“A relação sexual acaba quando o homem atinge o orgasmo. As mulheres têm de reivindicar o seu prazer, não ter vergonha”

“A relação sexual acaba quando o homem atinge o orgasmo. As mulheres têm de reivindicar o seu prazer, não ter vergonha”

Com uma página profissional no Instagram onde adota um discurso descomplicado sobre a sexualidade, sustentado pela evidência científica, Mafalda Cruz, 34 anos, tem conquistado cada vez mais seguidores. Radioncologista no Instituto Português de Oncologia (IPO) do Porto, foi durante a licença de maternidade que resolveu tirar da gaveta a sua formação em Sexologia Clínica, aquela que foi a sua primeira paixão na Medicina, influenciada por Júlio Machado Vaz, seu professor. Tem falado sobre a vivência da sexualidade de quem ultrapassa uma doença oncológica, sobre disfunções sexuais, sobre educação sexual e sobre algo tão importante, e muitas vezes desvalorizado, como o prazer.

Aparentemente, a Radioncologia e a Sexologia não teriam muito em comum, mas tem feito a ponte entre as duas…
Unem-se na Oncossexologia, a abordagem da sexualidade nos doentes oncológicos, que continua a ser uma lacuna no tratamento oncológico. Temos muitos tratamentos a oferecer e, felizmente, as pessoas acabam por sobreviver, mas temos de saber dar qualidade de vida depois de ultrapassarem a doença. E, nisso, a sexualidade não pode ser descurada. Os tratamentos provocam muitos efeitos secundários e temos de saber gerir todas estas alterações que vão aparecendo.

Os médicos ainda estão muito concentrados na cura e não tanto nos aspetos colaterais da doença?
Sim, os médicos e as instituições. Estão concentrados na doença, nos fármacos, na cura a todo o custo, e é preciso olhar para pessoa, para o casal, que passa por um processo muito duro. Surgem dificuldades na relação, a nível psicológico, o próprio corpo está diferente, e os médicos têm de olhar para isto tudo e oferecer ajudas para conseguirem ultrapassá-las.

Os próprios pacientes têm dificuldade em falar sobre a sexualidade?
Sim, não costumam fazer perguntas, por isso devem ser os profissionais de saúde a trazer o tema para cima da mesa, para que o doente saiba que tem permissão para falar sobre isto quando entender. Sentem muitos constrangimentos, não sabem se os médicos vão saber responder, se há tratamentos, se as perguntas são lícitas… Não estão, de facto, informados. Muitos nem sequer sabem que o que estão a sentir é um efeito secundário dos tratamentos. No início da doença, a sexualidade passa para último plano. Mas vai voltar a ser importante e, por isso, os doentes têm de saber que podem contar com os profissionais de saúde. Falamos sobre alimentação, sobre exercício físico, porque não falar também sobre sexualidade?

E há tempo para o fazer nas consultas?
Não, o problema é esse. Em consultas de 15, 30 minutos, não há tempo para abordar isto tudo e, por isso, o tema deveria ser abordado em sede própria, em consultas especializadas. Em alguns hospitais – IPO de Lisboa, de Coimbra, no do Porto está a arrancar, e no hospital de Gaia –, já existem consultas próprias.

Os médicos estão preparados para abordar a sexualidade?
Nem todos estão, mas também não o podemos exigir. O que deve ser boa prática clínica é explicar os efeitos secundários dos tratamentos a nível sexual. Depois, se houver alguma disfunção que venha daí e o clínico não souber resolver, deve reencaminhar para quem saiba. O ideal era cada instituição ter um profissional com mais conhecimentos em Sexologia.

As disfunções sexuais nos doentes oncológicos são muito comuns?
Sim, cerca de 50% a 60% sofrem de disfunções. Houve um estudo em Portugal sobre quantos gostariam de ter ajuda neste campo e ser referenciados para uma consulta. Mais de dois terços disseram que sim e cerca de um terço considerou não ter sido devidamente informado sobre o que poderia acontecer. São surpreendidos, por exemplo, com uma disfunção erétil depois de uma cirurgia ou de uma radioterapia no cancro da próstata, ou têm dor durante a relação sexual provocada pela quimioterapia ou pela radioterapia. Há diferentes tipos de disfunções: do desejo sexual, da excitação, do orgasmo, ou dor… Nos doentes oncológicos, seja da doença ou dos tratamentos, podem coexistir disfunções em todos estes domínios.

