Aos pais que lhe dizem que as suas crianças gostam de fósseis, Juan Luis Arsuaga, 67 anos, costuma aconselhar que leiam antes Shakespeare. Crítico da excessiva especialização que a Ciência atingiu, o paleontólogo, catedrático da Universidade Complutense de Madrid, também não gosta da atitude que assaca à Ciência responsabilidades na resolução de todos os problemas do mundo. “Não se comportem como crianças pequenas”, apela Arsuaga, nesta entrevista à VISÃO realizada em Lisboa, onde recentemente lançou Vida, A Grande História (Temas e Debates, 578 págs., €24,40), um livro que pretende responder à maioria das perguntas sobre a evolução humana. Em 1992, a sua investigação sobre o crânio número 5, o crânio humano mais completo do registo fóssil da Humanidade, foi capa da revista Nature e, em Portugal, também trabalhou com a equipa do crânio 3, encontrado no complexo arqueológico do rio Almonda, em Torres Novas.
Há uma resposta fácil para a pergunta mais importante de todas: porque estamos aqui?
Há, de facto, uma forma simples de responder. Poderíamos imaginar que existem cinco mil planetas e que, em mil desses planetas, existe vida como a nossa. E diríamos que isto é o normal, que nada tem de extraordinário. Também poderíamos pensar que existem muito poucos planetas com vida e, então, teríamos de dizer que houve algum acontecimento fortuito no nosso planeta que fez com que fosse o único com vida. Isto é, se só olhássemos para a estatística, a pergunta estava respondida. Nos próximos 20/30 anos, é natural que consigamos localizar outros planetas e poderemos vir a saber se lá existe vida. Até que tal ocorra, porém, a única maneira que temos de responder à pergunta é estudar a história da vida do nosso planeta.
Questionamo-nos porque estamos aqui, essencialmente, porque queremos prever o futuro?
Pela sua própria natureza, o futuro é imprevisível. Devemos preocupar-nos em construir o futuro, não em prevê-lo. Não temos de nos perguntar como vão ser os dias que aí vêm, temos de nos questionar como queremos que esses dias sejam. O futuro não está escrito, somos nós que o fazemos, bem ou mal, todos os dias. Não é algo que nos aconteça. Claro que, se cair um meteorito, será uma grande tragédia, mas o futuro é feito por nós. Como vai ser o futuro? Devíamos eliminar essa pergunta.
Não nos livrámos do determinismo?
Do ponto de vista social, o determinismo não existe. O que temos de pensar é como vamos participar na construção do futuro. Na história da Humanidade, há uma tendência, que é a de fazer sociedades cada vez mais complexas. Não conhecemos mais do que este planeta, mas este planeta representa, ao mesmo tempo, muitos planetas. As sociedades complexas desenvolveram-se de forma independente no mundo asteca, no mundo inca, na Ásia, na Europa… Poderia até dizer-se que houve um certo determinismo, que, chegados a um ponto da evolução humana, por alguma razão que desconhecemos, a agricultura e a pecuária foram imprescindíveis. Não parece ter sido por acaso, se alguma coisa ocorre 20 vezes, não é por acaso. Então, há que perguntar: porque aconteceu há dez mil anos? Porque não aconteceu antes? O Homo sapiens já existia antes, quem sabe se não era uma soma de uma espécie que já existia com uma alteração climática.
O que a paleontologia nos pode dizer sobre a vida?
A paleontologia pode contar-nos a história e as causas da história. Pode explicar-nos porque a história é como é. Mas a paleontologia não é uma narração, isso é uma das coisas que tento explicar aos meus alunos e eles não aceitam. Querem que eu lhes conte um conto, que lhes conte a evolução humana como se fosse um relato, desde o princípio até ao final, como se fosse um romance, Anna Karenina, um livro qualquer.
Mas não é a essa a função do professor?
