Na edição especial da VISÃO que esta semana está nas bancas, comemorando o 25.º aniversário da fundação da revista, projetamos o futuro do Trabalho e do Lazer no próximo quarto de século. Em 2043, estaremos a trabalhar mais ou menos horas? Teremos mais férias? E ainda existirão vínculos laborais? Estas e outras questões são respondidas por Manuel Carvalho da Silva, sociólogo e antigo líder da CGTP, numa entrevista que aqui publicamos na íntegra.
O que podemos perder e o que podemos ganhar em termos de direitos laborais?
Partimos de uma certeza: os direitos laborais foram, são e serão uma conquista difícil e por vezes dolorosa, mas constituem-se como um dos maiores avanços civilizacionais alcançados nas sociedades modernas.
Os tempos atuais mostram-nos que é bastante fácil reverter património humano que se pensava adquirido, em vários campos: o direito a uma saúde condigna que, em Portugal, vive este lento descarrilar de um serviço público; o direito a sistemas universais e solidários de segurança social; o direito de cada trabalhador ter controlo sobre o seu tempo de trabalho; o direito a tempo de não trabalho propiciador de vida em família, de cidadania plena, de cultura, de formação, de lazer. São direitos que estão em tensão – não definitivamente perdidos – nesta apropriação do tempo de vida e da vida das pessoas a que hoje assistimos numa semana de sete dias-feira, em nome de qualquer atividade vaga, paga com um salário menor.
Está a vingar a ideia de que se pode trabalhar tendencialmente de graça, em qualquer “atividade colaborativa”, mas o direito a um rendimento digno relacionado com um trabalho produtivo, útil e mais motivador voltará reforçado.
São violentas a mercantilização do trabalho e a destruição da relação metabólica Homem/Sociedade/Natureza desencadeadas para propiciar a alguns uma acumulação desmedida de riqueza, logo, muitos dos novos direitos no trabalho terão de emergir nestas áreas.
Não há nunca um retorno ao passado, mas há condições para que o futuro feito de velhos e novos direitos seja mais justo, com muito menos desigualdades.
Há forças poderosas que nos puxam em diversos sentidos. Nos tempos que vivemos, podemos perder tudo (ou quase tudo), mas também podemos ganhar muito. Estamos desafiados a identificar bem o que queremos conquistar e como lá chegar de forma pensada. E a não hesitarmos em defender o que não queremos perder.
Como se trabalhará? Em casa? Teremos horário livre e prazos por objetivos?
Ao contrário do que possa parecer, apenas algumas atividades poderão ser autonomizadas. Confirma-se uma tendência para o aumento significativo dessas atividades, mas elas não se perspetivam dominantes. Apesar da rápida evolução das formas de produção nos últimos séculos, verifica-se que pouco mudou no modo de organizar os recursos para a produção, nas suas maiores expressões. Por outro lado, tudo indica que continuaremos a ser seres que se vestem, que se calçam, que se alimentam, que comunicam e se movem, que habitam em grandes cidades e noutros espaços, que têm necessidade de saúde, de segurança, de formação, de cultura, de socialização que jamais pode ser substituída por comunicação individual feita através de máquinas. Com mais digital, com mais robots, com inteligência artificial, continuarão a ser aquelas realidades da vida e do trabalho a determinarem o trabalho necessário e as formas de o fazer.
Temos mais máquinas que fazem o trabalho de muitas pessoas, mas outras pessoas continuarão a ser mobilizadas para outras tarefas. É irracional uma autonomização generalizada com livre arbítrio da sua atividade. Há possibilidade de mais atividades “desmaterializadas”, mas o seu grosso continuará a ser atividades/trabalhos produtivos (onde estão incluídos inúmeros velhos e novos serviços) que obrigam à concentração de esforços num espaço determinado. Geralmente quem organiza esses esforços (os poderes privados e públicos) “prefere” a sua concentração.
Dificilmente seremos todos profissionais liberais e os que forem devem perceber que fazem apenas parte da mesma cadeia de organização a que pertencem os que não serão. “Horários livres e trabalho por objetivos” era algo que, por exemplo, se encontrava em Portugal nos anos 80, quando as indústrias de calçado subcontratavam parte da sua produção para trabalho à peça, feito em casa, até por crianças pagas por tostões.
