Se o World Press Photo fosse o barómetro definitivo sobre o estado do mundo, as previsões seriam tendencialmente pessimistas. O concurso internacional que distingue a excelência no fotojornalismo tem revelado, sobretudo, as convulsões no planeta vistas pelas câmaras dos profissionais. Este ano houve candidaturas oriundas de 125 países, tendo sido selecionados, em oito categorias, 42 fotógrafos de 22 países (Portugal não consta da lista): 15 foram já anteriormente distinguidos pelo WPP, 27 foram escolhidas pela primeira vez, num total de 312 nomeações. A VISÃO é a organizadora da exposição The World Press Photo 2018, que inaugurará em Lisboa, a 26 de abril.
No ano passado, a fotografia vencedora do WPP 2017, da autoria do turco Burhan Ozbilici, foi polémica: captava o assassínio a tiro do embaixador russo, numa galeria de arte, em Ancara. Este ano, as regras novas do galardão diminuem o suspense: a organização revelou já seis imagens candidatas a Fotografia do Ano (que será revelada a 12 de abril). A VISÃO mostra-as, comentadas por três fotógrafos: Alfredo Cunha, um dos mais conceituados fotojornalistas portugueses, Luís Vasconcelos, diretor do Festival Estação Imagem (dedicado ao fotojornalismo) e ex-editor de fotografia da VISÃO e Augusto Brázio, fotógrafo documentarista, membro do extinto coletivo Kameraphoto, galardoado com o Prémio Fotojornalismo VISÃO/BES 2008. Todos têm opinião sobre este novo método do WPP: “Revelar as seis imagens finalistas faz-nos pensar e refletir sobre todas em vez de nos concentrarmos na fotografia vencedora”, defende Brázio. Luís Vasconcelos crê que é uma forma de “criar expectativa junto da comunidade que se interessa pelos WPP” mas expressa reservas: “Isto não são os Oscars…” Sublinha ainda a qualidade do fotojornalismo atual, tal como Alfredo Cunha, que denuncia, num período de “agonia” para o jornalismo, o paradoxo de existir fotojornalismo de grande qualidade, como se vê no WPP 2018: “Um ano grande de fotografias que não se prestam a subjetividade nem a manipulações.”
Londres – Toby Melvill – agência Reuters
Uma anónima ajuda uma vítima do atropelamento na Ponte de Westminster ocorrido a 22 de março
Acabara de acontecer o ataque levado a cabo por Khalid Masood ao volante de um carro, que matou cinco pessoas e feriu muitas outras, às portas da sala de decisão dos Lordes britânicos. Esta é a imagem do WPP que mostra que “o horror já não está longe, está aqui, está em todo o lado”, defende Alfredo Cunha. O olhar desta mulher ferida impressiona: dramático e direto, interpela o fotógrafo e observador. “Esta pessoa não devia ser a notícia, é a pessoa que ouve as notícias”, uma troca de papéis sublinhada pelo fotojornalista. Outro veterano, Luís Vasconcelos, sublinha a carga dessa proximidade, também patente no facto de ser uma rapariga loura, europeia.
“É uma imagem próxima de nós, não uma figura num conflito distante, o que aumenta o impacto desta fotografia de Toby Melvill, que é efetivamente uma das melhores do ano”, defende. À história percetível sem legendas, ele aponta ainda a bela composição: “É uma fotografia muito forte: o olhar, o sangue no canto da boca, os postais turísticos espalhados no chão, o braço a agarrar quem a ajuda… Não tem nada a mais nem a menos. Transporta-nos para esse drama, para essa rua.” A desconhecida que ajuda outra desconhecida, dobrando-se sobre o sangue, tem um grande simbolismo captado por Augusto Brázio: “A normalidade foi interrompida por uma ação violenta. Mas há, aqui, esperança. Esta imagem é uma poderosa mensagem.”
Mossul – Iraque – Ivor Prickett
Os civis que permaneceram em Mossul, durante a batalha com o Estado Islâmico, fazem fila para receber ajuda
O fotógrafo irlandês foca as lentes nas consequências humanas dos conflitos nesta região. Mossul alimentou igualmente muitos telejornais em 2017. Levante-se a questão: estaremos dessensibilizados? “Esta é uma boa fotografia de reportagem, não mais do que isso. Já vimos muitos retratos de refugiados com estes elementos e enquadramento, esta imagem não surpreende. Não nos vamos lembrar dela por muito tempo”, preconiza Luís Vasconcelos, ainda recordado dos portefólios sobre a queda de Mossul que o impressionaram no Festival Visa pour l’Image: “Aqui, sinto que não há movimento, não há emoção”, confessa.
