Não se considera um autor negro, mas o seu lado subversivo encaminha-o para temas varridos para debaixo dos tapetes da História. É o que acontece em Goa ou o Guardião da Aurora, original de 2006 recentemente reeditado pela Porto Editora, onde dá voz a personagens silenciadas. Com este romance histórico encerrou a trilogia da Inquisição e o retrato da perseguição às diferentes gerações da família Zarco, fiéis às suas raízes luso–judaicas. Nascido em 1956 em Roslyn Heights, um subúrbio de Nova Iorque, Richard Zimler vive no Porto desde 1990, tendo-lhe sido atribuída em 2017 a Medalha Municipal de Honra da cidade. Com dupla nacionalidade, venceu as resistências em escrever em português com O Cão que Comia a Chuva, que conquistou o Prémio Bissaya Barreto de Literatura para a Infância 2018. E é com um português carregado com sotaque do Norte, com incursões momentâneas pelo inglês, que decorre esta conversa, no seu apartamento na Foz, Porto.
Este livro é assumidamente uma tragédia?
É a minha tragédia grega. Não era minha intenção. Quando começo a escrever um livro, sei mais ou menos como vai ser o primeiro capítulo, mas não faço a mínima ideia do que vai acontecer a seguir. Na minha definição de tragédia, uma pessoa fica prisioneira de uma cascata de acontecimentos e sabe que não vai conseguir fugir-lhe. E é isso que acontece em Goa ou o Guardião da Aurora.
Há um elemento comum aos seus livros: dar voz a pessoas esquecidas…
Sim. Em Portugal, poucas pessoas sabem que a Inquisição foi exportada para Goa. Começou em 1560, por iniciativa de São Francisco Xavier (muitos pensam que era português, mas não, era espanhol), que tinha pedido ao Papa e ao rei D. João III a imposição da Inquisição em Goa. A perspetiva dele era a de que muitos hindus convertidos e alguns judeus ainda estavam a praticar a religião tradicional. Foi, provavelmente, a Inquisição mais dura. Primeiro, pelas condições das prisões, que eram deploráveis. Segundo, e esta é uma teoria minha, porque não havia a tradição, no Oriente, de converter as pessoas. Quando ocupavam um território, não obrigavam as pessoas a abandonar os seus deuses e a sua fé. Ora, quando os hindus foram convertidos ao Cristianismo, acredito que nem compreendiam o que isso significava. Podiam acreditar em Jesus Cristo, mas também acreditavam em Ganesha e na reencarnação. Mas a Inquisição não permitia essa possibilidade.
O livro contraria a imagem dos portugueses como uma espécie de “bons” colonizadores?
Quando as pessoas pensam em Goa, pensam numa colónia fabulosa, rica, exótica, com especiarias, ouro, tecidos… Não, era uma ditadura religiosa. Não se podia pensar de forma diferente. Temos esta visão completamente fantasiada, a perspetiva dos que enriqueceram por lá; obviamente, para eles, Goa era espetacular. Mas para 99% das pessoas não.
À custa deste livro, recebeu a sua primeira carta de ódio…
Recebi três. Foi muito duro, normalmente as pessoas são muito generosas comigo. Foi um choque. Uma carta chegou de Portugal, duas páginas datilografadas cheias de palavrões: “judeu de merda”, “traidor da nação”… E recebi duas mensagens de Goa. Tal como há pessoas doentias que negam a existência do Holocausto, há pessoas doentias em Goa que negam a existência da Inquisição. Não admitem que houve dezenas de milhares de hindus convertidos à força e torturados, centenas queimados vivos… É uma história muito negra. Esses leitores acusavam-me de traição. Felizmente, Portugal é um país bastante pacato, não é possível comprar armas automáticas. Se morasse nos EUA, teria muito mais medo, porque lá há pessoas loucas com armas. Aqui, muito menos.
Enquanto escritor, interessa-lhe agarrar temas tabu?
Sim, adoro. Tenho uma personalidade muito subversiva e adoro escrever sobre assuntos que outros preferem branquear ou esquecer. Dá-me gozo, e um sentido de justiça também… Claro que isso tem consequências, às vezes os livros não são tão bem recebidos. Todos os países têm uma história não oficial de tortura, de tormentos, de crimes contra a Humanidade, e as pessoas com poder económico e político às vezes preferiam que não falássemos destas coisas. Cresci nos EUA e nunca falamos dos índios, da sua cultura, da arte, da música, da história… Zero! A única imagem que temos dos índios é dos filmes pirosos de John Wayne e de John Ford onde os índios eram sempre os maus da fita, os primitivos, os traidores, os selvagens.
Diz que a fé não é exclusiva das religiões. Como vive a sua fé?