Um diagnóstico de cancro não significa o fim do prazer?
Não. Após a doença oncológica, podemos oferecer uma cura para a disfunção sexual ou uma forma de os doentes se adaptarem à nova realidade. Não podemos garantir que todos vão ficar como estavam. Mas podemos ajudá-los a tirar o melhor partido do que têm agora.

O apoio do parceiro faz toda a diferença nestes momentos difíceis?
Faz, mas vemos situações muito diferentes. Há casais que ficam muito mais unidos e outros que, perante a doença, acabam por se afastar. Às vezes, o parceiro não sabe lidar com a pessoa doente, ou assume o papel de cuidador, o que implica que, depois, tenha dificuldade de sair desse papel e passar a ser novamente o parceiro sexual. Quando é o homem a estar doente, a mulher acompanha muito e está sempre nas consultas, muitas vezes é ela quem faz perguntas sobre a sexualidade e procura que a relação íntima esteja o mais normal possível. Quando é a mulher a estar doente, vem sozinha às consultas e à quimioterapia. Em casa, não se deixa fragilizar tanto e continua a cuidar de todos, apesar de ser ela a estar doente. O homem muitas vezes afasta-se, não quer magoar.

Após um tratamento, são necessariamente pessoas diferentes?
São, estão debilitadas, cansadas, muitas vezes colocam em perspetiva toda a vida pessoal e profissional, questionam até o parceiro com quem estão. Pode acontecer uma crise entre o casal, é essencial continuarem a ter algum tipo de intimidade, fazerem um esforço para conversar, fazer planos e explicar o que se está a passar.

Com o devido acompanhamento de um especialista, um casal pode até passar a comunicar melhor?
Sem dúvida. Ajuda muito ter um terapeuta que facilita a comunicação entre o casal, que ajude ambos a perceber as expectativas que têm. Há um caso clássico, do doente do sexo masculino com um cancro da próstata que, depois dos tratamentos, fica com uma disfunção erétil. Para o homem o objetivo vai ser recuperar a função erétil, mas a mulher até pode ter passado a ter mais prazer, porque ele passou a dedicar-se mais a ela.

Fiquei surpreendida com o baixo nível de educação sexual, pensei que os jovens estariam mais esclarecidos. Há muitos preconceitos, muitos mitos e muita rigidez

A sociedade portuguesa ainda é muito conservadora?
Não tenho base de comparação. Nas minhas consultas noto ainda uma sexualidade muito centrada no prazer do homem e na penetração vaginal. A relação sexual normalmente acaba quando o homem atinge o orgasmo. Há muito machismo. Secundariza-se o prazer da mulher e, por isso, às vezes demoram anos a pedir uma consulta. Mesmo tendo dor, continuam a ter relações sexuais, para dar prazer ao marido. Gostava de conseguir chegar a mais pessoas, para desconstruir isto. As mulheres têm de reivindicar o seu prazer, não ter vergonha dele. Há quem nem consiga dizer a palavra “prazer”.

O que mais a tem surpreendido na prática privada de Sexologia?
Tenho muitos homens nas consultas a pedir ajuda, estava à espera de que as mulheres fossem mais proativas. E há muitos homens novos com disfunções sexuais, entre os 20 e os 30 anos, que as silenciam e não falam com os amigos, porque pensam que são os únicos. Está relacionado com a sociedade em que vivemos, têm profissões exigentes e stressantes, fazem pouco exercício físico, e tudo isso contribui para problemas como a disfunção erétil e a ejaculação precoce. A ansiedade está a apoderar-se das pessoas e depois vai assombrá-las também na vida sexual. Nas mulheres, há muita procura por parte de quem tem dor nas relações sexuais. Demoram anos a pedir ajuda, porque também se normaliza muito a dor, sempre a tiveram e pensam que têm de a aguentar. Fiquei surpreendida com o baixo nível de educação sexual, pensei que os jovens estariam mais esclarecidos. Há muitos preconceitos, muitos mitos e muita rigidez. Seguem um roteiro sexual, têm a ideia de que é sempre assim e não há variações.

