O filósofo britânico Jules Evans, 43 anos, ficou surpreendido quando um artigo seu, publicado no início do mês na plataforma digital Medium, atingiu meio milhão de leitores, batendo todos os seus recordes anteriores. O tema era os “hippies nazis”, ou seja, as afinidades entre a filosofia New Age, um movimento surgido na década de 1970 ligado ao esoterismo e ao bem-estar, e a ideologia da extrema-direita. O autor de Filosofia para a Vida – E Outras Situações Perigosas (Bertrand) estabelece um paralelismo entre a atração dos movimentos alternativos e da extrema-direita por teorias da conspiração, que as redes sociais têm ajudado disseminar. Afinal, em que acreditam os “hippies nazis”? E o que têm em comum com Hitler? O investigador do Centro da História das Emoções da Universidade Queen Mary de Londres também deixa pistas sobre a forma mais eficaz de combater os extremismos.
Surpreendentemente, o movimento alternativo New Age e a extrema–direita têm bastante em comum. Os extremos tocam-se?
Durante a pandemia, fiquei surpreendido, e desconcertado, quando vi líderes espirituais da comunidade New Age a partilharem teorias da conspiração mirabolantes, potencialmente perigosas, e a defenderem que a Covid-19 é um embuste. Influenciadores New Age de todo o mundo partilharam a conspiração QAnon, de acordo com a qual há uma cabala secreta entre democratas e celebridades de Hollywood que trafica, abusa e mata crianças para beber o seu sangue. Donald Trump será a figura messiânica que vai salvar o mundo destes pedófilos demoníacos. Na verdade, creio que os líderes New Age descobriram que, quando partilhavam conteúdos relacionados com esta teoria da conspiração, recebiam imensas reações e conquistavam muitos seguidores. Acredito que algumas pessoas não tinham consciência de que estavama disseminar conspirações da extrema-direita. Houve alguma ingenuidade.
Crê que possam partilhar teorias da conspiração da extrema-direita para aumentarem a sua popularidade e não por razões ideológicas?
É importante lembrar que vivemos no contexto perfeito para alimentar teorias da conspiração. Estamos numa situação de grande incerteza, ainda não sabemos muitas coisas sobre o vírus, passamos muito tempo online em casa, não sabemos se vamos perder o emprego… Há muito medo e muita ansiedade. As pessoas do círculo New Age suspeitam, muitas vezes, da versão oficial da verdade. Desconfiam da medicina tradicional, das vacinas ou de medidas de saúde pública, e isso atraiu-as para as teorias da conspiração. A partir daí, foi fácil chegarem à extrema-direita. A parte mais assustadora das conspirações QAnon é que as pessoas são radicalizadas muito depressa e sem se darem conta. Não percebem que esta é uma versão WASP [de brancos, anglo-saxónicos e protestantes] do ISIS – infelizmente, não inclui só brancos. Agora, muitas pessoas da comunidade estão a tentar alertar para o facto de estarem a partilhar uma conspiração semifascista de extrema-direita, que pede a suspensão da democracia. Eu não estou contra a espiritualidade New Age, faço parte desse movimento, mas é fundamental preservarmos o nosso espírito crítico.
Chama-lhes “hippies nazis”. Porquê?
As manifestações contra o confinamento, em Londres e em Berlim, atraíram pessoas de ambos os extremos. Existe uma sobreposição entre a filosofia New Age e o pensamento da extrema-direita, mas não devemos ficar surpreendidos. Muitas figuras da liderança nazi interessavam-se pela espiritualidade. O líder das SS, Heinrich Himmler, encorajava as suas tropas a praticarem ioga. E alguns nazis também se interessavam por astrologia ou pela parapsicologia. Chegaram a colocar pêndulos sobre mapas para tentarem identificar as posições dos inimigos.
O próprio Hitler era vegetariano e adepto da medicina alternativa.
