“A partir do momento em que o livro é publicado, acabou a experiência artística do escritor. Vamo-nos distanciando da arte, como um filho adulto que vai viver a sua vida”

“A partir do momento em que o livro é publicado, acabou a experiência artística do escritor. Vamo-nos distanciando da arte, como um filho adulto que vai viver a sua vida”

Em 2013, depois de quase uma dezena de contos escritos e de três romances publicados, Andréa del Fuego quis desacelerar: sentia falta de se deliciar com o processo artístico de escrever um livro. No horizonte? A história de um “homem bom, que não rende nada”. Porém, os anos foram passando, o homem bom revelou-se teimoso e ainda não saiu da cabeça da autora. Mais despachada foi Cecília Vilela, uma mulher independente e pragmática que fez Andréa del Fuego – nascida há 47 anos em São Paulo, no Brasil – largar o realismo mágico e afastar-se do estilo que lhe valeu, em 2011, o Prémio Saramago com Os Malaquias, um romance sobre a sua própria família. Agora, em A Pediatra (Companhia das Letras, 208 págs., €16,60), escrito em poucos meses, conta a história de uma profissional tão fria que não gosta de crianças. A vida de Cecília dá uma volta de 180 graus quando se encanta com Bruninho, o filho do amante. A partir daí, esta médica embarca descontroladamente numa viagem que nunca pensou viver: a maternidade.

A premissa é insólita: uma pediatra que não gosta de crianças. De onde veio esta ideia?
Há mais de sete anos que estou no processo de escrita de uma história para a qual ainda não encontrei o tom. O protagonista é um jovem cuja mãe morre na décima página. Um dia, senti que devia dar mais espaço à mãe: rabisquei umas ideias, gostei da voz feminina, mas a história não avançou logo. De repente, tive uma ideia: uma pediatra que não gosta de crianças. A partir daí, já sabia que a história se ia desenrolar naturalmente – o ponto de partida era muito bom.

Todo o livro foi surgindo de uma forma natural?
Só soube o final do livro quando o escrevi. Não havia estrutura prévia: confiei na força gravitacional da história. Fiquei muitos meses a reescrever as cinco primeiras páginas, até encontrar o tom disfuncional da Cecília. Quando encontrei esse tom, só demorei um mês a acabar o livro. Há muitos anos que não escrevia com tanta vontade.

Esse carácter disfuncional da Cecília pode simbolizar a sua incapacidade de lidar com a infelicidade? Ela até tenta fugir da fibromialgia de que sofre…
Não gostar de doenças significa não gostar de nós mesmos. As doenças fazem parte de nós – e a pandemia dos últimos dois anos é prova disso. Quando o pai adoece com uma pericardite, ela deixa de acreditar na infalibilidade do pai. Até aí, vê-o sempre como um homem e um médico perfeito.

É verdade que, para escrever este livro, falou com dois pediatras?
É verdade, fiz uma grande pesquisa: li muito sobre doenças, medicamentos e tratamentos. Aliás, sou hipocondríaca: não me custou nada! [Risos] Depois, passei para as conversas. Queria saber mais sobre o Conforto Médico, uma área do hospital onde os médicos descansam e deixam de lado a profissão. Para isso, fui falar com o pediatra do meu filho. Ele foi muito discreto, quase desconversou. E, aí, construiu-se todo um cenário – “a imaginação vai ser pior que a resposta”, pensei. Nas redes sociais, há muitos médicos que falam da intimidade nos hospitais. O que eles não imaginam é que há uma escritora a observar! Os médicos no Brasil têm uma imagem quase de impunidade. Queria descortinar os jogos de bastidores entre os médicos – e que, no livro, são evidentes com a concorrência entre a Cecília e o Jaime, um neonatologista que lhe rouba muitos partos.

E quanto à outra pediatra com quem falou?
Em 2019, fiz uma residência literária em Penela, perto de Coimbra. Nessas três semanas, uma das idosas com quem falei era uma antiga pediatra. Certo dia, perguntei-lhe: “Quando se é pediatra e o filho adoece, é possível tratar dos próprios filhos?” E ela respondeu com veemência: “Não! Esquecemos toda a medicina.”

