“O fosso entre as pessoas e o que se passa está a aumentar. O problema é que esse abismo nunca permanece vazio, há sempre alguém interessado em atulhá-lo: os fundamentalistas, os nacionalistas, os racistas”

“O fosso entre as pessoas e o que se passa está a aumentar. O problema é que esse abismo nunca permanece vazio, há sempre alguém interessado em atulhá-lo: os fundamentalistas, os nacionalistas, os racistas”

Nas duas décadas e meia em que David Grossman trabalhou como jornalista de rádio, costumava dizer que acontecia mais em Israel numa hora do que na Dinamarca em 100 anos. “Tanta violência, tanto ódio, tanto extremismo”, lembra. Sabe que as feridas do passado continuam a ser reabertas. E é justamente por causa disso que procura, nos romances que escreve, encontrar novos pontos de vista para as histórias que moldam o seu país e a relação com os vizinhos. Nascido em 1954, Grossman é o mais destacado e traduzido escritor israelita da atualidade, com inúmeros prémios em vários países. Esteve recentemente em Portugal, a convite da Livraria Lello, para falar dos seus livros, como A Vida Brinca Comigo, Um Cavalo Entra Num Bar, Ver: Amor ou Até ao Fim da Terra. Com a VISÃO, falou sobre a literatura e a política, o passado e o presente, o humor e a vontade de compreender o outro.

Costuma-se dizer que os escritores são os historiadores do presente. Revê-se nessa ideia?
Desejo apenas contar uma boa estória. No que toca à memória, precisamos de duas dimensões: a dos factos, que implica investigações, elencar datas, ler diários, e a da voz das pessoas, tentar imaginar-nos numa situação histórica. O Holocausto é um acontecimento muito importante para qualquer judeu e para qualquer pessoa. Os historiadores detalham todos os elementos, mas o que me interessa é como é que uma família judia, perseguida, encurralada, apanhada, em vários países, foi obrigada a cavar a sua própria sepultura antes de ser executada. Em alguns casos, os membros dessa família tiveram de se despir, o que é outra humilhação. Estas são as coisas que nos colocam no lugar destas pessoas.

Os pequenos detalhes, a vivência do quotidiano?
Sim, de uma família, de uma vida, de qualquer família, de qualquer vida. O que me interessa é perceber de que forma a grande História choca com o que há de mais íntimo e delicado num ser humano. E como é que isso muda a relação com a própria vida, o amor, a vergonha.

A frase que evoquei remete para a distância de que o historiador precisa, mas também para outra ideia defendida pelo escritor inglês David Lodge: se queres conhecer uma cultura, lê romances, não livros de História.
Curiosamente, Shimon Peres, ex-primeiro-ministro e ex-Presidente de Israel, falecido em 2016, confidenciou-me qualquer coisa parecida. Sempre que era convidado a visitar um país que não conhecia, recebia os relatórios dos serviços sobre questões políticas, militares, económicas e sociais. Mas, no fim, pedia que lhe sugerissem dois ou três romances desse país. Só depois de os ler, dizia, estava preparado.

Mas como lida com o presente, a atualidade, os temas que marcam Israel, nos seus livros?
Todos os romances têm de ter uma dimensão política. Não deve ser a principal, mas, se se quer espelhar a realidade de um país ou de uma sociedade, isso deve estar presente. A política não está desligada da vida das pessoas, mesmo quando elas não querem ter nada que ver com os políticos. Serão sempre, pelo menos, quem paga a fatura, para o bem e para o mal. Hoje, sinto, em Israel, que as pessoas estão cada vez mais alheadas da realidade política, estão cansadas. Tivemos cinco campanhas eleitorais nos últimos anos. O que os partidos defendem é cada vez menos claro para os eleitores. Parece que tudo se resume a ser contra ou a favor de Benjamin Netanyahu.