Sim, e interessava-se pelas teorias do oculto. Algumas pessoas acham que estou a minar a cultura New Age dizendo que é fascista, mas não é essa a minha intenção. Estou a tentar alertar as pessoas para não serem ingénuas. Há uma escola de pensamento dentro do movimento New Age chamada Tradicionalismo que é muito popular junto da extrema-direita. Steve Bannon, o antigo conselheiro de Trump, é um grande fã do Tradicionalismo. As pessoas pensam que a cultura New Age é sempre progressista, mas não é verdade.
O que atrai a extrema-direita, no movimento New Age?
Suponho que ambos partilham o sentimento de que a cultura ocidental moderna não tem alma. No fundo, de que perdeu a sua identidade. E a única esperança é um regresso a valores e a mitos tradicionais. É uma espécie de espiritualidade de direita, vemo-la em Nietzsche e em muitos outros, como Jordan Peterson. É uma crítica às democracias de esquerda, à igualdade e a movimentos como o feminismo. Uma espiritualidade reativa, que diz que o Ocidente ficou demasiado obcecado com o progresso, os direitos, a racionalidade e o mercado livre e precisa de redescobrir a sua alma.
Parece uma teoria assente no medo…
Sim, creio que é uma visão muito pessimista do mundo, mas temos de estar conscientes do que está a atrair as pessoas para este tipo de espiritualidade de extrema-direita.
É não acreditarem que a democracia lhes pode garantir essa sociedade com alma de que fala?
As pessoas serem atraídas por formas autoritárias de espiritualidade também se explica por a maior parte delas não ter vivido em regimes autoritários. Estão a deixar-se levar pela velha história do líder glorioso e a cair na demonização do inimigo. E não é só a direita que faz isso. Infelizmente, a extrema-esquerda também demoniza os seus adversários. São tempos difíceis para quem está ao centro. A liberdade de pensar por si mesmo é uma das razões para muitos se oporem ao confinamento e às medidas de saúde pública. Mas se querem ter a liberdade de pensar pelas suas próprias cabeças, a última coisa que devem querer é cair em regimes autoritários de extrema-direita. O que os nazis inicialmente enalteciam acabaram por reprimi-lo. Não se deixem enganar. Não negoceiem com grupos de extrema–direita autoritários. Eles não acreditam na liberdade de pensamento.
Uma coisa é pensarmos pela nossa cabeça, outra é negarmos a Ciência…
Sim, é verdade, mas é possível ser saudavelmente cético em relação à Ciência. Se olharmos para a História, já houve abusos e erros terríveis. Não nos esqueçamos de que a eugenia era mainstream nos anos 1920. A Ciência racista foi amplamente apoiada por muitos cientistas. Temos uma ideia tão monstruosa dos nazis que, por vezes, esquecemo-nos do quão popular eram algumas das suas ideias naquela época. Por isso, é saudável sermos razoavelmente céticos. A internet trouxe uma falsa sensação de conhecimento a muita gente. Veem-se três vídeos, lê-se uma publicação e já se é especialista num assunto. Este é o risco da descentralização da informação dos média que a internet provocou. Infelizmente, existe uma fraqueza generalizada do pensamento crítico.
Existe uma sobreposição entre a filosofia New Age e o pensamento da extrema-direita, mas não devemos ficar surpreendidos. Muitas figuras nazis interessavam-se pela espiritualidade
Esta ligação entre os grupos New Age e a extrema-direita significa que não faz sentido separar ideologias radicais?
Algumas das pessoas que foram radicalizadas pelo QAnon eram, não há muito tempo, apoiantes de Bernie Sanders. Isto sugere uma volatilidade inesperada das crenças das pessoas. Em ambos os extremismos se encontram ideias e sentimentos semelhantes, como o sistema atual estar podre, as elites serem corruptas ou o mundo estar numa crise espiritual e existencial e precisar desesperadamente de uma revolução… Quando as pessoas estão nesse estado febril, são atraídas por soluções radicais à esquerda e à direita. E também são atraídas por formas carismáticas de fazer política, por líderes improváveis que se apresentam como exteriores ao sistema. Agora, e nos próximos anos, é provável que assistamos à ascensão de políticos carismáticos em todo o mundo. Sobretudo enquanto não nos debruçarmos sobre questões como a desigualdade ou as alterações climáticas.