A organização da produção vai-se transformando, mas não alterará um problema essencial dessa organização: como se reparte o valor criado. E essa repartição afeta todos os aspetos da vida de uma pessoa: tempo de produção, tempo de não trabalho e tipo de retribuição direta e indireta.
Para onde caminham os vínculos laborais? Teremos um mundo de freelancers, em que cada pessoa é um empresário em nome individual?
Os freelancers ou os empresários em nome individual são muito o fruto da autonomização de certas atividades, introduzida na maioria dos casos como forma de reduzir os custos de produção, passando-os para os assalariados, sem que estes se sintam de facto nessa condição. Por detrás está a apropriação do rendimento que antes era melhor distribuído.
As atuais características da sociedade, as tecnologias existentes e as formas de comunicação e de conexão são propiciadoras de muito trabalho individualizado: isso poderá trazer algumas vantagens, mas também propicia aos poderes dominantes o encobrimento da exploração de milhões e milhões de seres humanos.
Diz-se muito que os velhos sistemas de relações de trabalho estão desadequados e que agora o que é preciso é responder às novas formas de organização e prestação de trabalho. Eu digo, sim. É preciso ter em conta essas novas formas, mas não chega. Um velho ou um novo sistema de relações de trabalho tem 4 elementos fundamentais: 1) atores – que é preciso identificar e tornar responsabilizáveis com poderes bem definidos e equilibrados; 2) regras – formais e informais enquadradas por um Estado de Direito e pelo Direito do Trabalho; 3) ideologia, ou seja quadros de valores consensualizados – consagrados pelas sociedades democráticas; 4) contextos – em que as realidades económicas, sociais, culturais e políticas surjam expostas, se coloquem em tensão se necessário, mas se equilibrem nos espaços de formulação da negociação e dos compromissos no trabalho, seja ao nível de uma empresa, de um setor de atividade ou de um país.
Num contexto em que o anúncio do fim do trabalho é uma especulação apocalíptica e não cola com a realidade – em Portugal, neste momento, faltam largas dezenas de milhares de trabalhadores em diversos setores de atividade – serão os sistemas que terão de ancorar e enquadrar os novos vínculos de trabalho, as novas formações, qualificações, perfis profissionais e profissões, bem como muitos outros aspetos da normalização das relações de trabalho.
Teremos uma semana de cinco dias? Ou menos? Haverá mais trabalho em part-time?
A julgar pela tendência, o futuro não será assético, mas como já referi a tendência que procura impor-se é a de uma semana de trabalho com sete dias, em que o tempo de trabalho e o de descanso não respeitam nem o dia nem a noite, nem a relação metabólica Homem/Natureza.
O que se observa neste neoliberalismo que nos subjuga é um longo lastro de destruição de vidas, de degradação das condições de vida, de repartição desigual do rendimento, de opacidade das sociedades democráticas, de esvaziamento dos parlamentos nacionais, de centralização dos meios de comunicação social, de manipulação social, de concentração fática do poder de decisão.
Olhar para o mundo e pensar que naturalmente se trabalhará menos pode ser uma ilusão perigosa. É possível e desejável trabalhar menos, mas esse objetivo vai dar uma grande luta.
A julgar pelo que se assiste atualmente, os detentores do capital das grandes unidades produtivas, dos grandes grupos de serviços de diverso tipo, das grandes transnacionais, do poder financeiro especulativo não estarão muito dispostos a repartir o seu quinhão: e tempo é dinheiro. Corremos o risco de trabalhar mais por menos dinheiro e também de trabalhar menos por ainda menos dinheiro, até iludidos por uma falsa ideia de que assim estaremos todos a ajudar os pobres, ao dar-lhe um simulacro de trabalho, por um simulacro de salário…
Teremos mais férias ou, pelo contrário, teremos de estar constantemente disponíveis?
Há poucas décadas atrás as férias nem existiam. A ideia de ser vantajoso para a sociedade que todos regularmente descansem é uma ideia muito recente, fruto do ambiente positivo da esperança de uma economia e de um funcionamento da sociedade que nos afaste da guerra e dê dignidade ao trabalho.
