“Tudo pode ser lido, tudo deve ser lido, e cada um tem o direito à própria interpretação”

“Tudo pode ser lido, tudo deve ser lido, e cada um tem o direito à própria interpretação”

Quando pensa no futuro, vê mais oportunidades do que ameaças. Sabe que os livros atravessam as mesmas revoluções do que todos os setores da sociedade contemporânea, mas acredita no papel dos editores e, sobretudo, na força da informação rigorosa e da criação artística. Presidente da IPA – International Publishers Association [Associação Internacional de Editores], a brasileira Karine Pansa é uma das convidadas do Book 2.0, um encontro organizado pela Associação Portuguesa de Escritores e Livreiros, no âmbito da Festa do Livro de Belém. Entre esta quinta-feira, 31, e amanhã, 1 de setembro, especialistas nacionais e internacionais vão discutir, no Picadeiro Real do Museu Nacional dos Coches, em Lisboa, o futuro da leitura, pensando o papel do digital, da educação, da sustentabilidade e da representatividade no setor do livro.

Vem a Portugal para participar num encontro em que se tenta perceber o futuro do livro. Tem alguma resposta preparada?
É a pergunta mais repetida e a resposta mais desejada. Mas só posso olhar para o que tem acontecido nos últimos anos e enquadrar essa evolução numa nova perspetiva. Na verdade, o mercado do livro sempre teve de ser muito dinâmico e capaz de mudanças rápidas. O momento que atravessamos não é diferente, até porque tivemos o enorme desafio da pandemia.

O que a pandemia vos ensinou?
Nos países em que a leitura por prazer é valorizada, houve um crescimento muito grande nas vendas, sobretudo a partir do momento em que o livro foi considerado um bem essencial e as livrarias puderam reabrir. A pandemia também nos permitiu uma experiência mais intensa do digital, que marca os nossos tempos, com mais vendas online e com uma diversificação dos suportes, desde o ebook até ao audiolivro. Mas o primeiro aspeto que é preciso ter em conta é a geografia. O futuro do livro e da leitura muda consoante o continente ou o país de que estamos a falar. As novas tecnologias, por exemplo, estão a ter um enorme impacto nos países menos desenvolvidos.

Como explica esse fenómeno?
Com a dificuldade na compra do livro físico, o ebook torna-se um suporte fundamental e pode chegar a um público mais alargado. O desafio é tornar a aquisição dos livros um processo simples e seguro.

Nos últimos anos, vimos grandes transformações digitais nas áreas do cinema e da música. O livro em papel estará condenado a atravessar uma revolução semelhante?
No caso do livro, parece-me que a escolha entre o digital e o físico não se põe de forma tão forte, tal como os últimos dez anos têm mostrado. O que vemos, e esta poderá ser uma das respostas à pergunta que me fez no início, é uma complementaridade, no sentido em que a experiência digital pode aprofundar os conteúdos do livro, com vídeos ou uma maior interação. A verdade é que os números referentes aos ebooks são, por enquanto, estáveis, mesmo depois do forte incentivo digital da pandemia. Realmente, não vejo o mundo digital a destruir o livro físico. Um beneficia o outro. E já há estudos que mostram que a mesma pessoa, por vezes, salta do livro físico para o audiolivro ou para o ebook, para depois regressar à leitura em papel.

Apesar do que diz, a discussão pública entre livro em papel e o digital é feita muito numa lógica de clube ou de religião, como se essa complementaridade fosse impossível. Será um erro de perceção a corrigir?
É verdade o que diz, mas essa dinâmica põe-se mais entre diferentes gerações, entre os muito jovens e os mais velhos. Pela minha experiência, esses fundamentalismos, que têm sobretudo que ver com experiências de leitura individuais, estão a ser ultrapassados. Os programas governamentais de grandes países – refiro sempre o Brasil, porque é o mercado que conheço melhor enquanto editora – também têm ajudado a diversificar os suportes de leitura e a potencializar o que se pode tirar de cada um.

Além de chegar a um público mais alargado, que outras boas experiências têm sido retiradas dessa complementaridade?
A diversidade, sem dúvida, que começa logo na possibilidade de todos poderem ler. É preciso não esquecer que há leitores com necessidades especiais, como os cegos e os amblíopes, que têm superado muitas das suas limitações através da experiência digital. Mas a diversidade está também no número muito mais alargado de livros publicados, com um impacto significativo nas temáticas e no perfil dos autores.

E nas aprendizagens ou na educação, qual o papel do livro numa época em que, como se diz, “está tudo na internet”?
Essa também é uma ideia, ou uma perceção, que tem de ser refeita, porque os conteúdos que encontramos na internet não vêm do nada, não são descobertas espontâneas. Na esmagadora maioria dos casos, quem partilha conteúdos digitais teve de recorrer a estudos de outras pessoas, muitos deles publicados em livro. Houve alguém que estudou, que perdeu tempo a encontrar novidades ou a fazer sínteses, e daí que seja tão importante a defesa do copyright, dos direitos de autor. Ser autor é uma profissão como outra qualquer. Exige respeito pelo seu trabalho.

No encontro Book 2.0, falar-se-á também na sustentabilidade do setor do livro, num contexto em que as alterações climáticas exigem grandes mudanças. Como têm as editoras de enfrentar este problema?
É um dos desafios do momento, e a IPA tem promovido essa mensagem, quer para os associados quer para o público em geral. A neutralidade de carbono na nossa atividade, as preocupações ecológicas e a luta contra as alterações climáticas foram até tema de uma publicação que fizemos, com o apoio das Nações Unidas, e que temos vindo a publicar em diversas línguas e países.

