Capicua: “Muito possivelmente irei deixar a música a médio prazo, mas nunca poderei deixar de escrever, porque dependo da escrita para digerir as dores da existência”

Capicua: “Muito possivelmente irei deixar a música a médio prazo, mas nunca poderei deixar de escrever, porque dependo da escrita para digerir as dores da existência”

A ligação às palavras nasceu antes de saber escrever, alimentada por lengalengas e jogos feitos com o pai. Na infância, a escrita foi a sua primeira vocação identificada e valorizada. Ana Matos Fernandes, ou Capicua, o nome de guerra, fez da música o principal ofício. No final de agosto, lançou Aquário (ed. Companhia das Letras), livro que reúne crónicas escritas para a VISÃO, entre 2015 e 2021, misturadas com pequenos textos, poemas e letras. Da relação com o ofício à maternidade, das questões de género à precariedade do trabalho, passando pelas ironias da existência, Capicua oferece uma janela para os seus mares interiores.

Ainda se lembra dos primeiros textos que escreveu?
Lembro-me de um deles, que a minha professora até quis editar num livro da terceira classe e que o meu pai guardou. O texto tinha muito das memórias dos verões no campo e falava de ver um pôr do Sol atrás de um espigueiro. A professora achou muita piada à imagem, mas, mais do que uma metáfora, era mesmo um espigueiro com o qual eu tinha uma relação afetiva [risos]. Desde esse poema que foi muito óbvio que as pessoas valorizavam o meu talento para a escrita, e lembro-me de sempre gostar de escrever, sobretudo em rima. Quando escrevia, tinha uma angústia associada de que as pessoas não iam ler o poema com a música que tinha imaginado na cabeça. Ao encontrar a cultura hip-hop, na adolescência, identifiquei-me com a inventividade dos rappers e com a ideia de que a poesia pode ser para todos, no sentido de que o rap democratiza o ofício da escrita. É algo muito exigente do ponto de vista técnico e também informal, recorre muitas vezes ao português não canónico. Resolveu o meu problema de imprimir musicalidade, tempo e cadência aos versos, como também permitiu que a minha escrita florescesse e chegasse às pessoas.

O ritmo da escrita é essencial?
Para mim, as palavras sempre tiveram música. O meu interesse pelas lengalengas, que, mais recentemente, tenho explorado enquanto formato, com o meu projeto de música para crianças, o Mão Verde, é muito exigente do ponto de vista métrico e da musicalidade intrínseca às palavras. As crianças acham piada a esse encarreirar de aliterações. É aí que encontro a dimensão lúdica das palavras. Claro que o sentido é tão ou mais importante, e dar-lhe o mesmo protagonismo é bastante exigente e faz com que a escrita nunca deixe de estimular-me. Na prosa, embora esteja mais livre desse exercício e após ler as crónicas que escrevi nestes últimos anos, fui encontrar algumas bengalas ou recursos recorrentes que são óbvios. Há as repetições, as enumerações, um ritmo que não largo que vêm desses anos a trabalhar a rima e a métrica. Quando a Mafalda Anjos me convidou para escrever quinzenalmente na VISÃO, obrigou-me a ter uma disciplina e uma produtividade que me ajudaram a criar um estilo, um conjunto de recursos que tornaram o caminho mais fácil.

O que lhe ensinou a escrita das crónicas?
Deu-me uma lente aumentada sobre a realidade. Escolher o tema é o que mais atormenta. Agora escrevo semanalmente no Jornal de Notícias e dupliquei a minha angústia. Fiz um esforço para combinar crónicas mais pessoais com outras mais políticas ou sociais. A minha experiência era um pretexto para ter uma relação mais abrangente com a atualidade e para me relacionar com o mundo a partir da minha varanda. O facto de a VISÃO ter uma comunidade fiel de leitores permitiu que as pessoas me acompanhassem ao longo de seis anos e criassem, elas próprias, um fio narrativo da minha vida e da minha visão do mundo. Foi uma experiência muito enriquecedora, e a prova disso é que consegui selecionar crónicas de que muito me orgulho e juntá-las com outros registos, porque a partir delas tive muitas ideias para letras.