Como é que se desconstrói isto?
Com Educação Sexual nas escolas. Não há uma idade ideal, pode começar logo no jardim-de-infância, com noções sobre o corpo, sobre o toque, sobre a privacidade, sobre a importância do consentimento, sobre a diversidade sexual. Está provado que quanto mais esclarecidos estiverem, as crianças e os jovens, melhores escolhas fazem e até acabam por atrasar o início da atividade sexual, porque não cedem a pressões, fazem quando querem fazer.

Até onde deve ir a Educação Sexual nas escolas?
Não há limites. Até agora, esteve muito focada nos perigos da sexualidade, nas doenças sexualmente transmissíveis e nas gravidezes indesejadas. Vamos dar o grande passo quando estiver focada no prazer. Em casa, os pais já dão muitas vezes uma visão negativa da sexualidade e instruem as mulheres a não ter relações sexuais com qualquer um, a guardarem-se para a pessoa ideal. E quando as mulheres iniciam a vida sexual, ficam com a ideia de que estão a fazer algo errado, que se perpetua para o resto da vida. Muitas vezes, a dor vem daí. Se virarmos a página e começarmos a falar nas coisas boas que pode haver no sexo protegido, aí sim vamos ter as pessoas mais libertas sexualmente e de forma segura. Mas há muita resistência e medo por parte dos pais.

O prazer continua a ser muito desvalorizado?
Continua em segundo plano. E é tão importante que foi o tema do ano passado do Dia Mundial da Saúde Sexual [4 de setembro]. O principal motivo para as pessoas terem uma consulta de Sexologia é porque querem ter prazer, e não só porque têm um problema ou uma disfunção. Está provado que quando os casais têm uma vida sexual satisfatória – e não estou a falar de quantidade –, aumentam os índices de satisfação da relação.

Na sua página do Instagram fala destes temas de forma descomplicada, mas reforça sempre a evidência científica. Falta esse foco na discussão sobre a sexualidade?
Sim, às vezes a comunidade médica olha para a sexualidade quase como uma pseudociência. Ajuda muito mostrar que todas estas coisas já foram estudadas, com bons ensaios clínicos, com amostras grandes, e tiveram resultados irrefutáveis. Muitas vezes sublinho: “Não sou eu que estou a dizer, é a ciência.” Não estou a inventar nada, aquilo já foi estudado de forma séria. A Sexologia precisa de uma maior validação da comunidade médica, porque também não é uma especialidade, pode ser feita por várias especialidades. E não há muita oferta de formação para profissionais de saúde, a que há é paga por nós. Se tivermos interesse nesta área, temos de ir à procura, porque não está devidamente incluída nos internatos, nem nos cursos de Medicina.

A comunicação na prática clínica é negligenciada?
É algo que valorizo muito: como dar as notícias, como explicar tudo aos doentes de forma que eles entendam. Falar sobre sexualidade ainda mais difícil é, porque muitas vezes usamos termos que as pessoas não percebem, temos de ir à volta e a mensagem pode perder-se. Mas não é fácil falar de temas tão íntimos com alguém desconhecido. É preciso tempo. No Serviço Nacional de Saúde (SNS), o acesso a estas consultas é difícil, as listas de espera são grandes. Fazê-las no contexto privado é ingrato, porque são precisas várias consultas para se perceber o problema e isso tem custos. Às vezes, a pessoa desiste. O ideal seria haver mais oferta no SNS.

Nota preconceitos por parte da classe médica pelo facto de ter a página profissional numa rede social?
Sim, ainda há muito preconceito à volta das redes sociais. Mas se fizer um trabalho bem feito, baseado na evidência científica, provo que consigo passar a mensagem sobre a sexualidade e chegar a um grande número de pessoas.

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