferem pagar quando recebem a reforma”, explica o comerciante. Mas quando um cliente habitual se esquece da carteira. “Leva a mercadoria, claro! Às vezes até sou eu que lhes empresto dinheiro porque precisam de ir buscar alguma coisa a outro lado e não têm a carteira”, explica, sorridente.
Atualmente, a confiança revela-se mais em pequenos momentos de aperto, do que no pagamento a longo prazo. O “ponha na conta” passou a “pago amanhã”. António José Reis, 84 anos, herdou a prestigiada Pérola do Bolhão, na R. Formosa, Porto, do pai e, sur preendentemente, reconhece uma vantagem trazida pelos hipermercados (habituais arqui-inimigos do comércio tradicional): “As grandes superfícies ensinaram os clientes a pagarem na hora e as pessoas deixaram de pedir fiado”, avança o comerciante.
O “livro do fiado” da loja, conta, “chegou a ter dez centímetros de altura”. António José Reis ainda se lembra de o pai deixar os clientes levarem fiado nos meses em que pagavam as propinas das universidades dos filhos. “Nessa altura, nós também comprávamos fiado e podíamos facilitar. Hoje é mais complicado porque temos de pagar tudo em dinheiro”, explica. O filho, António Reis, 53 anos, hoje também dedicado à mercearia, confessa que ainda tem “o livro dos calos”, mas os clientes que pagam no final do mês contam-se pelos dedos e estão todos acima dos 70 anos.
ZÉ POVINHO E O CALOTE
Além de funcionar como espaço aglutinador do bairro, que garantia o abastecimento de mercadorias, mas também de notícias frescas, o comércio sempre esteve historicamente associado ao apoio às famílias residentes, sobretudo, nos bairros operários.
“A facilidade de pagar no final do mês era um serviço prestado à comunidade”, explica o historiador Daniel Alves, 44 anos, que investigou o comércio em Lisboa, de 1870 a 1910. Mas também era uma forma de garantir clientela.”No centro da cidade já não era tanto assim”, explica, “já que os clientes eram acima de tudo burgueses que se deslocavam para as compras da moda”. Os tempos áureos do fiado terão durado sensivelmente até à II Guerra Mundial, a partir dos anos 1950 o hábito começou a decair. “A confiança no cliente era determinante para o fiado ter o mínimo risco associado”, constata o também docente da Universidade Nova de Lisboa. Mas não foi por acaso que surgiu a figura do Zé Povinho criada por Rafael Bordalo Pinheiro em 1875 a fazer um manguito a quem pedisse fiado. É que os calotes também fazem parte desta história. Há quem prefira nem lembrar, mas quase todos os lojistas têm um calote para contar. António Silva, 57 anos, funcionário da Casa Natal, no Porto, desde os 13, lembra-se de uma dívida histórica de 400 contos (cerca de 2 mil euros) em garrafas das mais variadas bebidas. Na Drogaria Ribalta, perto da Av. de Roma, em Lisboa, a história conta-se com boa disposição. É sobre uma cliente nova que estava a mudar-se e resolveu comprar todos os produtos para limpar a casa na drogaria, pagando depois, claro. Só mais tarde, Jorge Matias, 48 anos, funcionário da Ribalta há 12, percebeu que a mudança era para fora do bairro. E a conta ficou por pagar. José Porfírio, 69 anos, chegou a ser ameaçado com uma arma quando tentou cobrar uma dívida de 800 euros a um cliente do talho onde trabalha, no Areeiro, como não se amedrontou, o dinheiro acabou por aparecer.
OS JUROS DO FIADO
Também por culpa dos que acabavam por não pagar, instituiu-se a ideia de que quem vendia fiado cobrava mais caro. O jornalista e escritor Germano Silva, 84 anos, lembra-se bem das recomendações sempre que ia buscar alguma coisa à mercearia que a família frequentava no bairro do Cruzinho, no Porto: “O meu pai dizia-me para estar atento quando o merceeiro assentasse a despesa no livro para garantir que ele não punha 2kg em vez de um. Eles carregavam um bocadinho no peso, era uma espécie de juro”, recorda.
Apesar de ser característico de estabelecimentos ligados ao abastecimento alimentar, o fiado também era (e vai continuando a ser) praticado noutro tipo de lojas. A centenária farmácia Nazareth, na R. Ferreira Borges, em Coimbra, tem vários clientes regulares que pagam no final do mês as receitas aviadas. A farmacêutica Patrícia David, 44 anos, explica que “uns é por hábito, outros porque quase não têm dinheiro depois de receberem a reforma”. Mais uma vez, invoca-se a confiança de anos para garantir a facilidade.
A presidente da União das Associações de Comércio e Serviços, Carla Salsinha, 46 anos, acredita que o clássico fiado tem tendência a desaparecer: “Hoje os lojistas têm mais cautela e as pessoas outras soluções”. Nuno Camilo, 40 anos, presidente da Associação de Comerciantes do Porto está de acordo. “O conforto do cartão de crédito superou o fiado”, sintetiza. Orgulhoso, o fundador do Fórum Cidadania Lx, Paulo Ferrero, 44 anos, acredita que apesar de o fiado ter caído em desuso, as pessoas estão a regressar ao comércio de bairro. “Basta pensar que a grande distribuição está a apostar nas lojas de rua”, destaca.
Sérgio Solposto, 52 anos, cuida dos clientes da Casa de Cafés Solposto, em Benfica (Lisboa), como sempre viu a mãe hoje com 83 anos fazer. Já não tem livro de fiado, mas são muitos os que guarda em casa com a letra do pai. Quiçá com despesas da família do escritor António Lobo Antunes, clientes assíduos da loja, garante.
O fiado já não faz parte da rotina. No entanto. “Isto não é como as viagens de metro, em que por um cêntimo as pessoas deixam de viajar”, brinca.
E não há calotes. Só clientes-família, como gosta de lhes chamar.
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