A música nunca foi só entretenimento ou uma busca do belo, tem uma utilidade e um impacto no mundo enquanto veículo de uma mensagem. Tenho de aproveitar o microfone na mão e falar das injustiças

Como foi o processo dessa seleção de crónicas?
Muitas estavam presas à atualidade e resistiram pior ao tempo; outras estavam mais desgarradas. Optei por agrupar os textos em quatro grandes capítulos: o primeiro fala do meu quotidiano, das coisas de que gosto e me angustiam; o segundo tem que ver com territórios e geografias, com as cidades que habitei, as viagens que fiz, a minha relação com o mar e com as ilhas; o terceiro ficou para as minhas causas e questões da atualidade, e o quarto aborda a maternidade. Tinha ainda textos inéditos, poemas e letras que fui associando a estes temas. Quando terminei a minha relação com a VISÃO, pensei que seria o momento ideal para pegar em tudo e reler. No início, a minha síndrome do impostor estava mais assanhada. Mas depois foi um processo prazeroso, fiquei surpreendida com alguns textos e com confiança para publicar.

Sente que se cumpriu enquanto rapper?
Sim. Muito possivelmente irei deixar a música a médio prazo, mas nunca poderei deixar de escrever, porque dependo da escrita para digerir as dores da existência e é aquilo que me faz feliz do ponto de vista criativo. A música permitiu que as minhas palavras chegassem às pessoas, mas não sei por quantos anos mais farei música, pelo menos no palco. Poderei escrever para outros músicos. A escrita tem-se tornado cada vez mais essencial à minha sanidade e realização pessoal. No meu último disco, tenho uma música, Carta a Jovens Poetas, inspirada no livro de Rainer Maria Rilke, e tem lá um excerto declamado pelo Pedro Lamares, que é sintomático dessa experiência. Se escrevermos por necessidade vital, como quem bebe água, não faz sentido perguntar aos outros se os nossos versos estão bons.

Sempre foi uma defensora de causas. Era importante usar a sua voz para passar uma mensagem?
A família também teve influência. A primeira música que ouvi era politizada; os meus pais ouviam José Mário Branco, Zeca Afonso, Sérgio Godinho. A música e a palavra sempre vieram juntas: a palavra enquanto mensagem e não só enquanto objeto estético. A relação com o ativismo e com o protesto sempre foi óbvia. Quando encontrei o rap na adolescência foi quase como chegar a casa; a palavra também era ferramenta e megafone. A música nunca foi só entretenimento ou uma busca do belo; tinha uma utilidade e um impacto no mundo enquanto veículo de uma mensagem. Quando comecei a escrever já era uma miúda politizada, havia militado num partido de esquerda, fazia ativismo, a música espelhava a minha vida. Aquilo que me preocupa do ponto de vista social e político é tão importante como as minhas experiências emocionais. Tenho de aproveitar o microfone na mão e falar das injustiças, das coisas que me revoltam, das minhas preocupações sociais.

Dedica muitas das suas crónicas à experiência da matrescência. Aproveita o tema para abordar as desigualdades de género…
A maternidade é tão transformadora… e surpreendeu-me o impacto que teve na minha identidade, prioridades, escolhas, em tudo! Os textos ajudaram a digerir esse processo. Há também uma razão política. As questões da maternidade foram muito silenciadas ao longo da História. Eram coisas de mulheres, menores, de que os livros e a música não falavam. Só nos últimos cinco minutos é que tivemos a oportunidade de trazer estes temas para cima da mesa, de desenterrar a solidão e a exaustão maternas que, nas últimas décadas, com a atomização das nossas sociedades, se tornaram muito pesadas. Como as mulheres entraram no mercado de trabalho, estão a acumular essa responsabilidade com a carreira. Estas questões são muito importantes porque ditam o que é a desigualdade prática no quotidiano das empresas, na ascensão na hierarquia, na mobilidade social.