Outro olhar é apresentado por Augusto Brázio, tocado pelo “epicentro” desta fotografia, uma menina loira (encurralada? protegida?) que ele descreve como “alguém que não sabe o que vai acontecer”. O fotógrafo documentarista encontra, aqui, ecos da realidade mais suja dos conflitos: “Continuamos a cometer as piores atrocidades, e os civis são sempre o elo mais fraco, usados como escudos humanos. Esta imagem faz-nos pensar: a maneira como Ivor Prickett criou o enquadramento, com as duas linhas de horizonte paralelas, quebradas por este rosto central, mas tudo aquilo carregado sobre a figura infantil. Está tão ordenado que parece que alguém os está a coreografar…” Outros universalismos são ressalvados por Alfredo Cunha por entre a “exaustão, passividade assustadora e esperança” da multidão na imagem (uma das suas favoritas a vencedora do ano): “Afinal, os árabes não são todos feios, porcos e maus: são altos, baixos, loiros, gordos, magros, como os outros povos… Somos todos humanos.”
Maiduguri – Nigéria – Adam Ferguson
Aisha, 14 anos, sequestrada pelo Boko Haram, escapou duma missão suicida para a qual foi enviada com um cinto de explosivos
O fotógrafo australiano, em reportagem feita para o The New York Times, retratou raparigas raptadas pelo grupo terrorista Boko Haram, que, instadas a fazerem-se explodir em zonas urbanas movimentadas, conseguiram fugir e pedir ajuda. Entre elas, inclui-se Aisha, protagonista de uma das seis imagens candidatas a melhor fotografia do ano do WPP: rosto meio coberto, janelas cerradas, cores atenuadas. Para Augusto Brázio, esta fotografia “traz mais camadas de significados”:
“A imagem não é óbvia, foi aquela em que me detive mais tempo a observar. Há uma luz, modelar, que não chega a revelar o rosto, captado exatamente ao centro.
Há um exterior, que não sabemos o que é. Há a história da sua coragem, alguém que conseguiu não afundar-se na tragédia.” É também um retrato mais contido, sem sangue ou armas ou violências óbvias, ao contrário de outras imagens associadas ao histórico galardão internacional.
“É um daqueles casos: uma foto bonita com bela luz e enquadramento, o mistério reforçado pelo facto de não se reconhecer o rosto. Mas se não soubermos a história, esta imagem limita-se a ser um bom retrato e, na minha opinião, nunca seria o retrato do ano”, declara Luís Vasconcelos. O diretor e cofundador do Festival Estação Imagem sublinha ainda: “Contar a história sempre foi fundamental no fotojornalismo. No Estação Imagem, valorizamos sobretudo as histórias. O WPP continua a viver, em termos de imagem para o exterior, em função da ‘fotografia do ano.’” Opinião semelhante tem Alfredo Cunha: “É uma técnica muito usada, a de um bom retrato com uma boa história. Mas esta fotografia tem o ‘azar’ de estar ao lado de outras imagens muito fortes. E isso é como, no campeonato de futebol, ter o Benfica com o Eusébio em campo…”
Bangladesh – Patrick Brown
Refugiados rohingya após o naufrágio do barco onde cem pessoas tentavam fugir de Myanmar. Só 17 sobreviveram
É certamente difícil enfrentar esta imagem registada por Patrick Brown, fotojornalista radicado na Tailândia há 20 anos, que registou os cerca de 80 corpos de vítimas da etnia rohingya, depositados a oito quilómetros de Inani Beach, cobertos por panos humildes. É também, de entre as seis imagens escolhidas, aquela sobre a qual se poderia levantar uma velha questão: deve fotografar-se tudo, mostrar tudo? “Isto é o horror”, atira Alfredo Cunha. “Mas eu acredito que se deve sempre fazer a fotografia, que esse gesto é importante. Neste caso concreto, os corpos estão tapados, houve um pudor…”, assinala.
