Na Cova da Moura, o novo estúdio de música da Associação Cultural Moinho da Juventude é o orgulho dos jovens rappers do bairro. Há mais de dez anos que se esperava pela construção deste espaço. Assim, o hip hop da Cova ganha novo fôlego. “Agora, temos tudo a nosso favor: um bom estúdio e um grupo de MCs unidos. Está criada uma base para o futuro”, afirma SDD, um dos músicos do bairro.
A história do hip hop da Cova da Moura, nas margens de Lisboa, começou a escrever-se há quase 20 anos. “Tínhamos coisas para dizer. Precisávamos de falar dos problemas do bairro e do mundo. E quando os grupos de hip hop começaram a surgir, reuníamo-nos para discutir os temas das músicas”, recorda Lord Strike, um dos primeiros a fazer beats numa comunidade onde a maioria da população é de origem cabo-verdiana.
O crioulo faz, por isso, parte da identidade musical da Cova. Para muitos dos MCs trata-se da sua língua. Junto das editoras este parece ser, porém, um dos principais entraves à divulgação do hip hop do bairro. “Dizem-nos para cantarmos em português porque não se percebe o crioulo. Mas hoje toda a gente ouve kizomba e funaná…”, diz Kromo di Ghetto, que não aceita os argumentos das editoras. LBC Soldjah acrescenta: “Ninguém quer ouvir falar dos problemas reais.”
Apesar dessas dificuldades, estes músicos não desistem. “O hip hop é a única hipótese de mostrar a Cova da Moura através dos nossos olhos”, afirma Stef, dos Soul Jah. “E, aqui, os nossos olhos são a nossa voz.”
Kromo di Ghetto – A VERDADE INCONVENIENTE
“A única música de intervenção que se faz hoje em dia é o rap.” As palavras são de Kromo di Ghetto, para quem esta é a única explicação para o hip hop do bairro não interessar às editoras. “Falamos de uma realidade dura e, por isso, inconveniente. As pessoas preferem tapar os olhos e os ouvidos. Ninguém quer assumir o que se passa em bairros como a Cova da Moura.”
Kromo di Ghetto é o nome artístico escolhido por Celso Lopes: “Kromo é a minha abreviatura para cromossoma. Quando canto, represento um cromossoma do gueto. É como se estivesse a dizer que faço parte do seu ADN.” De origem cabo-verdiana, este MC tem 25 anos e trabalha como mediador sociocultural, no Serviço de Estrangeiros e Fronteiras.
Se alguém acredita que estes músicos se vão calar, Kromo refuta essa hipótese: “Se a opressão persistir, se os problemas não forem resolvidos, o rap também vai persistir. Nós não desistimos.” Afinal, a lei do rap é “educar as massas” e “quem não o respeitar, não está a fazer rap. Aqui no bairro, isso não é aceite.”
As letras de Kromo falam de racismo, pobreza, agressão, revolta. Porque, explica, querem ser “um murro no estômago” de quem detém o poder. Continua: “Não posso falar de festa, de boa vida, quando não vivo nada disso. A minha humanidade é outra.” Kromo di Ghetto vê-se como um sobrevivente, numa época de guerra. “Viver na Cova e ser preto é sobreviver.”
Djoek – O HOMEM DO SHOW
Ouve todo o tipo de música e não tem vergonha de dizer que gosta de Ivete Sangalo. Para Djoek, a música – e também o hip hop – “pode ser uma forma de intervenção na sociedade ou de simples diversão”. “As minhas letras falam de tudo um pouco: do quotidiano, dos problemas sociais, do amor, das damas atrevidas. O hip hop não tem de ser sempre uma coisa séria.”
Djoek, 34 anos, chama-se Octávio Varela. Nasceu em Cabo Verde, mas, aos 16 anos, veio para a Cova da Moura. Foi nessa altura que a paixão pela música falou mais alto: “Ia muito a discotecas, adorava aquela onda descontraída e percebi que era isso que queria fazer da minha vida.”