Incluiu no livro muitas crónicas sobre a pandemia. Precisamos de digerir esta experiência?
Sem dúvida. Escolhi publicar essas crónicas porque falam de uma experiência tão fora do tempo, tão distópica, que mesmo no futuro será interessante ler o que passámos nesses meses. Se tivesse agora de escrever sobre o confinamento, teria muita dificuldade. Só mesmo embrenhada na experiência é possível fazer jus às emoções que vivemos. O regresso à realidade faz-nos esquecer grande parte daquela mistura de emoções: medo, apreensão, mas também uma espécie de hiperatividade online, toda aquela loucura de nunca sabermos quando podíamos sair, toda a incerteza.

A comunidade artística ainda está agarrada às tábuas de salvação…
Sim, foi bem frustrante. Perdemos muita massa crítica. Muitas pessoas que trabalhavam no setor da cultura foram para outras profissões; é difícil encontrar equipas técnicas, as empresas estão desfalcadas, e até do ponto de vista logístico o impacto é brutal. Do ponto de vista pessoal, foi-me muito difícil, porque tinha acabado de lançar um disco, que fiz com sangue, suor e lágrimas, e com uma criança recém-nascida. Um mês depois, começou a pandemia. Toda a agenda de concertos foi ao ar. Houve pessoas que passaram muito mal e, nesse sentido, sou uma privilegiada, porque tinha uma poupança que me permitiu não ter dificuldades. Vamos demorar muito tempo a recuperar a força anímica e a saúde mental, porque foram meses que ainda não conseguimos medir.

Sente que a escrita das crónicas lhe moldou o pensamento?
Já era uma pessoa atenta, mas escrevê-las obriga-me a formar uma opinião pessoal sobre os temas, exige-me um olhar crítico a filtrar a informação e a produzir uma perspetiva própria. Ainda bem que faço este exercício, porque atualmente estamos expostos a uma grande quantidade de informação e, se não tivermos a oportunidade de cultivar um espírito crítico, somos engolidos pela algazarra tóxica das redes sociais e das opiniões preformadas.

Está mais preparada para entrar naqueles programas de comentário político que tanto aprecia?
Não gostava de fazer parte; só gosto de assistir ao pugilismo de argumentos, de reconhecer as idiossincrasias de cada comentador, as pequenas desonestidades intelectuais e de observar com o meu espírito crítico mas com muito distanciamento.

Numa das crónicas, falou do mundo cada vez mais polarizado e do medo de que uma frase fosse mal interpretada ou interpretada como sendo ofensiva. Está mais politicamente correta?
Não é uma questão de ser politicamente correta ou de autocensura. Mas se for possível utilizar uma linguagem menos opressiva e mais inclusiva, isso será ótimo. A minha questão tem mais que ver com os linchamentos nas redes sociais. Basta uma frase descontextualizada, à procura do clickbait, para surgirem insultos automáticos. Isto traz muita toxicidade ao espaço público e é opressivo, porque as vítimas, muitas vezes, não têm estrutura emocional para lidarem com este tipo de cancelamentos, ameaças, mensagens de ódio. Sou uma pessoa sensível, não tenho maturidade para, eventualmente, na roda aleatória da internet, ser premiada com um linchamento.

Há um exercício que gosta de fazer e que é pensar no que o momento e o mundo lhe pedem. Consegue fazê-lo agora?
Não. Neste momento preciso de ficar mais quieta, a observar, porque continuamos no olho do furacão, está tudo em mudança. O que estamos a viver é tão diferente, transformador e instável que ainda não tenho esse distanciamento. A minha vontade é parar por uns meses e perceber o que tenho para dizer ao mundo, sem qualquer arrogância. Ainda sou incapaz de contribuir com algo novo, do ponto de vista artístico. Estou numa fase de pousio, porque estamos em areias movediças e, enquanto não sentir alguma solidez debaixo dos pés, não consigo dar o próximo passo.

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