Se um dia lhe dissessem que haveria de se tornar famosa a fazer arte através da fusão de dança e mergulho livre, Julie não ficaria surpreendida. “Já vem de família”, responde, a sorrir, na videochamada realizada a partir da sua casa, em Nice, na Riviera Francesa.
Nascida na Ilha de Reunião, a artista e realizadora subaquática Julie Gautier seguiu os passos da mãe, dançarina de jazz, e despertou para a caça submarina com o pai, com quem descobriu as potencialidades do mergulho em apneia. Aos 18 anos, entrou no mundo da competição. “No início, agradava-me. Tinha necessidade de provar quem era e queria que tivessem orgulho em mim.”
Atleta recordista na especialidade de peso constante (mergulhar ao lado do cabo, mas sem lhe tocar), ganhou o campeonato do mundo em Nice, há dez anos, já depois de bater dois recordes sucessivos, em 2006 e 2007: 65 e 68 metros de profundidade. A revista Paris Match considerou-a “uma das dez dez melhores mergulhadoras de apneia do planeta”, em 2009.
Do desporto à arte – as suas improvisações de movimentos debaixo de água captaram a atenção do artista Gregory Colbert, que a levou aos mais remotos lugares do mundo, na qualidade de modelo subaquática, área em que também se considera autodidata.
Dançar com espécies em vias de extinção em cenários sublimes foi uma experiência da qual resultou o projeto multimédia Ashes and Snow. Mais cedo ou mais tarde, haveria de chegar a hora em que teria de escolher. Foi o adeus à competição sem culpas ou saudosismos e o mergulho a fundo na sua vida artística, com um novo sentido de missão.
Poesia no abismo
“Tenho uma relação muito íntima com a água, que me dá um sentimento de liberdade e a possibilidade de explorar a fluidez de movimentos”, diz. No Buraco Azul das Bahamas, a mais profunda caverna subaquática do mundo (124 metros), começou a “brincar” com a câmara emprestada pelo então companheiro Guillaume Néry, ex-campeão mundial em mergulho livre.
“Ele estava a competir e eu a fazer dança subaquática com animais, quando nos ocorreu, um pouco por acaso, fazer uma curta-metragem, e acabámos por nos divertir bastante.” O melhor estava para vir: Free Fall tornou-se viral, com mais de 30 milhões de visualizações, e seria a rampa de lançamento para o seu próximo filme, Narcose, quatro anos depois, sobre as alucinações que tomam de assalto quem mergulha a mais de 90 metros, como Guillaume. O companheiro contou-lhe o que “via”: de casamentos marinhos a criaturas a gritarem à medida que se aproximavam, e ela usou o material para o guião.
A pequena Maï-Lou Néry, filha de ambos e hoje com 8 anos, parece não ligar muito às digressões híbridas dos pais, às quais está habituada. “Ela gosta muito de animais e aprecia estar em terra”, observa a mãe, acrescentando: “Já manifestou o desejo de ser veterinária.”
Água: a força etérea do feminino
Enquanto acaricia o cabelo e o afasta da face, Julie Gautier disserta sobre as dimensões emocional e afetiva do contacto dinâmico com o meio líquido, que tem uma presença significativa nos nossos corpos e é simultaneamente a fonte de fitoplâncton, de que depende a nossa vida no planeta. Aos 40 anos, as performances debaixo de água, no oceano ou em piscinas profundas motivam-na tanto como os trabalhos de autoria e de realização. “Após todos estes anos a praticar o autodomínio e a aperfeiçoar o movimento corporal, esqueço-me de que sou um mamífero que respira e desfruto de uma harmonia sem precedentes.”
“A água é um elemento feminino por excelência, envolve-nos e não nos deixa cair.” Como em qualquer relacionamento, “nem tudo é perfeito, às vezes não apetece, há alturas em que sentimos stresse, enfim… não há uma experiência igual à outra”. Sobre eventuais sustos e percalços nesta vida de sereia, Julie garante estar sempre sob controlo: “Conheço os meus limites, sei até onde posso ir e com a máxima segurança possível.”
AMA, a curta-metragem cujo título foi inspirado nas mulheres japonesas que mergulhavam em apneia em busca de pérolas, é uma performance filmada na Y-40, a piscina mais profunda do mundo, com 42,5 metros, em Itália. Estreou-se no Dia Internacional da Mulher, há dois anos, e é um bailado etéreo e fascinante, dirigido por Jacques Ballard, em que a artista apresenta, sem palavras, um tema universal: “Nós, mulheres, somos sensíveis e vulneráveis, mas temos muita força para superar a dor e o sofrimento causados pelas duras provas da vida.” Refere-se à essência da feminilidade, em que coexistem o sentimento de submersão face ao peso do quotidiano e a leveza e harmonia. Um projeto que implicou quatro longos meses de gravações e exigiu muito esforço para transmitir beleza e um estado de bem-estar com movimentos graciosos, enaltecidos pela banda sonora do compositor Ezio Bosso (falecido em maio deste ano) e a coreografia da amiga Ophélie Longuet.
O convite que se seguiu para fazer uma Ted Talk “foi uma coisa assustadora”: “Sou muito tímida, detesto falar e menos ainda diante de muita gente.” A faceta ativista falou por ela e o medo foi vencido, porque era preciso passar a mensagem: “Não podemos continuar a acelerar e a combater a Natureza. Precisamos de compreendê-la e de ter um propósito na ação, algo de que nos esquecemos com frequência.”
Beleza em estado líquido
Julie tinha apenas 8 anos quando disse à mãe: “Eu vou ganhar dinheiro com o meu corpo.” A afirmação não foi levada a sério, mas o sonho tornou-se real. O perfecionismo, antes canalizado para a competição, surge agora ao serviço de causas, no cinema, em vídeos musicais, documentários e anúncios publicitários da sociedade de produção audiovisual Les Films Engloutis, em parceria com Guillaume Néry.
“Recuso muitos trabalhos e seleciono os meus clientes em função da criatividade e da mensagem do projeto.” A marca de relógios italiana Panerai, a Ever Bio Cosmetics e a Empreinte lingerie (campanha Free to be ourselves) estão entre os eleitos. Há cinco anos, foi a vez de correalizar um videoclip para o produtor Naughty Boy: Running’ (Lose It All) conta com as vozes de Beyoncé e Arrow Benjamin, e ultrapassou os 387 milhões de visualizações. Em junho, assinou a campanha Breathing The Ocean, em defesa dos oceanos, lançada pela Biotherm.
Manter-se em forma nunca foi um problema para a ex-atleta: “Faço natação, aprecio correr na montanha e pratico ioga.” Chegou a ser vegetariana. Caça o pouco peixe que come ou compra-o a quem lhe merece confiança. O mesmo princípio vale para o consumo de carne, que também é raro: “Sou responsável e procuro quem produza com preocupações de equilíbrio e respeito pela vida animal.”
Na pacatez da sua casa no campo, pensa já no próximo projeto artístico, com a conceituada bailarina francesa Sylvie Guillem: ambas apostam em dar continuidade aos voos magistrais dentro de água. Em final de conversa, uma sugestão para levar na bagagem: “Não é preciso viajar pelo mundo para ver a beleza que está ao nosso lado e dentro de nós.”