“Não é por acaso que há empresas informáticas a contratar pessoas com autismo com grandes capacidades cognitivas, por serem altamente produtivas ou terem tendência para o hiperfoco”

“Não é por acaso que há empresas informáticas a contratar pessoas com autismo com grandes capacidades cognitivas, por serem altamente produtivas ou terem tendência para o hiperfoco”

Miguel Castelo-Branco é médico e neurocientista na Universidade de Coimbra, onde coordena o Centro de Imagem Biomédica e Investigação Translacional (CIBIT). Além de estudar o cérebro na sua globalidade, dedicou os últimos 15 anos da carreira à investigação na área do autismo. O trabalho Os Desafios da Neurodiversidade: Um Percurso na Área da Medicina Personalizada e de Investigação no Autismo valeu-lhe o Prémio Bial de Medicina Clínica 2022. Em entrevista à VISÃO, o médico e cientista falou de alguns dos mistérios que ainda envolvem o autismo, das terapias mais inovadoras e da necessidade que temos, enquanto sociedade, de praticar “a tolerância e a aceitação da diferença”.

Há 15 anos que estuda o autismo e, ainda assim, afirmou que é uma condição muito difícil de diagnosticar. Porquê?
Mesmo nos casos ditos mais óbvios, muitas vezes não se consegue ter um diagnóstico antes dos 3 anos. Isto acontece porque, até essa idade, os problemas de interação social e de comunicação, ou o facto de a criança gostar muito de manter um comportamento habitual, podem ter outra explicação. Nas formas de autismo mais subtil, mas que fazem as pessoas sofrer da mesma maneira, chega até a haver pessoas que só são diagnosticadas aos 30 ou 40 anos. Nesses casos, as pessoas sempre se sentiram diferentes, mas, como tinham capacidades cognitivas, lutaram, à custa também de muita ansiedade, e conseguiram arranjar estratégias. O diagnóstico acaba por chegar como um grande alívio, pelo menos para muitas delas.

Que sinais mais evidentes caracterizam o autismo?
A dificuldade em comunicar e em desenvolver interações sociais, bem como uma grande tendência para a rigidez e para os comportamentos repetitivos. Estas pessoas gostam de rotinas e de comportamentos habituais, manifestando-os de muitas maneiras, desde manter hábitos até adotar os chamados movimentos repetitivos, como andar de um lado para o outro ou, em casos mais severos, bater palmas repetidamente. O diagnóstico é muito mais frequente nos homens, em que os comportamentos repetitivos são mais manifestos, do que nas mulheres, em que a ansiedade é frequentemente o sintoma mais evidente. Uma mulher com autismo disse-me uma vez que as mulheres têm mais pressão social para comunicar e interagir em sociedade e, portanto, desde cedo são mais forçadas a camuflar estes aspetos. Mas é importante sublinhar que a palavra-chave do trabalho que escrevi é neurodiversidade, ou seja: a condição não se manifesta da mesma maneira em toda a gente, estamos a falar de um espetro.

O que se passa no cérebro das pessoas que caem neste espetro?
Em primeiro lugar, a velocidade de crescimento e a maturação destes cérebros são diferentes. Ao desenvolver-se, o nosso cérebro passa por fases de multiplicação de neurónios, fases em que alguns deles morrem e períodos de maior ou menor criação de sinapses, e isto no autismo é diferente. Estas pessoas também têm muita dificuldade em ler a expressão facial dos outros. Há zonas do nosso cérebro que estão mais ativas quando detetamos expressões emocionais dinâmicas, como um sorriso ou uma cara triste, e que vão ligar-se a outras zonas que tentam escrutinar a intenção que está por detrás do sorriso ou da cara triste. As pessoas com autismo têm muito mais dificuldades em ler esses sinais na cara dos outros e também em inferir o que estes significam. Nos últimos anos, temos ainda feito muitos estudos, recorrendo a ressonância magnética funcional, para tentar perceber o que se passa no cérebro das pessoas com autismo, quando estão a fazer tarefas do dia a dia.