Não, de modo nenhum. O que os professores devem fazer não é contar o que aconteceu, mas tentar perceber porque aconteceu o que aconteceu. Não se trata de relatar que o Império Romano colapsou, o que temos de tentar averiguar é porque o Império Romano do Ocidente colapsou. E mais adiante, também temos de pensar por que motivos os impérios colapsam. Devemos saber por que razão, na Baixa de Lisboa, o traçado é em linha reta. E porque existem cidades com ruas assim e outras com ruas labirínticas? Quero porquês. Mas os meus alunos só me dizem: conta-me um conto, que eu repito-te tudo no exame.
Pensadores best-sellers como o israelita Yuval Noah Harari, a que faz referência em Vida, A Grande História, contam essa história?
Irei participar num debate com ele, no Mobile World Congress [ocorreu na passada segunda-feira, 28 de junho, em Barcelona]. Julgo que Harari tem talento, na medida em que também busca as causas das coisas. Harari é inteligente, mas o seu contributo para, digamos, as ciências históricas é zero.
Porquê?
Harari conta bem a história e os seus livros leem-se facilmente. Conheço pessoas que leram Sapiens e que me dizem: bom, já sei toda a história da Humanidade [risos]. Que fazer então com todas as universidades do mundo? Com todos os departamentos de História? Vamos fechá-los? Harari já contou toda a história da Humanidade num livro de 500 páginas!
Não o considera um bom escritor?
Sim, é um bom escritor. E os seus enfoques são originais. Ainda há poucos dias comprei 21 Lições para o Século XXI, que ainda não tinha lido. Há um capítulo em que Harari diz que, quando os alemães estavam a começar a construir bombas teledirigidas para Londres e os americanos nem sequer sonhavam em fazer um míssil, já os japoneses tinha desenvolvido um míssil inteligente. Chamava-se kamikaze. É uma boa forma de tratar o tema, não é? Como digo, o seu contributo para a Ciência é zero, mas diz sempre coisas que valem a pena escutar, é original e brilhante. Por isso vende milhões de livros.
É importante os cientistas escreverem para o grande público?
Penso que devia mesmo ser obrigatório. Foi por isso que escrevi Vida, A Grande História. A maior parte dos meus colegas jubila-se sem ter escrito um livro. Como é possível só escreverem papers? Não é através de papers que as pessoas vão conhecer o nosso estudo, a nossa visão do mundo. Harari era um professor desconhecido da Universidade de Telavive, dava aulas em hebraico a alunos israelitas…
Isso relaciona-se com aquilo que diz ser a excessiva especialização da Ciência? Sabemos tudo sobre nada e nada sobre tudo?
Sim, claro. Os artigos que escrevo para a Nature ou para a Science são lidos, na melhor das hipóteses, por 30 pessoas. São ilegíveis para a maioria das pessoas, por serem demasiado especializados. Em Espanha também existe um debate sobre o facto de a Ciência ser feita em inglês, como dizem. Em primeiro lugar, é melhor ser em inglês do que em chinês ou em russo, parece-me. Em segundo lugar, aquilo que escrevo num paper não é em inglês que escrevo, são só fórmulas matemáticas e tabelas de números. É jargão científico, é “científico” [risos]. Às tais 30 pessoas que vão ler os meus papers, não interessa o texto, só interessam os dados.
Não existe diferença entre a Ciência e a divulgação científica?
Não, essa diferença não existe. O que escreveu Darwin? Divulgação ou Ciência? E Descartes? O livro que mais me marcou foi um livro de Jacques Monod [bioquímico que venceu o Prémio Nobel da Medicina, em 1965] que se chama Le Hasard et la Necessité. Trata-se, no fundo, de um livro de filosofia, pois explica porque o mundo é como é. Segue Demócrito, Epicuro e também tem um pouco de biologia. É preciso saltar a parte da química orgânica, que está ultrapassada, e ir logo para o final. O que quero dizer é que essa separação entre Ciência e divulgação científica não faz qualquer sentido. O que acontece é que há pessoas que voam muito baixo e, portanto, não têm nada para contar. Se voas alto, vês Lisboa e o Tejo, vês mais longe.
A pandemia veio recordar-nos a importância da Ciência para resolver os problemas do século XXI?