Isso acontece porque vivemos uma época em que se dá primazia ao emocional e não ao racional?
Sim, mas não é apenas isso. Também se deve ao facto de o paradigma vigente se ter quebrado. Normalmente, existe uma espécie de ordem dominante que dá sentido às coisas. Para a maior parte de nós, esse mito tem sido o do progresso, a ideia de que as coisas vão melhorar, a economia vai crescer e nós podemos fazer planos e seguir com a nossa vida. Esse mito quebrou-se por causa da crescente desigualdade, da estagnação económica, das alterações climáticas e, agora, também devido à pandemia. Quando o mito dominante se quebra, há um período de incerteza, que pode durar vários anos, em que as crenças mais incomuns ou mais extremas conseguem chegar ao mainstream.
De que forma as teorias da conspiração conseguem proliferar se, supostamente, vivemos na era da informação?
Graças à internet. Nos anos 60, 70 e 80 obtinha-se a informação, sobretudo, através da TV, que se resumia a meia dúzia de canais terrestres. Esses canais controlavam as ideias que eram aceitáveis e consideradas razoáveis. Isso limitava o acesso ao pensamento não oficial, controlava as crenças às quais as pessoas podiam aderir e o que era considerado realidade. Com a internet, houve uma verdadeira descentralização dos média. Agora, há plataformas em que todos podem partilhar as suas ideias e encontrar outras pessoas que as partilhem. Isso não é inteiramente mau, mas também significa, infelizmente, que crenças muito bizarras podem disseminar-se facilmente.
As redes sociais são fundamentais para encontrar essa audiência…
De certa maneira, os algoritmos das empresas tecnológicas encorajam as pessoas a tomarem posições extremistas. Se tivermos uma posição muito provocadora, recebemos muito mais atenção, o que incentiva esta guerra cultural entre a esquerda e a direita. Há uma certa competição por ir mais longe e ser ainda mais extremo. O mesmo aconteceu quando os jornais se tornaram amplamente lidos. Isto ocorre sempre que há uma mudança nas tecnologias de informação. Quando a versão autorizada da verdade perde o seu monopólio, a seguir temos uma fase em que a verdade é muito instável e, em vez de uma versão oficial, existem várias versões que competem entre si.
Como podemos combater este ambiente polarizado?
Tendo consciência da nossa reatividade irracional e dos nossos próprios estereótipos e estando atentos ao risco de demonizarmos quem discorda de nós. Sendo cuidadosos para não assumirmos que estamos definitivamente certos, que toda a verdade e bondade está do nosso lado. E devemos pensar por que razão a outra pessoa se sente atraída por aquela ideia, mesmo que a consideremos ridícula e perigosa. Precisamos de ter respeito uns pelos outros, isso implica não passar tanto tempo nas redes sociais e conhecer pessoalmente as pessoas que vivem perto de nós. Temos de comunicar uns com os outros enquanto seres humanos. Provavelmente, é mais fácil fazer isso fora do Twitter.
Mas pode ser difícil ter empatia por quem acredita que a Terra é plana…
Sim, mas podem ser boas pessoas. Diria que a maior divisão na nossa sociedade é entre os que foram à universidade e os que não foram. Se falarmos da divisão entre os votantes no Brexit e os remainers ou os votantes de Trump e os outros, muitas vezes, o que os distingue é terem frequentado ou não o Ensino Superior. Ir para a universidade é um sinal de privilégio. Não devemos olhar de cima para as pessoas que não tiveram essa oportunidade. Elas podem ser especialistas nas suas próprias experiências, como o facto de os seus bairros se estarem a desmoronar, de não haver emprego e de a vida piorar a cada dia. Esse desespero pode tê-las levado a acreditar em soluções mágicas, irrealistas, mas o seu desespero é real. É muito importante os liberais privilegiados serem capazes de reconhecer o desespero que subjaz à política extremista e tentarem ajudar essas pessoas, em vez de ficarem nas suas bolhas de privilégio a rirem-se daqueles que são pobres e ignorantes.