O comboio parte da Régua ao minuto. Levo comigo um saquinho de rebuçados artesanais, feitos à base de açúcar e mel, que comprei à D. Maria José, a rebuçadeira da “faixa preta”, que está sentada à entrada da estação. Assim que me sento, não resisto a comer um. O Marcos Borga também aceita.
Há pouca gente no comboio, algumas carruagens vão vazias e os viajantes são heterogéneos. Veem-se pessoas que dormem (como é possível desperdiçar aquela vista?), outras que jogam nos telemóveis ou ouvem música.
A “música” para mim é distinta. Salta-me à vista em forma de rio. Prende-me a atenção aquela sinfonia perfeita entre a água, que quase rasa a composição, e as escarpas floridas que, de tão altas, acabam por esconder o sol.
Num dos meus vai-e-vem, deparo-me com duas senhoras em pé, abismadas com a paisagem. Julgo serem amigas e passageiras de primeira viagem. Engano-me totalmente. Não se conhecem (ou melhor, conheceram-se na carruagem que partilham desde o Porto) e esta linha sabem-na de cor. Porém, continuam sem lhe resistir. Ana Gouveia, 71 anos, é da aldeia Freixo de Numão e nos seus tempos de estudante era presença assídua por estas paragens. “Ainda me lembro que isto vinha cheio de gente, com imensos sacos e galinhas. Os comboios eram a vapor e quando púnhamos a cabeça de fora, ficávamos com os olhos vermelhos das fagulhas.” As recordações de Ana soltam-se em catadupa, sempre acompanhadas de afirmativos acenos de cabeça de Maria Andrade, 64 anos. “Havia chefes de estação em todas as paragens. Agora estão todas fechadas.” Ana continuaria assim, a desfiar memórias, não fora o revisor chamá-la, anunciando a chegada ao seu destino.
Noutro compartimento, o casal Pons, de 33 e 34 anos, vai refastelado e nem sonha com estas histórias. São turistas franceses, pela primeira vez em Portugal, e entraram na Régua só pelo prazer do passeio. Hão de dar meia-volta volver, como nós, virando apenas os bancos para ficarem de feição. “É realmente diferente de tudo o que temos visto. Só se consegue avistar o rio na sua plenitude quando se viaja neste comboio”, dizem.
À medida que o dia avança e a luz cai, a beleza do itinerário aumenta. E fico furiosa de cada vez que o comboio se enfia num túnel e me interrompe a contemplação. Afinal, trata-se do Alto Douro Vinhateiro, Património da Humanidade e da mais antiga região demarcada vinícola do mundo (remonta ao tempo do D. José I).
Viajo numa semana de greves dos funcionários da CP às horas extraordinárias. Quase me esqueço disso, não fora o atraso de um comboio proveniente do Porto, que obriga a uma espera de quase meia hora, na estação de Tua, para se cruzar a linha que só tem uma via.
Estamos quase a chegar de novo à Régua. Para trás, ficaram três horas de viagem (nem saí do comboio no Pocinho). Nem dei pelo tempo a passar. Haverá meio de transporte mais inspirador do que este? Ainda mais quando o rio nos bate à janela e os socalcos vinhateiros são presença quase constante.