Discreto, atento, de olhar penetrante e postura serena, o especialista holandês que se formou e fez carreira nos Estados Unidos da América tem uma visão lúcida sobre o estado do mundo e da natureza humana. Estuda a neurobiologia do trauma há meio século, publicou mais de 150 artigos científicos e tem uma vasta experiência clínica. O Corpo Não Esquece: Cérebro, Mente e Corpo na Superação do Trauma (Lua de Papel, 616 págs., €22) é um best-seller internacional que é fruto de 40 anos de trabalho. O livro conduz-nos pelos caminhos sinuosos da medicina até decifrar o stresse pós-traumático e mostra como as nossas mentes e os nossos corpos convergem na cura do trauma. Aprendeu-o, de resto, com os seus pacientes, a quem dedica a obra. Entre eles, um veterano de guerra que “sofria de recordações”, uma mulher que perdeu o filho num acidente de viação em que era a condutora, um casal encarcerado em acidente rodoviário, uma mulher violada, outra, vítima de incesto, um jovem abusado por um padre, uma criança que presenciou um atentado, bebés e crianças em luta pela sobrevivência, com cuidadores em quem não podiam confiar. Aos 77 anos, o mentor da Trauma Research Foundation subscreve as palavras do psiquiatra francês Pierre Janet, há um século – “Cada vida é uma peça de arte criada com todos os meios disponíveis” – e propõe uma abordagem inovadora, integrando a farmacologia, as técnicas de neurofeedback, o tratamento com psicadélicos, as terapias de consciência corporal e as artes expressivas.
“Os nossos corpos são os textos que transportam as memórias e por isso recordar é nada menos do que uma reencarnação.” Uma das muitas citações do livro sobre um tema comum: o que é o trauma?
Os estudos em neurociência mostram que temos um cérebro para tomar conta do corpo e que dispara quando surge uma ameaça, levando-nos a agir. No trauma, a resposta de defesa é o congelamento, que se opera na parte primitiva do cérebro. As reações à experiência repetem-se, sem se conseguir ter controlo sobre elas.
O que distingue o stresse pós-traumático daquele que temos todos os dias?
A maior parte de nós é sujeita a fatores de stresse baixos e volta ao ritmo normal. No trauma isso não acontece, fica-se preso na resposta de alarme, que não tem fim. Como a mulher que está na praia e sente terror se alguém se aproxima porque revive a violação de que foi vítima.
Como é que essa bomba-relógio, que o corpo carrega, afeta o próprio e os outros?
Imagine que vivemos juntos. Eu não lavei a louça. Fica irritada comigo e comporta-se de modo tão extremo que eu não vou poder fazer nada. Outro caso comum: a pessoa que é tocada no ombro e tem um sobressalto enorme. As reações intensas e dramáticas afastam os outros e a situação só muda quando se assume que é preciso lidar com as emoções de outra forma. Com frequência, só o fazem após terem passado por muitas experiências más.
Como é que a psiquiatria trata o “horror sem palavras”, a falta de consciência corporal?
Os psiquiatras nunca lidaram com isto, a maioria só se interessa por medicamentos. Precisei de me afastar dela para aprender outras maneiras pelas quais se pode melhorar. Regular o corpo, por exemplo, faz-se através de cânticos, danças, yoga, tai chi. Quase todas as culturas têm formas de acalmar o corpo, sem ser só pela palavra ou com comprimidos.
Em Portugal temos um ditado, usamos a expressão “fazer das tripas coração”. Conhece?
[Fica pensativo]. Às vezes, penso que seria interessante aprender português. Contaram-me outra, com muita graça: “Se a merda tivesse valor, os pobres não tinham cu.” [Risos.] Vocês têm uma cultura mais orientada para o corpo. O trauma envolve experiências viscerais, de coração partido, está alojado no corpo. É preciso aprender a falar com a criatura que o habita: “Eu vou tomar conta de ti.” Se o corpo está ansioso, dizer-lhe “vamos andar, respirar e alongar um pouco” ou “vamos cantar e sincronizar-nos com outros seres humanos”. É uma natureza primária elementar de que uma pessoa traumatizada se priva.
Perde-se o sentimento de comunhão experimentado num jogo de futebol, num concerto?