Tempo de vida fora do trabalho como direito universal é uma conquista civilizacional que pode perecer, como qualquer civilização. A julgar pela forma violenta e abrupta como se tem degradado a vida de quem trabalha em parte significativa do globo, constata-se – mais uma vez – que não há nada que possa ser dado como adquirido. Aquilo que custou muitas décadas a conquistar, pode perder-se num dia. Tudo pode acontecer e tudo pode ser evitado, como foi evitado, em setembro de 2012, o agravamento da Taxa Social Única sobre os trabalhadores. Basta saber o que se quer e para e por onde se quer ir.
Quando olha para o futuro, qual o cenário mais otimista?
O cenário mais otimista é aquele que permita revelar às pessoas a fragilidade do momento, o engano que são os argumentos aventados pela agenda neoliberal para justificar esta progressiva degradação civilizacional; expor a injustiça que é viver essa degradação em simultaneidade com a apropriação de recursos que pertencem a todos, por uma minoria em todo o planeta; conduzir à perceção de que há uma causa-efeito nesta agenda e práticas neoliberais.
Se a maioria das pessoas conseguir ver esse sentido das coisas, e acredito que isso vai acontecer, tudo pode mudar para bem melhor
E qual o cenário mais pessimista?
O cenário mais pessimista é o de que todos os esforços, hoje em marcha, para colocar países contra países, para gerar divisão entre povos de um mesmo país, para a promoção de antagonismos entre camadas profissionais de um mesmo extrato social, para colocar jovens trabalhadores contra trabalhadores mais velhos, continuem a alimentar este rolo compressor que hoje submete quase todo o mundo.
O receio de que as instâncias democráticas continuem a ser esvaziadas e contaminadas por um pensamento que labora em prol dos interesses gananciosos de grandes poderes fáticos. O receio de que as pessoas se contentem com as migalhas que caem da mesa desse mundo. Em suma, que se mantenha por muito tempo este cenário em que as inevitabilidades ganham às alternativas.
Quais são os maiores desafios que se colocam ao mundo do trabalho?
O maior desafio é conseguir encontrar forças e caminhos para afirmar o trabalho digno, para assegurar direitos no trabalho e direitos sociais às pessoas, para conseguir que os trabalhadores se organizem e as instituições e os poderes valorizem o trabalho. Todos os dias convencer mais pessoas a juntarem-se a movimentos que possam impedir a degradação atualmente em marcha.
Para isso, é necessário ter uma visão alternativa a este estado de coisas. Há um problema global de repartição de rendimento, mas há um outro problema global nas sociedades que caminharam para a democracia, pois elas estão a ser esvaziadas do poder de os povos poderem decidir livremente os seus destinos. Essa foi a questão que, ao longo de séculos, esteve em cima da mesa: a questão do poder. Minorias governarem maiorias, em seu proveito e em detrimento do interesse geral das pessoas e das condições para o futuro poder ser melhor.
E quais são os principais riscos?
No mundo do trabalho serão o retrocesso do conceito salário quando este se distancia de uma repartição justa da riqueza produzida; o tempo deixar de ser controlado pelas pessoas (a quem ele pertence) e ser ocupado com um crescendo de atividades que aprisionam; as condições de trabalho regredirem e a formação das pessoas ser feita apenas à medida de mecanismos de exploração no trabalho, distanciando-se da formação de cidadãos e de seres humanos plenos.
Por outro lado, o risco de uma sociedade democrática se perverter numa sociedade controlada, pois uma sociedade que se fecha tem muito mais dificuldade em mudar.
Ainda o receio de que um país pequeno como Portugal se possa deixar atrair por um ilusório federalismo no sonho de acesso a fáceis (e eternos) recursos financeiros, dado que esse pequeno país teria cada vez menos voz. O risco de as suas instituições serem progressivamente esvaziadas e substituídas por instâncias distantes, governadas por pessoas que não estão sujeitas ao voto. O risco de a capacidade de decidir ser todos os dias limitada por um poder transferido para outras zonas do continente. O risco de Portugal “exportar” a sua população, se incapacitar e se tornar num pasto para os rebanhos de outros.
Mudar este estado de coisas, mudar uma clausura ou uma democracia musculada implica mais força de baixo, do que a força que possa ter quem queira subverter essa submissão. Tudo se fecha numa sociedade dominada. Não devemos, não podemos correr esse risco. Mas temos de cooperar e partilhar democraticamente poderes e meios de que dispomos.