Ao contrário da maioria dos rappers do bairro, Djoek conseguiu gravar dois álbuns (embora não seja fácil encontrar uma loja que venda esses CD). Em 1996, lançou Nada Mi Ka Teni (em português, “Eu não tenho nada”). Pouco tempo depois, em 1998, era a vez de Ke Ki Ke que se pode traduzir por “O que é que se passa?”. “Foi uma aposta da Disconorte, mas a maioria das editoras não está interessada em hip hop, ainda para mais se for cantado em crioulo.” Actualmente, Djoek tem um estúdio próprio, onde ajuda outros músicos a gravar as suas canções. Também tem um outro álbum preparado. “Quero ser homem de show, fazer do hip hop a minha vida.” Falta-lhe uma editora que o suporte.
LBC Soldjah Minao – DA COVA PARA O MUNDO
Para Flávio Almada, 24 anos, hip hop é intervenção social. Cabo-verdiano, está em Portugal há sete anos. Em criança, gostava de poesia e, aos 13 anos, a vontade de “impressionar uma miúda” levou-o a escrever os seus primeiros poemas. Hoje, continua a escrever mas as suas mensagens são bem diferentes. “O meu hip hop tem uma perspectiva global. Tanto posso falar da realidade social em Portugal como da guerra no Iraque ou da crise no Darfur”, refere Flávio, mais conhecido por LBC Soldjah Minao.
Foi o hip hop, enquanto movimento cultural, que o levou a procurar conhecer melhor as suas raízes africanas, bem como a descobrir o pensamento de personalidades como Malcom X, Angela Davis ou Nelson Mandela. Talvez por isso, encare a música como uma espécie de activismo. “Quero fazer algo que marque a diferença. O hip hop não é só alguém a cantar umas músicas, a comunidade tem de obter alguns benefícios”, afirma LBC.
Preocupado, sobretudo, com os mais novos, criou, com amigos, o grupo Kilombo di Hip Hop que, reunindo MCs, DJs, grafiters e tatuadores, pretende proporcionar o acesso à cultura por parte das crianças de bairros mais desfavorecidos. “Não estamos restringidos à Cova da Moura. O nosso objectivo é furar barreiras e criar uma escola para podermos chegar às crianças. O trabalho é voluntário. Não temos verbas para estes projectos.”
Estudante, gostaria de fazer do hip hop o seu futuro, mas não vê com bons olhos a ligação a uma editora. “As editoras não podem raptar a cultura. A cultura é do povo. Uma editora pode vender muitos CD e o povo continua sem ganhar nada. O hip hop não é isso.”
Thugz – O PASTOR
Começou a fazer hip hop porque gostava de rimar e queria que as pessoas admirassem o seu talento com as palavras. Hoje compõe música “para falar de Deus e do que Ele pode fazer pelo Homem”. Para Thugz, 28 anos, “hip hop é consciência, não é falar à toa”. Na Cova da Moura, este MC também é conhecido como Tagarela, mas ele não gosta da alcunha. O seu nome verdadeiro é Vítor Varela.
Depois de passar por uma fase de “sofrimento” em que sentiu que o mundo não o podia ajudar, diz que descobriu a “salvação” na palavra de Deus. Desempregado, ocupa o tempo a ler a Bíblia e nos cultos da Igreja Evangélica sediada no bairro que o viu nascer. Se antes ouvia Public Enemy e Kris Kross, hoje prefere música evangélica. “Já não me identifico tanto com o rap que se faz por aí. Aprendi a ver o que é certo e o que é errado. Para mim, o hip hop, agora, só faz sentido se for usado como uma arma para o bem.” Por isso, as suas letras falam de “como andar na verdade, amar a justiça e aborrecer a maldade”. Thugz integra a banda Black Lyrics, mas o grupo “está um bocadinho parado – ainda não consegui convencer os meus sócios a fazer música para espalhar a palavra de Deus”. Thugz parece determinado em tornar-se “o pastor do hip hop”.
Mandiglas – LIBERDADE DE EXPRESSÃO
Foi aos 16 anos que Edgar Santa Rosa começou a escrever a sua música. Nascido em São Tomé, veio para Portugal com 6 anos. Passou pelo Cacém, Lisboa e Reboleira até se fixar na Cova da Moura, há mais de 20 anos. Actualmente desempregado, sempre gostou de música, mas o hip hop não fez parte da sua formação musical. Em miúdo, eram, sobretudo, os ritmos africanos do funaná e da kizomba que o cativavam. Não tinha dinheiro para comprar CDs, por isso ouvia o que se tocava no bairro e o que passava na rádio.