Sim, a primeira reação é defensiva: “Não quero, vou ter medo.” A meta é restaurar essa sincronização, seja com a música ou pelas sensações corporais.
Quando o trauma ocorre em idades precoces, as implicações são maiores?
O cérebro desenvolve-se a partir da experiência. Vivências negativas fazem com que a aprendizagem seja no sentido de lidar com o horror, de se defender dele, em vez de brincar e de aprender com os outros. Crianças que foram controladas, maltratadas, culpadas por coisas que não fizeram, sem nunca serem vistas ou ficarem seguras ao lado dos seus cuidadores, sentem-se aterrorizadas e mal consigo mesmas. O desafio é reprogramar os circuitos do cérebro e perceber o mundo de outra forma.
Crianças que foram controladas, maltratadas, culpadas por coisas que não fizeram, sem nunca serem vistas ou ficarem seguras ao lado dos seus cuidadores, sentem-se aterrorizadas e mal consigo mesmas
Os maus tratos na infância, a violência doméstica, os crimes e os acidentes graves marcam tanto como estar numa guerra, mas nem sempre são levados a sério. Porquê?
Nos EUA, vai havendo um maior reconhecimento do problema. O agente de segurança que espanca um negro e o marido que bate na mulher deixam marcas profundas. Para muitos americanos, isto é normal. Donald Trump, por exemplo, é uma pessoa traumatizada, um bully que humilha as pessoas por ter crescido num ambiente onde ser sádico, agredir os outros e ser vilão é a norma.
O caso de Nancy, consciente mas paralisada durante uma cirurgia, é arrepiante.
É uma história paradigmática. A médica acordou quando estavam a cortá-la e não conseguia fazer nada porque estava com os músculos paralisados. O trauma é isto: ficar refém da situação, no mais puro terror e desamparo. Isto também acontece quando se tem a sensação de viver num mundo arbitrário, em que tudo o que se sente, se pensa ou se faz não tem qualquer relevância.
A pandemia pode estar a catalisar processos de stresse pós-traumático?
Catalisar é um bom termo. A pandemia pode catalisar o trauma, mas não é traumática: é preciso que haja uma combinação de fatores externos e de predisposições internas. Estar muito tempo entre quatro paredes com a mesma pessoa amplia divergências e conflitos que, frequentemente, são atenuados através do abuso de álcool e drogas. O 11 de Setembro foi traumático para quem tinha maus casamentos ou traumas prévios. Este vírus força-nos a reorganizar as nossas vidas de forma diferente. A maioria das pessoas que conheço diz estar muito bem, até melhor do que antes: menos frenesim, mais contacto com os próximos e disponibilidade para si mesmas. É mais fácil quando se tem uma fonte segura de rendimento e alguém com quem se nutre um relacionamento respeitoso.
Como tratar a dissociação entre psique e soma e restabelecer a harmonia do organismo?
Levei muito tempo a perceber a relação entre um corpo desregulado e o medo e o desamparo que carrega. Foi preciso passar por estúdio de yoga, práticas de qi gong, eventos de tango, para chegar ao “ah, isto é que leva as pessoas a acalmarem-se!” Os médicos não são formados neste sentido.
Porém, a ciência comprovou, nos anos 1990, os efeitos da meditação e do yoga na saúde.
Vivemos numa sociedade capitalista, orientada para fazer dinheiro. Os hospitais servem essa função, com tratamentos caros, mas coisas simples como cantar, usar o movimento ou meditar não cabem nos hospitais. A minha investigação sobre o yoga mostrou que era mais eficaz do que os fármacos. Sabemos que o movimento ativo feito em conjunto é mais eficaz na depressão do que os antidepressivos. As clínicas não querem saber por razões económicas.
Saiu do Trauma Center e criou uma fundação com uma lógica diferente. Teve dissabores?
Não me trouxe popularidade. Quando se apresenta algo novo, há quem goste e quem não goste. No início, eu fazia parte do sistema tradicional, em Harvard. Estava a descobrir-se muita coisa sobre a medicação psiquiátrica. Correu bem, mas um dia dei-me conta de que não era esse o caminho e comecei a procurar outras referências.
Porque defende a inclusão de terapias não convencionais na prática clínica?