Como se viu nas recentes eleições de 1 de novembro…
Exato. Nada sobre ideias, nada de profundo. O fosso entre as pessoas e o que se passa tem aumentado. O problema é que esse abismo nunca permanece vazio, há sempre alguém interessado em atulhá-lo: os fundamentalistas, os nacionalistas, os racistas, que têm a sua agenda e que estão a raptar o futuro (os nossos jovens). Quando escrevo uma história, inclusive uma história de amor, a dimensão política tem de envolver, de alguma forma, os amantes.

E o “como” se conta é tão importante como o “que” se conta?
O leitor tem de ficar agarrado e intrigado com a história, sim. Quando comecei a escrever, pensava que o leitor devia esforçar-se muito para compreender o que estava a ler. Cheguei a escrever um romance – felizmente, nunca o publiquei – que era um autêntico enigma. Nem eu, hoje, ao relê-lo, o consigo resolver. Não passei para uma literatura fácil, mas tenho a certeza de que a minha escrita é mais comunicativa, porque também eu agora sou. Escrever deu-me o dom do diálogo. Quando era novo, tinha muitas reservas em relação à capacidade de cada pessoa se explicar e fazer compreender. Claro que nem sempre somos compreendidos e muitas vezes projetamos no outro aquilo em que acreditamos, sem o ouvir. Mas o coração da literatura é entrar no mais profundo que há noutro ser humano. Ver a realidade através dos seus olhos.

A literatura é essencial porque combate a tendência para nos fecharmos, criar trincheiras, viver entre suspeitas–e diz-nos para ser e estar com o outro

Nesse processo de aprendizagem do outro através da literatura, houve algum romance que marcou um ponto de viragem?
Vários, mas há um que lembro com emoção. Lutei muito com a escrita de Até ao Fim da Terra. Não conseguia lidar com a minha personagem principal, Ora. Já em desespero, fiz o que todos fazemos quando nos desentendemos com alguém. Peguei numa caneta e num papel e escrevi-lhe uma carta.

À sua personagem?
Sim [risos]. Depois do “Querida Ora”, escrevi-lhe: “Por que razão és assim?” E quando, insistindo, lhe perguntei “Por que razão não te rendes?”, percebi quão idiota estava a ser. Não era ela que tinha de se submeter, era eu que tinha de aceitar a sua forma de contar a história. Foi aí que compreendi: a literatura é essencial porque combate a tendência para nos fecharmos, criar trincheiras, viver entre suspeitas – e diz-nos para ser e estar com o outro. Ao longo da vida, conhecemos tanta gente que vive uma vida paralela àquela que devia ter. Por medo, por vergonha, por pressão do seu tempo. Acredito que a literatura permite um reencontro dessas pessoas consigo próprias.

Os seus romances lidam muito com personagens perseguidas pelo seu passado. É uma fatalidade: o que fomos, o que um país foi, persegue-nos sempre?
Somos feitos de passado. Mas a questão é sempre a mesma. Que história contamos sobre esse passado? O que nos acontece quando contamos e recontamos o passado sempre da mesma maneira? Muito provavelmente, acabamos prisioneiros dessa narrativa. A visão do que foi impede-nos de evoluir, de nos libertarmos e de agarrar todas as possibilidades do futuro. Falo de indivíduos, mas também de estados e nações. Todos os países precisam das suas mitologias, das suas praças com grandes estátuas, dos seus heróis em cavalos, em cima de enormes pedestais. Mas, ao fim de algum tempo, vale a pena perguntar se realmente precisamos de tudo isso, dessas praças, dessas esculturas, dessa visão monolítica do passado. Se calhar, podemos permitir-nos outras histórias, incluindo as dos nossos “inimigos”. As histórias do medo, da miséria, da justeza dos seus argumentos. No fundo, contar histórias antigas com novas palavras e abordagens.

Isso seria positivo também para Israel?
Certamente. Deixar que diferentes narrativas se combinem e dialoguem permitirá certamente outros pontos de vista e, sobretudo, ver as questões a partir de fora. A nossa identidade não sairá enfraquecida. Não posso garantir que isso trará uma paz definitiva, mas tenho a certeza de que a paz nunca acontecerá sem esse processo.