Isso explica a cena de quando o Bruninho adoece e a Cecília petrifica.
É um momento-chave do livro. Ela perde-se completamente e explica muito do que é o final do livro – que eu não quero revelar! [Risos] Aliás, o final da Cecília é uma de muitas versões. E isto também é curioso na literatura… A personagem fica comigo, para sempre.

A personagem também a apaixona a si.
Escrevi a salivar: não podia esperar pelo dia seguinte para regressar ao texto. Apercebi-me de que estava a escrever uma personagem quase como se a estivesse a vigiar e ela não soubesse. Tive um prazer de detetive, quase.

Os meus livros não são um manifesto explícito, acho que as minhas discussões cívicas se infiltram naturalmente nas minhas obras

Ela não ia gostar nada de si, então…
Nada! Até porque eu sou o tipo de mãe que ela rejeita. Primeiro, quando engravidei, tive ajuda de doulas [assistentes de parto, sem formação obrigatória na área da saúde, que acompanham a gestação com foco no bem-estar da mulher]. Depois, tive um parto humanizado, em que fui eu que decidi o sítio onde ia dar à luz e todos os procedimentos. A Cecília criticava todas estas práticas. Além disso, ela ia detestar ser médica do meu filho: ele tem asma, uma doença crónica, e ela ia logo encaminhar-nos para um especialista.

Em 2016, numa entrevista à Folha de São Paulo, disse que nunca escreveria um livro sobre a maternidade. Mas aqui chegados…
Fui apanhada! [Risos] Este livro fala de uma maternidade diferente, quase simbólica, mas é pura maternidade. 

E esta maternidade faz com que a Cecília goste da vida?
Quando escrevi o livro, fiquei a pensar: “Será que este livro tem uma moral? Será que mostra que a mulher não pode escapar do seu instinto materno?” A Cecília não ganha este instinto, não fica com vontade de ter filhos. Ela gosta só do Bruninho, de mais nenhuma criança. E esta conexão é algo muito profundo: é um cheiro arrebatador, macio, que lhe faz cócegas em algum sítio do cérebro. E esta ligação não veio com as hormonas de estar grávida: veio com a experiência, com um simples acontecimento da vida.

Como surgiu a ideia desta maternidade diferente, mas visceral?
Acima de tudo, queria fazer uma homenagem às mães adotivas: são um exemplo do que é cuidar de uma criança. Depois, há o lado da obsessão. A Cecília já tinha um certo funcionamento psíquico. Antes do Bruninho, já tinha perseguido o seu amante, o Celso, e o Jaime, o seu concorrente… Até a relação com a empregada roça o assédio moral: a Cecília sente-se superior à Deise, sabe que não vai ter resistência e vai entrando na vida da empregada mais do que devia. A Cecília quer controlar tudo. Parece que estamos numa festa e só a música dela é que pode tocar. Ela não ouve ninguém…

Até porque, ao longo de todo o livro, só temos acesso aos pensamentos dela, nunca a diálogos.
Exatamente. Enquanto critica o Jaime, ela descreve partos no domicílio que nunca presenciou. Até quando este médico dá uma palestra, só temos acesso ao que ela seleciona.

Mas, por vermos tudo a partir do prisma dela, conhecemos a intimidade desta mulher? Há um grito feminista por detrás da obra?
É uma pergunta interessante… Sinceramente, até acho que a Cecília é um pouco machista: para ela, há sempre uma hierarquia. Por exemplo, não reconhece autoridade à mãe, porque ela não ocupa um lugar de poder: é enfermeira e podia ser médica. Mas, por outro lado, a Cecília é muito competitiva com os homens e preza a sua liberdade – aliás, o prazer que tive a escrever esta história deve-se ao facto de a Cecília ter fugido muitas vezes ao meu controlo. Agora, pergunta-me: “Se o protagonista fosse um homem chamado Osvaldo, causava menos estranheza ler de forma crua os pensamentos da personagem deste livro?” A resposta é sim.