E o que têm encontrado?
Um desses estudos, que foi publicado no ano passado, debruçava-se no que acontece nos circuitos do cérebro quando um adolescente com autismo vai a um supermercado com uma lista de compras e tem de interagir com outras pessoas. Ficou demonstrado que, enquanto para uma pessoa neurotípica ir ao supermercado é uma coisa banal, para uma pessoa com autismo essa ida pode ser um verdadeiro ato de “turismo acidental”. O stresse social causado pela necessidade de inferir emoções nos outros, para eles, tem uma maior carga.

Por que razão isso acontece?
Há uma rede no cérebro, chamada rede da teoria da mente, que está mais ativa nas interações sociais, e o que acontece é que, em pessoas com autismo, ela está ativa de forma mais disfuncional. Estamos a falar de cérebros que reagem ao ambiente, ao contexto e às tarefas de modo diferente daquele que é observado nas pessoas neurotípicas, e essa diferença tem de ser respeitada.

Essa diferença é sempre uma desvantagem?
Não, nem sempre. Este aparente desajuste pode trazer vantagens em determinado tipo de tarefas. Não é por acaso que há empresas informáticas a contratar pessoas com autismo ditas altamente funcionantes, ou seja com grandes capacidades cognitivas, por serem altamente produtivas ou terem tendência para o hiperfoco.

Todo o conhecimento a que chegou graças aos exames de imagem já se traduz em tratamentos?
Os jogos que desenvolvemos para observar o que se passa no cérebro também podem ser usados como terapia. Podem ser dispositivos médicos validados através de ensaios clínicos, concebidos para treinar competências simples e muito centrados nas necessidades do dia a dia. Há várias rotinas que, para uma pessoa neurotípica, são uma série de passinhos, enquanto para uma pessoa com autismo se transformam num verdadeiro “Everest emocional”. Por exemplo: andar de autocarro implica não só conseguir validar o bilhete, trocar de carreira e conhecer o itinerário, bem como interagir com o condutor, escolher um lugar e, eventualmente, ter de falar com alguém.
Desenvolvemos também jogos, além de uma tecnologia baseada em biossinais, chamada neurofeedback, com o objetivo de colmatar a dificuldade que as pessoas com autismo têm em ler as expressões faciais dos outros e de melhorar o reconhecimento que fazem das mesmas. Tivemos adultos com grandes dificuldades neste ponto e que, ao fim de alguns meses, já se tinham tornado muito mais eficazes.

Estes jogos têm de ser feitos em clínicas?
Não. Como a reabilitação, para funcionar, tem de ser algo feito ao longo de muitas horas, desenvolvemos vários “dispositivos médicos”, ou jogos, que podem ser usados em casa. Tentamos sempre que os jogos possam ser personalizados e com vários níveis de dificuldade, porque o futuro da medicina passa pela personalização do tratamento.

Que outras opções terapêuticas existem atualmente?
Podemos recorrer à estimulação magnética transcraniana ou à estimulação direta por corrente elétrica, ambas em fase de ensaios clínicos. Por exemplo, no CIBIT, tivemos um projeto com estimulação elétrica de muito baixa intensidade, que a pessoa quase nem sente, mas que acaba por modelar a atividade dos neurónios. Também participámos num projeto europeu, no qual fizemos jogos acoplados à neuroestimulação. Há ainda a possibilidade se pode recorrer, embora de forma mais cautelosa, a fármacos. Ainda que não haja medicamentos que tratem as manifestações primárias do autismo, alguns fármacos podem ser usados para coisas secundárias, como a agressividade, a irritabilidade, a ansiedade ou a depressão.

Tanto na política como na sociedade, o preconceito está ainda muito impregnado. O autismo deveria ser algo que convidasse as pessoas a aceitar quem é diferente e a praticar o exercício da tolerância

Quais as descobertas mais promissoras que podem revolucionar a vida dos doentes, e respetivas famílias, nos próximos anos?
Um dos aspetos que fomos revelando com o nosso trabalho está relacionado com a plasticidade cerebral, ou seja a capacidade que o cérebro tem em reorganizar-se. São boas notícias para a reabilitação. Esta plasticidade não está reservada apenas à infância e à adolescência, só que, quanto mais velho for o cérebro, mais tempo de treino precisa na reabilitação. Por esta razão, os jogos, por exemplo, não podem ser feitos de 15 em 15 dias em consulta; precisamos dos dispositivos em casa.