O dito valor-choque funcionou com Augusto Brázio: o fotógrafo assume evitar ver estas imagens e não esconde a perturbação perante a visão destes corpos deitados no relvado, os pés assim descobertos, os panos tintados de vermelho. “Estas fotografias não são neutras, são formas de chamar a atenção para a realidade. E esta imagem de Patrick Brown ganha força porque revela essa realidade sem revelar a identidade das vítimas”, considera. Se a causa dos rohingya é bem conhecida do público, Luís Vasconcelos considera, no entanto, que a questão destes refugiados não se pode esgotar assim. Diz o fotojornalista e ex-editor de fotografia da VISÃO: “Esta é uma imagem imensamente trágica, fortíssima, com uma boa composição técnica. Mas não me parece que o drama dos rohingya se limite aos cadáveres de um barco que se afundou.”
Caracas – Venezuela – Ronaldo Schemidt
Manifestante em chamas num confronto com a polícia durante os protestos contra o Presidente Maduro
José Victor Salazar Balza, 28 anos, é uma tocha humana nesta imagem de violenta espetacularidade, captada pelo fotojornalista venezuelano a trabalhar para a Agence France Press na Cidade do México. “Esta fotografia é fotojornalismo puro e duro na sua essência”, diz, sem rodeios, Alfredo Cunha. E explica:
“É a fotografia de coragem: o fotógrafo está lá. Devido ao seu impacto, ela pode ter o poder de mudar alguma coisa.” Questionado sobre essa outra questão ética, levantada em anteriores edições do WPP, sobre o socorro que um fotógrafo pode ou deve prestar perante estas situações, o fotojornalista português é resoluto:
“Essa é uma falsa questão: é importante que o mundo inteiro veja esta imagem, é por isto que ainda somos jornalistas.” E não esquece de colocar a hipótese de o fotógrafo ter, de seguida, ajudado o retratado. Um mesmo impacto é expresso por Brázio e Vasconcelos. “Esta é uma fotografia arrepiante e simbólica, porque se trata de um regime incendiário, de um homem que incendiou um povo. Aqui, há um corpo em desespero, em chamas, que irrompe no enquadramento e que, através da sua proximidade, nos faz uma tangente. Este fotógrafo tem um propósito: mostrar o que acontece no país. E consegue-o”, declara Augusto Brázio. Luís Vasconcelos não camufla o “voto” de “júri sem o ser”: “Esta é a fotografia vencedora do WPP. De todas as imagens a concurso, é a mais forte. Basta ter a simples palavra ‘Venezuela’ para que esta imagem tenha todo o significado: um país em chamas devido à política desastrosa de Maduro. A composição é muito boa: por trás do manifestante a arder, há algo mais a arder também; a proximidade, fundamental no fotojornalismo, está lá; a fotografia tem imensa ação; há o drama de te manifestares e pegares fogo. Mas este homem não se imola em protesto, e isso faz toda a diferença. E conta toda a história da Venezuela. Se conta!”
Mossul – Iraque – Ivor Prickett
Criança ao colo de um suspeito de ser militante do Estado Islâmico, durante a evacuação da última área controlada pela organização
O fotojornalista representado pela Panos Pictures tem duas imagens suas no grupo das seis “finalistas” do WPP, incluindo esta imagem captada em Mossul, reveladora da destruição da cidade e cenário do interrogatório feito por soldados das Forças Especiais do Iraque a um homem que segura o rapazinho nu. “Para mim, esta é ‘a’ fotografia. A fotografia que eu gostaria de ter feito”, declara Alfredo Cunha, fotojornalista experiente que já esteve em Mossul. E explica as suas razões: “Tem uma humanidade fantástica, extraordinária, sem artifícios nem maneirismos estéticos. É outro exemplo de jornalismo puro e duro, e mostra uma réstia de esperança no meio do caos.”
Mas a forma de ver uma dada fotografia é sempre subjetiva, tanto por parte do público como de quem tem um olhar treinado. Também com reportagens efetuadas no Iraque no currículo, Luís Vasconcelos filtrou com outros critérios a imagem de Ivor Prickett: “Não posso comentar sobre a suspeita a que a legenda da imagem alude… Mas esta é uma boa fotografia de reportagem, melhor do que a outra também selecionada: tem os intervenientes no sítio onde as coisas acontecem, a cidade destruída… Mas a ação é algo parada, e não me parece fotograficamente relevante”, conclui. Outras leituras e suspeitas são suscitadas por Brázio: “Esta fotografia é representativa do que é o World Press Photo. Mas experiencio alguma dificuldade perante esta imagem, porque há uma ambiguidade perturbadora: a de não sabermos o que se passa, se este individuo é um militante do Estado Islâmico ou se na verdade esta criança está viva…” Uma interrogação que, depois de colocada, abre um abismo a quem vê a fotografia por uma segunda vez.