Mostrar que há raparigas nas novas tecnologias e dar visibilidade às mulheres do Instituto Superior Técnico (IST) inspirou esta instituição universitária a dar vida, durante o último ano letivo, ao programa Engenheiras por um Dia. Conta-nos Palmira F. da Silva – professora no Departamento de Engenharia Química e Biológica do IST, membro do Conselho de Gestão e porta-voz do projeto – que tudo começou depois de uma conversa com o ministro- -adjunto, Eduardo Cabrita, no âmbito das políticas públicas que visam combater a segregação nas profissões. Estávamos no início de 2017, decorria a cerimónia de entrega do prémio com o nome de Maria de Lourdes Pintasilgo – engenheira química e a única mulher até hoje a chefiar um Governo em Portugal –, e ambos constataram que havia poucas raparigas nas engenharias, em particular nas áreas tecnológicas. Concordaram que era preciso fazer alguma coisa e, da teoria à prática, foi um passo. Chamaram-lhe Engenheiras por um Dia, numa parceria com a Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género, dez agrupamentos escolares ou escolas secundárias e a Associação Portuguesa de Estudos sobre as Mulheres. Contaram ainda com entidades patrocinadoras, como a IBM Portugal, a Microsoft e a Siemens Portugal. O programa foi apresentado publicamente no Dia Internacional das Raparigas, instituído pelas Nações Unidas e assinalado a 11 de outubro, e teve direito a uma sessão de encerramento em maio. “Foi um sucesso”, avalia a nossa interlocutora, antes de adiantar: “Já estamos a preparar outro.”
Que avaliação faz deste primeiro Engenheiras por um Dia?
Acabou por se revelar maior do que tínhamos imaginado. O programa decorreu no último ano letivo, e as escolas envolvidas tinham toda a liberdade para o ajustar ao seu contexto. Incluía sessões mensais em cada escola, durante as quais um par de alunos do Técnico (preferencialmente, duas raparigas ou um rapaz e uma rapariga) faziam uma espécie de mentorado informal. Primeiro, pretendia-se mostrar que também há raparigas nestas áreas e que são como tantas outras – são giras, usam telemóvel, pintam as unhas, não são uns bichos do mato. O projeto previa também que se estabelecessem pontes com autarquias, empresas, escolas profissionais e ainda que se envolvesse a família. Por exemplo, numa escola na Lavra, no concelho de Matosinhos, uma das alunas ia desistir de estudar mas, depois de participar no projeto, decidiu continuar e escolheu engenharia. Foi interessante ver como muitas alunas que chegam dizendo que fazem escolhas perfeitamente livres, sem estereótipos a condicioná–las, depois acabam por assumir que afinal não foi bem assim.
Por que razão é preciso incentivar as mulheres a ponderarem carreiras nas novas tecnologias?
Já há imensa falta de pessoas na área de informática. As empresas queixam–se da falta de pessoal qualificado – e o facto de não haver mulheres nestas áreas mostra bem que a sociedade está toda a perder. Por outro lado, são áreas muito valorizadas a nível salarial. A diferença salarial entre os dois géneros já é grande: se as áreas mais bem pagas, e que no futuro se espera que continuem a oferecer emprego, não incluem as mulheres, essa diferença nunca será ultrapassada.
E essas áreas também ganham?
Claro, porque estão a recrutar apenas parte do talento disponível. O preocupante é que, a nível europeu, o número de raparigas a escolher estas áreas tem vindo a diminuir e não a aumentar, como se esperava.
Porquê?
Penso que existem várias razões. Em primeiro lugar, há pressões sociais – veja-se as polémicas recentes dos livros para rapazes/livros para raparigas e brinquedos para rapazes/brinquedos para raparigas, que basicamente só acentuam esses estereótipos. Os rapazes são sempre ativos, exploradores, cientistas; as raparigas são princesas e bonitas, como foi demonstrado na recente campanha “Uma princesa não fuma”. Depois, também me parece importante salientar a falta de modelos inspiradores. Em todo o lado, aparecem sempre homens a falar da sua experiência, mas mulheres não. Na escola, isso repete-se: se olharmos para o currículo das ciências, basicamente só se estuda a Ciência de homens. A única mulher que eu estudei foi Marie Curie, curiosamente sempre apresentada como Madame Curie…
Elas, no limite, eram enfermeiras, como a Florence Nightingale.
Temos uma sociedade que ainda olha para as raparigas como as cuidadoras. Daí a importância de mostrar que há outras que escolhem as áreas das novas tecnologias.
Também há quem diga que elas não vão para estas áreas porque não querem. O que diz, num caso destes?
É claro que não vão para estas áreas porque não querem, mas não querem porque nunca põem essa hipótese. Quem pensa que elas têm menos jeito, capacidades inferiores ou algo do género, já está de alguma forma a discriminar. E quem pensa que a disparidade não é grande também está enganado. No outro dia, em conversa com um colega de eletrotecnia, ele dizia que nas suas aulas havia quase tantas raparigas como rapazes – ao que eu lhe respondi que “provavelmente sim, mas porque elas vão mais às aulas”. Quando se fala em engenharia e em engenheiros, pensa- -se sempre em homens…
E é assim em todas as engenharias?