A minha abordagem é integrativa. Interesso-me pelos tratamentos com agentes psicadélicos e aqueles que envolvem o toque, algo que a neurociência nunca estudou. Descobri, por exemplo, que num primeiro encontro, em Porto Rico, as pessoas chegam a tocar-se 37 vezes, mas em Estocolmo podem não o fazer uma única vez. Somos mamíferos, precisamos de toque, do seu efeito protetor, que restaura o equilíbrio interno. Quem não acede a ele pode passar pior na atual crise pandémica.
Qual é o segredo do EMDR (dessensibilização e reprocessamento), de que fala no livro?
É um método muito estranho e eu mesmo me senti relutante em estudá-lo e usá-lo, mas revelou-se muito útil para quem vive assombrado por memórias traumáticas. As séries de movimentos oculares alteram os circuitos cerebrais sem envolver a linguagem. Não sabemos como isto se processa ao nível dos mecanismos de alarme do cérebro, mas põe fim ao impacto fisiológico dessas memórias. No final do processo, dizem: “Acabou, já não me perturba mais.”
Tratar o trauma pelo corpo, mas também pela linguagem. Porque ajuda fazer teatro?
O trauma leva-nos a ver o mundo de uma maneira rígida e fechada. No teatro, dizemos coisas que não são da nossa autoria. Imagine um ensaio da peça Macbeth, de Shakespeare, e a deixa da rainha má: “O meu pai, eu seria a primeira a matá-lo.” Incorporar a personagem pode ser uma experiência empoderadora. Levar alguém a expandir limites e a sentir-se noutra pele, a de um pedinte ou de um guerreiro. O corpo abre-se a uma série de possibilidades num ambiente seguro. Uma das perdas que me trouxe a Covid-19 foi impedir-me de fazer psicodrama: não é que seja melhor do que os agentes psicadélicos ou o neurofeedback, mas adoro fazê-lo.
Aproveito para perguntar como funciona o neurofeedback e se é um “remédio” eficaz.
Colocam-se elétrodos no crânio, ligados a um eletroencefalograma, no computador, que lhe dá feedback, como nos videojogos, e lhe permite optar por uma configuração em detrimento de outras. Realizei três estudos com resultados muito promissores: a manipulação das ondas cerebrais vai ser o futuro da psiquiatria e ajudar muita gente.
Ainda não referiu uma terapia de que diz maravilhas no livro e que usa o modelo familiar.
Devo-a ao meu amigo Richard Schwartz e pressupõe que temos diferentes partes em nós. Essas partes, zangadas, dependentes ou críticas, revelam-se em função das pessoas e das situações, mas não nos definem. Se tivemos pais controladores, é provável que essa faceta – “vê lá como é que te comportas” – esteja dentro de nós, porque nos ajudou a sobreviver. Mais tarde, esta defesa pode não ser adaptativa e comprometer o relacionamento com quem escolhemos estar. A vida não é simples para nenhum de nós e fazemos o melhor que sabemos. No trabalho com trauma, observa-se o que levou a pessoa a sobreviver, sem julgar. O caso da ideação suicida: em algum momento, foi uma saída possível para um enorme sofrimento. “Pelo menos, posso matar-me.” Ao aceitar esta parte e integrá-la, em vez de a excluir, é possível libertar-se dela e explorar outras formas de se sentir seguro.
Aprender a observar e a regular emoções é a via para se reconectar com os outros?
Sim. Cada um precisa de identificar aquilo de que o corpo necessita para se acalmar e se conter. Só então é capaz de estar atento ao que se passa à volta.
O oposto do “faz aos outros o que queres que te façam a ti”, portanto.
[Risos.] Ser generoso para os outros e terrível consigo mesmo é, infelizmente, muito comum.
Lembra-se de alguém que o tenha inspirado na cura de traumas coletivos?
Fui conselheiro da Comissão de Verdade e Reconciliação na África do Sul. Testemunhei o trabalho de Nelson Mandela e do arcebispo Desmond Tutu. Foram os melhores terapeutas de trauma que alguma vez conheci: muito serenos, centrados, responsáveis e disponíveis para nutrir e ajudar os outros, levando-os a movimentar-se e a cantar em conjunto.