Essa necessidade de ouvir as histórias do outro é ainda mais urgente no paradoxo do mundo atual: globalizado, todo ligado, mas cada vez mais fechado em bolhas?
Sim. Procura-se apenas impor uma história, sem grande abertura ou flexibilidade. Nada disto implica apagar o passado, qualquer que ele seja. Mas, se há uma ferida numa sociedade, numa nação, seria muito útil construir uma nova e mais alargada relação com ela. Nunca esquecer, mas movermo-nos um pouco para um lado, um pouco para o outro, encontrar novas perspetivas. Não estou a ser romântico, a imaginar os israelitas e os palestinianos a andar de mãos dadas em direção ao Sol. Mas vejo-nos a reconhecer que, por vezes, houve motivos para cada um de nós agir da maneira que agiu. Nada mais do que isso, o que já é muitíssimo num clima de ódio e desconfiança entre israelitas e palestinianos. Seria uma grande vitória.

A convicção de que, num conflito, temos sempre de escolher um lado pode ser uma ratoeira?
É quase inevitável escolhermos um lado, todos o fazemos. Gostava que essa escolha tivesse mais nuances, mais fissuras, mais dúvidas.

O lado que escolhemos é, muitas vezes, influenciado pela geografia. Como se tem visto a invasão russa da Ucrânia em Israel?
Devido às relações especiais com a Rússia, a reação inicial foi muito hesitante. É preciso não esquecer que a Rússia é um aliado da Síria, com muitas tropas e forças junto à fronteira norte do nosso país. Não há interesse nenhum em escalar qualquer conflito. Mas, a partir do momento em que se tornou intolerável assistir ao que a Rússia estava a fazer, em particular a civis, Israel tomou uma posição a favor da Ucrânia. Podemos criticar o prolongamento da hesitação, e houve, de facto, um alívio quando se tomou uma posição.

Nesta guerra, também estamos perante feridas e histórias do passado que são contadas sempre da mesma maneira, com as mesmas palavras?
É um confronto de mitos. Mesmo que se chegue a um cessar-fogo, depois de um longo e doloroso banho de sangue, essas feridas vão permanecer, não sei se por uma, duas ou mais gerações. As pessoas estão intensamente presas às suas histórias nacionais. Há elementos nos dois países que podem facilmente voltar a inflamar o conflito. É uma situação muito complicada. Resta-nos esperar que a vontade de diálogo seja mais forte.

No livro A Cegueira, Marc Ferro defende justamente que o motor da História é o ressentimento. Será um pessimista?
Pelo contrário, muito realista. As grandes situações históricas não são decididas em palácios, parlamentos ou corredores de governo, mas sim nas cozinhas, nos quartos de criança ou de adultos. É a acumulação de sentimentos íntimos de muitas pessoas.

Não seria necessário ter lido Um Cavalo Entra num Bar para perceber que é um escritor que recorre muitas vezes ao humor. Em que medida ele é importante numa história e numa vida?
O humor é a súbita mudança de perspetiva de que tenho vindo a falar. De repente, estamos a fazer qualquer coisa inesperada e a realidade muda. Escorregas numa casca de banana e vês tudo ao contrário. O humor acompanha o ser humano nas situações mais desesperadas ou decisivas. É uma forma de dizer que ainda se está vivo, de reclamar o direito a escolher o nosso ponto de vista. Como diz uma das minhas personagens, quando estás a rir, está a respirar. Mas ter humor não é ser cínico ou parodiar. Isso apenas gera distância.

Na sessão na Livraria Lello, que o trouxe a Portugal, disse que não queria ser vítima. Em que sentido?
O estado mental da vítima está encrustado em qualquer judeu. E com razão. Temos sido o alvo de muito ódio e de muitos estereótipos. Mas eu detesto esse lugar – não quero que ele me prenda ou seja uma desculpa para deixar de fazer o que quer que seja. O lugar da vítima pode conduzir e legitimar a passividade. Não quero isso. Quero ser um agente de mudança, ativo e criativo em todas as situações, o que não é possível se estivermos paralisados.

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