Explico a minha visão da fé no meu último livro, O Evangelho segundo Lázaro, porque Lázaro perde a sua fé na religião, na doutrina, mas nunca perde a sua fé nas pessoas, no seu grande amigo que é Jesus Cristo. Eu sou igual, não perco a minha fé em Mandela, em Mahatma Gandhi, na Martina Navratilova [risos]… Tenho pessoas que adoro e nunca vou desistir delas. É uma fé não em Deus mas no ser humano, na compaixão, na solidariedade. Pode não ser algo místico, mas não deixa de ser misterioso. Porque é que tenho tanta fé nas pessoas? Não sei, já vivi situações de amor incondicional e qualquer pessoa que tenha essa vivência acredita nas outras pessoas, porque sabemos que, num determinado momento, foi esse amor incondicional que nos salvou.
O Richard e o Alexandre [Quintanilha] sempre assumiram publicamente e com naturalidade a vossa relação. Nos últimos tempos, vimos políticos portugueses a assumirem em entrevistas a sua orientação sexual. Continua a ser importante que algumas figuras públicas o façam?
Penso que sim. Vivo com o Alexandre há 40 anos. Todos os meus amigos e familiares sabiam que sou homossexual, provavelmente os meus leitores também o sabem… Algumas pessoas podem não gostar de mim ou não comprar os meus livros por causa disso. O que posso fazer? Tenho de ter uma vida autêntica, não vou passar toda a minha vida atrás de uma máscara, isso cria um conflito interior terrível. Para mim, é um não assunto. Mas ainda falo da minha homossexualidade e penso que é importante que outros o façam. Porque ainda há jovens homossexuais, a viverem em meios mais pequenos, com problemas. Pensam que se disserem a verdade, nunca vão ter amigos, os pais não vão aceitar, não vão conseguir um emprego… Criam estas fantasias baseadas nos preconceitos da sociedade. Por isso é importante que figuras públicas digam “sou homossexual, sou lésbica, mas sou uma pessoa realizada e feliz”.
Como viu a reação a estas saídas “do armário”?
Há pessoas com uma mentalidade complexa e torturada que pensam que é tudo um jogo político, uma maneira de conseguir mais votos ou mais isto ou aquilo. Na minha perspetiva, no caso dos políticos, provavelmente chegaram a um determinado momento em que foi muito mais natural assumirem-se, porque não havia razão para não se assumirem.
O Richard mudou-se para o Porto em 1990, na altura uma cidade muito fechada. Recentemente, recebeu a Medalha Municipal de Honra. O que lhe toca mais nesta cidade?
A boa vontade, a generosidade e a simpatia das pessoas que encontro na rua e vêm ter comigo para agradecer os livros e o facto de viver no Porto, como sendo uma mais-valia para a cidade. Sinto um grande carinho e… I don´t take that for granted. Fico grato todos os dias, porque conheço muitas pessoas que vivem num país estrangeiro e, passados 30 anos, ainda se sentem mal recebidas.
Diz ter um cérebro americano e outro português…
É verdade, sou um mutante [risos]. Consigo pensar como um português e como um americano. Sinto-me uma pessoa muito mais rica por ter estas duas perspetivas.
Como vê as mudanças do Porto nos últimos anos, muito à custa do turismo?
Estou muito contente, porque houve um período em que a Baixa do Porto era um deserto. Eu também vivi isso nos Estados Unidos da América, quando a classe média fugiu do centro das cidades para viver nos subúrbios. Quando a Baixa do Porto foi ficando progressivamente mais vazia, senti que estava a testemunhar o mesmo fenómeno. Portanto, agora é uma felicidade ver este renascimento. Quem tem um salário razoável consegue ter uma qualidade de vida melhor do que em Paris, Londres ou Nova Iorque, onde a comida, a eletricidade, os transportes têm preços astronómicos. Porque é que temos tantos emigrantes israelitas em Portugal, alguns no Porto? Porque Telavive é hoje uma das cidades mais caras do mundo, as pessoas não estão a partir por razões políticas ou de segurança, mas por razões económicas.
Portugal está na moda. O tal complexo de inferioridade que dizia sentir nos portugueses está a desaparecer?
Sim e não. Veja aquele exemplo do senhor do PSD [Feliciano Barreiras Duarte, anterior secretário-geral do partido] que inventou um título académico numa universidade americana que não existe, nem teve o cuidado de verificar o nome correto. Isto mostra a pequenez de pensamento. Este género de fraude não tem razão de existir. Nos mais jovens, noto uma maior confiança, sentem que Portugal já não é um atraso de vida e têm uma melhor compreensão do mundo.
Aprecia a ideia de uma Europa unificada. Em vários países europeus, tem havido uma viragem para a extrema-direita. Teme que essa Europa esteja em causa?
Temos governos quase fascistas na Hungria, na Polónia, em Itália, e estou muito preocupado. Hoje em dia, o alvo não é o judeu, porque a extrema-direita conseguiu exterminá-los quase todos… São os emigrantes e tenho medo deste clima de hostilidade. É tudo muito irónico e perverso, porque em muitas situações foi a própria Europa (e os EUA também…) que criou estes problemas na Síria, no Iraque. Fico desapontado quanto à orientação moral e ética da Europa. Ver a extrema-direita eleita em Itália… Isto só pode acontecer quando as pessoas não conhecem a sua própria História, porque foi o fascismo que quase destruiu o país. Como é que podem votar em políticos neofascistas? Um dos grandes problemas é não se ensinar a própria História aos jovens.