Não, em algumas já estamos nos 50%: do ambiente, biológica, química… Essas são bastante escolhidas, mas as tecnológicas não. Só no Norte da Europa é que é diferente – daí perceber-se que há aqui uma grande influência do caldo cultural. Eu sou de química e, nos encontros internacionais, verificava-se invariavelmente que as de química eram espanholas, italianas, do Sul da Europa. Primeiro, são países onde a escolha entre humanidades e ciências tem de ser feita muito cedo. E, quando escolhem ciências, são muito induzidas a seguir medicina, sobretudo se forem boas alunas. “Ah, tão bom, uma médica na família para cuidar de nós.” É uma mensagem que passa de uma forma até bastante explícita.
Isso quer dizer que faria sentido antecipar o programa Engenheiras por um Dia, em vez de ser só para o Ensino Secundário…
Em algumas escolas, isso já aconteceu: este ano já abrangeu turmas do 9º ano, para trabalhar mais cedo na questão da escolha das áreas. Além disso, tivemos 720 alunos, tanto do Secundário como do Básico, nos programas de férias de verão do IST, e o que vemos é que quanto mais novos são, maior é o número de raparigas a inscrever-se nestas atividades. E à medida que vão crescendo, esse número diminui. Não conseguimos ainda recuar muito nas idades, mas essa foi exatamente a consideração que a ministra Maria Manuel Leitão Marques fez no dia de encerramento do programa: “Devemos começar mais cedo.”
E elas, depois, sentem-se bem acolhidas?
Sim, claro. Aliás, também fazemos esse exercício. E o relato que nos fazem é muito semelhante. “Ah, quando disse, na minha escola, que queria ir para o Técnico, diziam-me sempre: ‘Mas aquilo é só homens, vais sentir-te mal…’” E eu bem lhes digo: “Veem? estavam a tentar influenciar–vos.” É um trabalho que tem de se ir fazendo. O maior problema é as pessoas não se aperceberem de que essas escolhas são condicionadas.
E por que razão não existe a perceção desse condicionamento a um nível mais alargado?
O problema é a forma como se leem os números. Os últimos dados indicam que há 25% de raparigas nas ciências, valores de 2016 – e foi isso, divulgado recentemente, que nos deu essa noção. Para nós, o maior problema deste tipo de agrupamento nos levantamentos estatísticos é que inclui, por exemplo, arquitetura. Se olharmos só para as engenharias, o valor baixa para os 19%. Se tirarmos as engenharias química, biológica, biomédica e a do ambiente, a percentagem desce para os 15%. No fim, só nas tecnológicas não são mais do que 13%, ou seja, ficamos quase com metade.
Relativamente aos modelos inspiradores: poderiam estudar-se mais as contribuições femininas para a Ciência?
Bom, a verdade é que a Ciência de mulheres tem sido… não queria dizer escondida nem escamoteada, mas posso dizer menorizada. Por exemplo, toda a gente fala no Francis Crick e no James Watson e na dupla hélice de ADN, mas ninguém fala de Rosalind Franklin, a química britânica que descobriu as estruturas moleculares do ADN e do ARN. Noutros casos, até se estuda o que as mulheres fizeram, mas são referidas só pelas iniciais ou pelo apelido – e acabamos a partir do princípio de que são homens. Nós, que andamos sempre a divulgar quando são mulheres, até temos um caso curioso: Cristina Fonseca foi nossa aluna em Engenharia de Telecomunicações e Informática, depois foi cofundadora da TOPdesk, startup de sucesso, foi considerada uma das Under-30 pela Forbes a nível mundial, e a verdade é que essa área, que tinha sempre um número reduzidíssimo de mulheres, tem vindo a receber cada vez mais estudantes femininas, e eu acho que é o efeito Cristina Fonseca.
Há ainda o problema do abandono das carreiras. Que peso tem esse fator?
Não nos chegam relatos, mas esse é efetivamente um problema típico nestas áreas. A grande pressão que se sente nestas empresas, o sentimento de não progressão, o bullying a que muitas vezes são sujeitas por parte dos colegas – veja-se aquele memorando da Google [a relembrar o caso do engenheiro James Damore, que acabou despedido por se ter manifestado publicamente contra a política de diversidade de género na empresa]. Não só há um ingresso em menor número como depois acabam por desistir.
Falta legislação?
Sei que a União Europeia tem preparada uma série de boas práticas para estas áreas. Trabalham a dois níveis: um, para conseguir atrair mais raparigas e, outro, exatamente para reduzir o abandono, promovendo mais tarde planos de conciliação. Temos de ver se são bem-sucedidas, se isso é compreendido pelos outros, se são promovidas como os colegas. Para isso já temos legislação, o que já ajuda. Há pouco tempo, li um artigo de Harvard muito curioso. É tudo uma questão de perceção. Se uma mulher falar na condição de chefe, o que diz tem uma amplitude muito maior do que se o fizer num cargo mais baixo. E como, tipicamente, as mulheres não estão em cargo de chefia…
O que gostaria de alcançar, no final do próximo ano?
Esta primeira edição foi extremamente recompensadora. Pela cara das raparigas que vieram cá – tivemos aqui cerca de 500, uma boa parte envolvida no projeto – e depois de falar com elas, foi possível compreender que ficaram sensibilizadas e perceberam que as suas escolhas não são assim tão lineares como elas pensam. Só isso já foi compensador. Os rapazes queixam-se um bocado de não serem incluídos. Quer dizer, sentiram pela primeira vez o que elas sentem, tantas vezes, a vida toda. Foi possível observar isso sem dúvida nas escolas profissionais, onde eles não escolhem os lavoures, nem elas escolhem eletrotecnia. Quando algum faz uma escolha destas, em geral, não aguenta muito tempo.