Depois de cair de um comboio, viu-se preso a uma cama de hospital, durante cerca de seis meses. Foi aí que começou a escrever. “Eu era um miúdo calado. Era capaz de entrar num sítio e sair sem dizer nada. Depois do acidente tudo mudou. Tive muito tempo para reflectir e precisava de exprimir a minha revolta”, conta Edgar, hoje MC Mandiglas.
Se começou por ser um grito de revolta, a música de Mandiglas fala agora da vida e do que esta tem de bom e de mau. “O hip hop é liberdade de expressão. Se falares de coisas boas, há logo quem banalize: ‘Ah, isso é música comercial!’ Isso não é assim'”, observa. “Eu falo da vida, da nossa personalidade, do nosso carácter. Antes de criticar lá fora, critico cá dentro, dentro de mim e do meu bairro.”
Lord Strike – MÚSICA AO ATAQUE
“A minha posição no hip hop é só uma: intervenção, intervenção, intervenção.” A citação é de Lord Strike e traduz bem a atitude de um MC para quem a música só faz sentido se for de ataque e reivindicação.
Ermelindo Quaresma tem 36 anos, é natural de São Tomé e Príncipe e foi um dos primeiros a criar hip hop na Cova da Moura. Chegou a Portugal com 19 anos para estudar, mas a vida não lhe correu como planeado e acabou a trabalhar na construção civil. “Estive nas obras durante 12 anos. Aprendi muitas coisas mas também percebi que podia ir mais longe. Não queria ficar ali para sempre”, conta Strike. Determinado a encontrar um novo caminho, tirou um curso de inglês por correspondência e formou-se em informática. Hoje, é animador e formador informático, no Moinho da Juventude.
Em criança, costumava juntar “todos os trocos” para comprar cassetes no mercado, agora cria a sua própria música. O seu hip hop não é de gueto, garante. As suas causas são as de toda a sociedade. “Nunca escrevo só sobre o racismo ou a discriminação dos imigrantes. Falo sobre a situação política, a corrupção, o trabalho precário, a falta de oportunidades, a relação entre os países ocidentais e os africanos.”
Além de denunciar os problemas, o seu objectivo é também passar uma mensagem de esperança e indicar soluções. “Quero apontar caminho. Como digo numa das minhas músicas: ‘Vamos bater a todas as portas, eu e os meus brothers vamos traçar novas rotas.’ É preciso dizer que não podemos baixar os braços. Quando a porta está fechada, vais e bates noutra. Se calhar, continua fechada, mas se se abrir, perguntas e avanças. Foi isso que fiz toda a vida.”
Cash – O REVOLUCIONÁRIO
É muitas vezes confundido na rua com o jogador do Manchester United Nani. As parecenças são evidentes, mas Cash gosta de esclarecer que nem sequer são da mesma família. Carlos Fernandes tem 30 anos, sempre viveu no bairro e reconhece que começou a fazer hip hop por “passatempo”. Hoje é diferente. “O meu rap é de intervenção, não é comercial.”
“Quem vive na Cova da Moura precisa de falar do que se passa. As pessoas lá fora acham que sabem, mas não. É mentira. É só o que vêem na televisão. Estou cansado de ouvir as pessoas dizerem ‘És da Cova da Moura? Eu é que não meto lá os pés'”, diz, revoltado. E acrescenta: “Isto aqui não é um inferno… Nós somos gente!”
Após ter trabalhado como tratador de cães, Cash está agora desempregado. Vive na casa da mãe. É ele que cria a filha, Erica, de 12 anos. Ela também é sua fã e, às vezes, até participa nos ensaios. O rap de Cash distingue-se do hip hop dos outros músicos pela velocidade com que canta as rimas. “É mais rápido, mas não é melhor nem pior. Aqui, todos fazemos hip hop para melhorar o bairro.” As suas letras falam, sobretudo, do abuso de poder da polícia: “Não acho que o bairro não precise da polícia. Pelo contrário, eles podem ajudar-nos. O que não deve continuar a acontecer é eles chegarem aqui e agredirem-nos, às vezes até à frente das crianças. O que é que isso gera? Mais violência. Os miúdos crescem a ver a polícia como um inimigo.” Por tudo isto, Cash não tem dúvidas: “Faço hip hop para ser revolucionário.”