A educação é a maior arma contra a demagogia?
Absolutamente. É a única solução. Vemos isso nos Estados Unidos da América também. Na última eleição, os Estados com altos níveis de escolaridade votaram a favor de Hillary Clinton. Os com menor escolaridade votaram massivamente em Trump.
Confirmou os seus receios em relação à eleição de Trump?
Na política externa já tomou posições muito negativas, impedindo que qualquer organização internacional de planeamento familiar recebesse fundos dos EUA, por exemplo. Isso está a ter um efeito negativo enorme em África, por exemplo, e fala-se pouco disso… Fala-se muito mais na Coreia do Norte e de outras coisas. Mas o pior efeito do Trump é a nível interno. Esta reforma de impostos vai ampliar o fosso entre os mais ricos e os mais pobres dos EUA e vai criar mais dívida. Pouco a pouco, está a desmantelar os programas de Saúde, da Educação, da Cultura e do Ambiente e a transferir tudo para a Defesa. Os estragos feitos em quatro anos podem demorar décadas a recuperar. Uma vez destruída uma entidade governamental, é muito difícil começar de novo.
Está-se a caminhar para o seu pior pesadelo, o de uma sociedade desigual, à semelhança do Brasil?
Vejo isto como a brasileirização dos Estados Unidos da América, sim. A classe média-alta e os ricos vão viver atrás de arame farpado, vão sair dos seus apartamentos em carros blindados para entrar nos shoppings rodeados de guarda-costas. Já vi bairros inteiros, perto de Nova Iorque, cercados por muros altos. Isto vai ser o futuro dos EUA se continuarmos neste rumo… E com muito mais violência. Porque é que há tanta violência no Brasil? Uma das razões é que os pobres brasileiros não têm acesso a bons serviços públicos, na Educação, na Saúde… Então, há uma falta de solidariedade e de compaixão, cria-se esta atmosfera de salve-se quem puder.
Estas manifestações de estudantes nos EUA contra o acesso às armas poderão conduzir a uma mudança?
A atmosfera continuará a ser a mesma. A não ser que haja uma reforma política dura e duradoura, este movimento dos alunos, que acho fabuloso, não vai mudar os problemas estruturais do sistema eleitoral e político americano. Os Republicanos vão continuar a ganhar e a dar força aos seus amigos ricos e a lixar o povo. A situação pode agravar-se muito facilmente. A educação pública de qualidade é a melhor maneira de criar uma mobilidade e justiça social. Estou pessimista porque, neste momento, é o dinheiro que dita o rumo dos EUA. Os bilionários tomaram conta dos média e do Partido Republicano e utilizam as fake news como arma de propaganda. Os EUA criaram o seu próprio monstro.
Foi muito crítico em relação ao anterior governo português, nomeadamente em matérias de Educação. Atualmente, quando visita escolas, sente que se renovou a esperança num futuro em Portugal?
Houve um período em que se sentia uma atmosfera deprimente. Perguntava quantos alunos pensavam que teriam de emigrar após a licenciatura e dois terços colocavam a mão no ar. Hoje sinto que não é bem assim. Mas perdemos muitas pessoas com qualificações, que provavelmente não vão regressar. Tenho pena delas, porque é difícil começar a vida noutro lugar, mas tenho muito mais pena do País. Não me custa nada pagar impostos para a Educação e a Saúde, mas quero ter escolas e hospitais excelentes. No caso dos jovens que saíram de Portugal, paguei os meus impostos e não vou ter um retorno. Senti-me traído pelo governo anterior.
Em tempos, perguntaram-lhe qual seria, para si, a maior desgraça e respondeu que seria não realizar as suas potencialidades…
É terrível. Quem nunca viveu como realmente queria, obviamente vai ter muito medo da morte. Percebi isso com a minha mãe, que tinha uma vida não vivida muito maior do que a vida vivida. Depois de se casar, deixou de trabalhar [era bioquímica], mas teve um casamento péssimo, a sua confiança foi minada e foi uma pessoa clinicamente deprimida. E aprendi com ela que não queria chegar aos 85 anos e dizer “perdi tudo”. Digo sempre aos jovens para seguirem as suas paixões.
É um escritor realizado?
Sim. A vida de um escritor tem oscilações, há um livro que vende bem e outro que não vende nada, um prémio aqui e críticas horríveis ali. Mas sinto-me realizado porque já escrevi livros nos quais tenho orgulho. Não é necessariamente porque venderam bem. É um desafio gigantesco trabalhar durante dois ou três anos, seis a oito horas por dia, para criar universos paralelos muito engraçados, com personagens maravilhosas. E quando o leitor abre a capa, é como se atravessasse uma porta. Adoro essa sensação!