Eu, que sou cientista, digo: não creiam em mim. Nem a Ciência é uma religião, nem eu sou um sacerdote. A Ciência é o melhor método que temos para resolver os problemas, mas, por favor, não se comportem como crianças pequenas. A religião espera que as pessoas se comportem como se fossem menores de idade, na medida em que os problemas são resolvidos por sacerdotes e pelas autoridades religiosas. E, em relação à Ciência, as pessoas têm a mesma expectativa. Quando pergunto aos meus alunos como vamos resolver os problemas das alterações climáticas, eles respondem que não vão fazer nada, que a Ciência é que vai resolver isso tudo. Os meus alunos, que são muitas vezes alunos de Erasmus, têm amigos em Atenas, em Berlim, em Madrid, em Lisboa… Quando se casam, convidam vários amigos de cada uma destas cidades europeias para a cerimónia. Estão a ver o que isto significa? Qual vai ser a pegada carbónica deste casamento? E, quando eu lhes digo que é preciso renunciar a este tipo de coisas, eles respondem-me que não, que a Ciência vai resolver. Como se a Ciência fosse a nova religião.
Devemos preocupar-nos em construir o futuro, não em prevê-lo. O futuro não está escrito, somos nós que o fazemos, bem ou mal, todos os dias
É preciso fazer escolhas?
Sim, é preciso fazer escolhas. E é preciso as pessoas comportarem-se como adultos que são. Em Espanha, os meses em que existe maior consumo de eletricidade são os meses de verão, por causa do ar condicionado. Cada geração consome mais energia do que a anterior. Quando proponho aos meus alunos reduzirmos o consumo energético, eles respondem-me sempre com a crença de que Ciência vai resolver tudo. Não convertamos a Ciência numa nova religião. Que disse a religião sobre o coronavírus? Nada, nem o Islão, nem o judaísmo, nem o cristianismo. A religião não compete com a Ciência. A Ciência não é uma religião. É um método para conhecer a verdade, o melhor que temos, mas não toma decisões.
Na pandemia, a Ciência deu uma resposta importante: as vacinas.
A Ciência fez, de facto, as vacinas, que são o melhor que poderia acontecer–nos. Agora, pensar como se fabricam, como se distribuem, como se administram, se devemos comprá-las em Inglaterra ou na Rússia… Isso não é a Ciência que tem de dizer. Preocupa–me que a Ciência se tenha convertido numa espécie de nova divindade.
Mas a Ciência também deve ter preocupações éticas.
A Ciência existe para conhecer, para saber como se desenvolvem os embriões, por exemplo. O que fazemos com os embriões? A Ciência não tem nada que dizer sobre o aborto, apenas estuda como se desenvolve o embrião no útero. A mesma coisa para a modificação dos genomas. Há quem diga que nem o tomate se deve modificar. Também há quem argumente com as quotas de mercado da União Europeia. Pois bem, o que é que isso tem que ver com a Ciência? A Ciência não tem nada a dizer sobre a maior parte das coisas da vida, nem toma decisões pelos seres humanos. Só tem um propósito: entender como funciona o mundo. Não sou partidário de se santificar a Ciência porque considero que a Ciência se constrói sobre o debate e a discussão.
No caso da pandemia, esse debate e essa discussão nem sempre foram compreendidos. E, em alguns momentos, houve quem tivesse vaticinado: a Ciência errou.
Sim, durante meses, disse-se que o vírus se transmitia por contacto. Agora já sabemos que não, a Ciência enganou-se. O vírus apenas se transmite pelo ar. Aprendemos isso e agora já o sabemos. Não é grave, é assim que funciona a Ciência: vai-se aproximando dos problemas.
O que pensa dos movimentos negacionistas?
É como se não existissem. No caso da vacina, por exemplo, são muito poucos os que não querem vacinar-se. Como fenómeno psicológico ou sociológico, pode ser interessante entender as razões dessas pessoas, mas não são um problema. Nem vale a pena dedicar-lhes tempo.