Quando mergulhamos a fundo na consciência da Cecília, estamos também a perceber as razões de ela ter estes preconceitos?
O comportamento da Cecília é muito influenciado pela solidão que sentiu quando era jovem. Ela é muito disfuncional: não visita museus, não tem um namorado, odeia o trabalho. Até o pai, que adora, chega a irritá-la! Ela não vê arte em nada. Aliás, este é um tema que me intriga muito. É assustador pensar que somos programados pelo ambiente que nos rodeia e que não controlamos.

No livro, há mais personagens mulheres do que homens. É uma tentativa de dar mais espaço às mulheres na literatura?
Os meus livros não são um manifesto explícito: acho que as minhas discussões cívicas se infiltram naturalmente nas minhas obras. Na primeira frase da escrita, defino um tom para o livro. A partir daí, vou-me submetendo a essa linguagem, neste caso, uma história na primeira pessoa. Quis escrever um livro em voz feminina porque nunca o tinha feito. N’A Pediatra, encontramos a questão feminista nas entrelinhas. As minhas preocupações cívicas acabaram por entrar no tom da história.

E é por isso que as únicas personagens que têm nome antes do aparecimento do Celso são mulheres – a Deise e a Maria Amélia, a obstetra amiga da Cecília?
Verdade. A Deise é uma personagem que tem um grande destaque no livro: prova disso é já termos falado muito dela. Há uma intimidade entre a Cecília e a sua empregada – e, num dos finais alternativos, ela até teria mais protagonismo… Não posso revelar mais!

O livro foi escrito em 2019. A pandemia teria mudado a forma como os médicos são descritos?
Tudo. Até devido à forma como a crise pandémica foi gerida no Brasil. A Cecília não nega a Ciência – aliás, valoriza muito o protocolo da Ciência. Houve médicos, aqui no Brasil, que nunca respeitaram a Ciência desde o início da pandemia. Não consigo prever o que seria o livro se fosse escrito depois da pandemia. Só sei que seria diferente. De certeza.

Mas esta obra pode tornar-se um bom lembrete da verdade e da importância científica.
Sim, sem dúvida. A Cecília valoriza muito a capacidade científica – quando perde clientes, diz sempre que vai superar essa fase porque estudou, teve notas altas e tem provas dadas como pediatra. O que lhe falta é a outra parte do que é ser médico: a parte do cuidado, de humanidade, da sensibilidade… 

Sentiu pressão para escrever este livro? Tendo em conta que já ganhou um Prémio Saramago…
Acho que posso sempre defraudar as expectativas: cada livro meu podia ter um pseudónimo diferente. São escritoras diferentes. É difícil encontrar pontes entre os meus livros. Também sei que quebrei o expectável – fiquei nove anos sem publicar. Ainda assim, não me arrependo: foi um tempo para me encantar com a escrita. É um trabalho artístico, que não tem nada que ver com a publicação. A partir do momento em que o livro é publicado, acabou a experiência artística do escritor: já pensamos na divulgação, no público, na capa… Vamo-nos distanciando da arte, como um filho adulto que vai viver a sua vida. Aliás, eu até me esqueço das histórias dos livros que escrevi!

N’A Pediatra, não há realismo mágico. Este livro foi uma viragem?
Em 2011, saiu Os Malaquias, um livro de prosa poética e de realismo mágico. É um livro sobre a minha família, e as metáforas ajudaram-me a contar a história. Aqui, o texto é muito mais cru. Quase não há metáforas, não há prosa poética, não há realismo mágico – mas há um absurdo existencial. Agora, não sei muito bem para onde vou…

É esse desconhecido que a fascina na literatura?
Acho maravilhoso. Na vida, é um desespero! Na escrita, é isso que se espera.

Vai continuar a escrever o livro que começou há já sete anos?
Esse livro é sobre um homem bom, que corresponde a todas as expectativas, que não tem nenhum desequilíbrio… Vou insistir nele – talvez não seja tão bom assim… Não largo nenhum livro. Esse também há de ficar pronto! [Risos]

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