Soul Jah – A BANDA DA COVA
Os Soul Jah são conhecidos em toda a Cova da Moura. As crianças cantam, nas ruas, Pa Nha Rapaz sempre que vêem a banda que dedicou uma música aos “filhos do bairro” mortos em rixas ou em confrontos com a polícia. Stef e Jackson escrevem, compõem e interpretam este hip hop de intervenção. Peter é o terceiro elemento e trata da produção. Foi ele que conseguiu o primeiro videoclip da banda: tinha ido fazer figuração para um episódio da Floribella, quando conheceu o repórter de imagem João Coelho e o convenceu a filmar o grupo.
Os três rapazes são amigos desde infância. Nasceram e cresceram no bairro. Há cerca de dez anos, juntaram-se para criar os Soul Jah, inspirados pelo espírito combativo de Jah Rastafari. Desengane-se, no entanto, quem pensa que a sua música é reggae ou que eles usam rastas. A sua forma de expressão é o hip hop. Porque, diz Peter, trata-se de um “grito de revolta”. Ele é o manager da banda, chama-se Jorge Monteiro, tem 27 anos e é auxiliar de educação na creche no Moinho da Juventude.
Os Soul Jah dizem que já viram de tudo neste bairro, mas que não têm medo nem vergonha de falar sobre o que se passa. “Se escondermos a verdade, não podemos mudar as coisas”, advoga Stef, cujo nome verdadeiro é Fernando Semedo. E acrescenta: “A droga estraga a união deste bairro. Os jovens querem dinheiro fácil e é difícil conseguir emprego quando dizes que és da Cova da Moura.” Mas Stef conseguiu-o: trabalha no aeroporto de Lisboa. Aos 25 anos e com uma filha, gostava de fazer da música a sua vida, mas não está disposto a abdicar dos seus valores: “Tenho vergonha na cara. Não quero ser visto a cantar coisas supérfluas só para ter sucesso.”
A opinião é partilhada por Jackson, 28 anos. Este jovem, de nome Luís Miguel, tem duas filhas e está à espera de ser chamado para um estágio como cozinheiro. Tem a certeza de que, se morasse noutro sítio, não teria a mesma inspiração para fazer as músicas. “O nosso hip hop é um retrato da Cova, mas mais do que isso é luta, é resistência.”
SDD, Soldado de Deus – A PALAVRA FEITA ARMA
Silvino Furtado, 25 anos, nasceu e cresceu na Cova da Moura e é aí que quer continuar a viver. Ama o seu bairro e as suas gentes mas nem por isso fecha os olhos aos problemas que o rodeiam. “A Cova tem mudado muito, nos últimos anos. Quando eu estava a crescer, havia mais união e simplicidade. As pessoas eram mais conscientes”, recorda. “Hoje, desde que o tráfico não seja feito à sua porta, ninguém quer saber. Mas se todos pensarem assim os problemas não se resolvem. Há coisas que não podemos esperar que sejam os outros a fazer. Temos de ser mais lutadores.”
SDD – abreviatura de Soldado de Deus – encontrou no hip hop a sua forma de luta e fez das palavras a sua arma. Desde criança que se interessou por música. Em miúdo, costumava ouvir o hip hop feito na Cova, por grupos como os Menace to Society, ou o seu ídolo de sempre, o rapper norte-americano, Tupac. Aos 13 anos, escreveu a sua primeira canção, Os Putos do meu Bairro, que falava da importância da escola e da educação.
Hoje, SDD trabalha no Moinho da Juventude. É guia, no projecto Sabura, uma iniciativa de visitas guiadas ao bairro, com vista a promover a sua identidade cultural. Para SDD, o hip hop surge como um complemento da sua actividade diária e como uma forma de ajudar a sua comunidade. “O que me interessa não é o dinheiro ou a fama. Se conseguir consciencializar alguns jovens já ganhei todo o dinheiro do mundo. O que eu quero é que as pessoas vejam que eu canto a verdade e que quando me ouvirem digam: ‘Está ali um resistente. Está ali um soldado’.”