Leria um livro escrito por um computador? Teria no mínimo curiosidade, nem que fosse para poder criticá-lo. Mas não sei até que ponto um computador pode substituir o pulsar humano, que encontramos num romance

Mas como se passa das ideias aos atos?
A reflexão está a ser feita e passa pela identificação dos principais problemas. A distribuição excessiva de livros, por exemplo, que implica um grande vaivém de camiões entre armazéns e livrarias. Temos ainda a questão da impressão. Imprimir em países que oferecem preços mais baratos, mas que pressupõem viagens de longa distância, como é o caso da China, tem um impacto ambiental significativo. Porque não imprimir mais perto? A reflexão tem de ser ampla e abranger tudo, incluindo o papel e as tintas. Estamos todos envolvidos: os editores, claro, mas também os responsáveis pelas gráficas e pela distribuição. A cadeia produtiva precisa de discutir estes assuntos em conjunto e definir boas práticas.

Mas vai ser possível mexer na cadeia de produção sem se subir o preço do livro?
Essa é outra questão importante: estará o público disponível para aceitar o aumento do preço do livro em função dos esforços ambientais que as editoras desenvolverem? Não é um dilema exclusivo do setor editorial. Todas as atividades económicas estão envolvidas neste desafio global. De momento, estamos a tentar diminuir as agressões que estão a ser feitas, sem qualquer interferência no preço. O papel da IPA, neste contexto, tem sido alertar para o problema e partilhar experiências.

Num mundo dominado pela imagem, a voz parece estar a resistir, com a rádio e os podcasts. Nos livros, como tem visto o aumento de audiolivros?
Ainda não há números que possam falar desse crescimento sustentado e para o qual as editoras tiveram de adaptar-se rapidamente. Vejo isso como outra possibilidade de se aceder a conteúdos, o que parece ir ao encontro dos hábitos e das necessidades dos leitores. Há a questão da acessibilidade de leitores com necessidades especiais, mas o fenómeno ultrapassou essa realidade e é hoje muito abrangente. Ainda é cedo para se perceber se é só uma tendência ou se é um desenvolvimento do público leitor, a sua ampliação.

Essa diversidade de que tem falado resulta em mais leitores ou são os mesmos leitores que navegam entre suportes?
Adoraria ter números e estudos sobre os hábitos de leitura. Alguns dados indicam que há leitores que navegam entre suportes de uma forma sistemática. No setor, acredita-se que se vive um pouco das duas realidades, com números suportados por leitores já consolidados e por outros conquistados pelas novas tecnologias e acessibilidades.

É inevitável falar sobre a Inteligência Artificial. Leria um livro escrito por um computador?
Porque não? Eu, tal como acredito que outra pessoa, já recorri à Inteligência Artificial em algum momento ou situação, com resultados que comprovaram a sua “inteligência”. E não estou a falar necessariamente de livros, mas da sua presença na nossa vida. Temos de esperar para ver. O problema que se levanta neste momento é perceber de onde vem a combinação de palavras que a Inteligência Artificial apresenta.

Há autores que já estão a reclamar.
E com razão… Não reclamaria se usassem os artigos que escreveu, ao longo da carreira, para produzir um livro? Imagino que sim. No mínimo, gostaria de ser citado e de, com gosto, também ser remunerado. Essa é a nossa frente de luta. Como pagar, via direitos de autor ou outra via, quem está na base dos conteúdos produzidos pela Inteligência Artificial?

Nas nossas fantasias de ficção científica, imaginamos um futuro com a Inteligência Artificial a escrever os livros e a publicá-los, sem interferência humana. Face a essa possibilidade, é um momento para se valorizar o papel do editor?
Sem dúvida. O fator humano não é dispensável, e não nos podemos esquecer de que há especialistas que acumularam muito conhecimento em determinadas áreas, nomeadamente na tradução. Pode uma máquina substituir o conhecimento que um tradutor especializado tem, por exemplo, da obra da Cecília Meireles? Acredito que não, pelo menos por agora. Quando muito, a Inteligência Artificial pode tornar-se uma ferramenta de múltiplas possibilidades. O perigo está na disponibilização de conteúdos de origem desconhecida. Ao editor caberá perceber o que é prioritário e pertinente, adequar os conteúdos às várias faixas etárias e reforçar a credibilidade.

Ajustando um pouco a pergunta: leria um romance escrito por um computador?
[Risos.] Teria no mínimo curiosidade, nem que fosse para poder criticá-lo. Mas não sei até que ponto um computador pode substituir o pulsar humano, que encontramos num romance.

Este é o debate do futuro?
É já o debate do presente, e não vai ser fácil, porque há países com conceções muito diferentes entre o que é aceitável ou não. O debate vai ser longo, e duvido de que seja consensual.

Estes avanços tecnológicos são contemporâneos a alguns ataques à liberdade de expressão, com livros cancelados e retirados das bibliotecas…
Essa é outra das lutas da IPA, tão importante quanto a defesa dos direitos de autor. A liberdade de expressão determina a formação do pensamento dos indivíduos, que deve ser desenvolvido pessoalmente. Qualquer limite de acesso a um livro, ou a qualquer outro tipo de informação, significa um ataque à liberdade de pensamento. Tudo pode ser lido, tudo deve ser lido, e cada um tem o direito à própria interpretação. Mesmo no caso da literatura infantil, o mais importante é os valores que os pais transmitem ao longo dos anos. A leitura de um livro pode ser uma boa oportunidade para se explicar como, no passado, houve outras formas de ver o mundo, mais certas ou mais erradas. Liberdade de pensamento é respeitar opiniões divergentes e recusar a interpretação única, e apresentar o passado em toda a sua complexidade.

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