Na qualidade de pai de um jovem com autismo, de vice-presidente da Associação de Autismo de Coimbra e de membro da direção da Federação Portuguesa de Autismo, o que devem esperar os pais, perante um primeiro diagnóstico?
Eu tenho um filho com 25 anos e posso dizer-lhe que o autismo é um desafio constante. Diria que é um desafio que é para a vida. Passamos por várias fases, sendo a primeira preocupação o prognóstico. Será que eles vão ter autonomia suficiente para ter uma vida independente? Há pessoas com autismo que conseguem viver a sua vida sozinhas, mas vão sempre precisar de uma ajuda, mesmo as altamente funcionantes. Um dos grandes desafios que enfrentarão é a entrada na universidade e a dificuldade em se adaptar à complexidade daquele ambiente social. Depois, na saída para o mercado de trabalho, muitas vezes os potenciais empregadores não os entendem.
A maioria das pessoas, neste domínio, acaba por pensar a curto prazo, mas, de acordo com a minha experiência, é importante pensar no que vai acontecer daqui a cinco, dez ou 15 anos. As coisas, quer nas famílias quer na sociedade, devem ser planeadas à distância.

Em Portugal, esse planeamento à distância existe? Há apoios para as pessoas com autismo e para as respetivas famílias?
Estas pessoas precisam de que a sociedade, de alguma forma, as aceite e as integre. Isto, em países com o nosso, é mais difícil, não tenhamos ilusões. Portugal é um País que entregou esta questão às IPSS, não desfazendo o serviço que temos de Segurança Social, mas somos um País de poucos recursos, e os apoios nestas áreas são sempre os primeiros a cair.

Até que ponto as pessoas com autismo, quando chegam à idade adulta, conseguem ser inseridas no funcionamento da sociedade atual?
Quando uma pessoa tem predisposição para atingir certo nível intelectual, isso já nasce consigo, e é claro que sabemos que alguns, por exemplo, nunca irão tirar uma carta de condução, porque têm características de grande défice de atenção, ou cumprir a escolaridade normal. Mas isto não quer dizer que as pessoas não vençam patamares. Em parte, existe algum determinismo, mas, tantas vezes, existe também uma capacidade insuspeitável de aprendizagem, que nos deixa muito surpreendidos com coisas que não pensávamos que estas pessoas seriam capazes de fazer. Apesar de existir empresários ou professores com autismo, penso que muitas mais pessoas poderiam estar empregadas e que os empregadores deveriam ser formados neste sentido.

O conceito de autismo tem mudado ao longo dos últimos anos. O preconceito tem-se mantido?
As coisas estão muito diferentes, mas a palavra autista continua a ser usada com uma conotação pejorativa. Tanto na política como na sociedade, o preconceito está ainda muito impregnado. O autismo deveria ser algo que convidasse as pessoas a aceitar quem é diferente e a praticar o exercício da tolerância.

O que é importante saber para pormos em prática esse exercício e facilitar a integração destas pessoas na sociedade?
No ambiente de trabalho, as pessoas com autismo normalmente não toleram certo tipo de sons. Outro aspeto é a intolerância à mudança brusca de hábitos. Uma mudança à última da hora provavelmente não destabiliza nada uma pessoa neurotípica, mas em pessoas com autismo pode ter um impacto profundo. Por exemplo: se levo o meu filho a uma festa em que sei que ele vai deitar-se depois da meia-noite, tenho de avisá-lo com antecedência. No que toca os pais de crianças com autismo, é importante treinar com os filhos, desde cedo, a flexibilidade e o comportamento adaptativo, para que elas sejam adultos com uma melhor integração.

Depois de 15 anos dedicados à investigação na área do autismo, o que ainda quer investigar e descobrir?
O meu grande desafio, neste momento, é a área da intervenção, a procura de respostas terapêuticas, dos jogos e também intervenções psicológicas, que levem a uma melhor integração das pessoas com autismo. Não é só investigar, é levar isto ao terreno e ser útil às pessoas.

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