General Manager da Microsoft Portugal há três anos, Paula Panarra dá uma entrevista exclusiva à Exame Informática na sequência da intervenção que fez no 5º Congresso da GS1 Portugal, onde abordou a temática “Inteligência Artificial: Mitos & Receios, Ética & Oportunidades”. Nesta conversa, a líder fala sobre IA e também sobre software livre, hardware, cloud e jogos, entre outros assuntos.
Pegando na apresentação que fez no evento da GS1, quais são os principais mitos, receios e dúvidas que identifica na área da Inteligência Artificial (IA)?
Penso que, por ser um tema novo e onde com frequência é associado este tipo de funcionalidades e tecnologias à substituição do humano pela máquina, há todos os mitos ligados ao que isso poderia causar se assim fosse. Mas não é bem essa a realidade. Há, de facto, uma série de tarefas que hoje em dia são ainda de baixo valor executadas por pessoas nas empresas e que podem ser substituídas pela máquina. Não é o desaparecer de profissões ou funções totalmente substituídas, mas é um conjunto de tarefas que podem ser automatizadas e com isso libertar tempo para tarefas de maior valor. Na verdade, o que estamos a falar na IA é de um conceito e uma tecnologia que vem dos anos 60, quando começou a ser estudada. O que acontece hoje em dia é que o volume de dados que são produzidos todos os dias, quer por nós na nossa vida pessoal quer pelas empresas na forma como operam, e aquilo que é o poder computacional que as novas tecnologias, nomeadamente na nuvem, conseguem trazer fazem com que a resolução da algoritmia possa acontecer em tempo real. É basicamente isso que faz com que hoje seja possível falarmos da utilização deste tipo de processos e tecnologia no dia-a-dia e de uma forma que é inclusive comercialmente viável de ser incorporada dentro das organizações. Agora quando falamos de IA falamos de muitas coisas diferentes. Pode ser para tarefas preditivas, para tarefas de automação, pode ser apenas para tarefas de conhecimento – os chamados insights de negócio para decisões em tempo real – ou pode ser para personalização ou prescrição. Mas o que estamos a falar, e esse é um mito que importa desmistificar, é que é apenas uma tecnologia que permite resolver temas com um volume de dados muito grande quase em tempo real.
Tem números de algum estudo da Microsoft sobre a recetividade ou as oportunidades para as empresas nacionais da adoção da IA?
Fizemos um estudo em 2018 que nos diz que cerca de 80% das empresas em Portugal reconhece que a adoção deste tipo de tecnologias vai trazer melhorias de eficiência e eficácia em praticamente todos os setores. A realidade é que 50% delas ainda estão em fase piloto ou em fase de estudo deste tipo de projetos e só cerca de 20% é que já tem algum tipo de processo ou disciplina que estejam a fazer a utilização em produção deste tipo de tecnologia. Portanto, ainda há um caminho a percorrer naquilo que é o potencial e a oportunidade que estas tecnologias podem trazer para as organizações portuguesas.
Há algum sector de atividade que considere que teria uma vantagem particularmente interessante em adotar IA?
É difícil dizer quais podem tirar mais, pois na verdade todos podem tirar de alguma forma. Vou dar exemplos como o retalho ou tudo o que é uma gestão mais eficiente da procura para fazer uma melhor gestão de supply chain e de existência de stocks. Esse tipo de tecnologias pode dar indicações de sazonalidade, de preferência de produto, de pricing, que ajuda a uma gestão mais eficiente do stock e da supply chain. Por outro lado, aquilo que é hoje em dia o tipo de experiência mais personalizada que se pode fazer quer online quer na coexistência entre o online e o offline – hoje é possível que uma determinada marca da qual já tenho alguma fidelização, quando entro em contacto com ela no mundo digital, aquilo que me é sugerido já é personalizado para o que são os meus gostos e as minhas preferências, e isso cria uma maior conexão e fidelização entre o consumidor e a marca. Há vários estudos que provam que, enquanto consumidores, nós hoje somos mais exigentes e, acima de tudo, gostamos de gerir melhor o nosso tempo. Portanto, essas personalizações vêm ajudar-nos a fazer uma escolha já mais direcionada num curto espaço de tempo entre mim e a marca. Há inúmeros exemplos de aplicação quer nos casos de IA preditiva que ajudam, acima de tudo, à eficiência das operações, quer depois na fase de personalização, que ajudam muito à eficácia da marca para com o consumidor.
Dentro desses dois tipos de IA que referiu, a Microsoft Portugal está a trabalhar de forma mais empenhada em alguma deles com produtos específicos?
Temos vários clientes com quem já estamos a trabalhar este tipo de soluções, mas, acima de tudo, aquilo que a indústria da tecnologia está a fazer é disponibilizar alguns destes serviços para que depois os parceiros que desenvolvem soluções específicas para o cliente poderem já fazer a utilização desses pequenos pedaços de código e incorporá-los naquilo que é a sua solução de uma forma já muito customizada para aquele cliente em particular. A indústria da tecnologia está cada vez mais a produzir esses serviços, sejam eles serviços cognitivos – como, por exemplo, o reconhecimento da escrita ou da fala, que são pedaços da IA que podem ser utilizados num chatbot ou num call center e que podem agilizar o tempo de resposta – ou depois algoritmos mais analíticos, que são os que permitem fazer este tipo de aconselhamento personalizado de um determinado tipo de produto. Temos já vários clientes em Portugal com quem estamos a trabalhar nos mais variados setores em que estão a ser utilizadas soluções com estas tecnologias.
Qual a sua posição em relação à questão da ética/legislação na IA e de como a ausência de normas pode permitir à IA ser explorada negativamente?
Houve, na Europa, a norma de proteção de dados que vem já trazer um enquadramento muito interessante relativo àquilo que é a privacidade e a capacidade de ser o indivíduo a poder decidir o que tem, o que pode e o que quer ou não que seja feito com os seus dados pessoais. Esse é um enquadramento que está a tornar-se um standard noutras partes do mundo por ser tido como muito positivo e evoluído do ponto de vista do tratamento da privacidade dos dados. Relativamente à IA, há um papel que a indústria, e a Microsoft em particular, acredita que também deve ter nestas tecnologias na ausência de regulação: deve criar as condições internas de desenho que vão de acordo àquilo que são os nossos princípios e os nossos valores como empresa. No nosso caso, tudo o que são tecnologias que incorporam, de alguma forma, IA são desenhadas com estes princípios: tem de ser confiável; tem de ser inclusiva, ou seja, tem de reduzir ou remover qualquer princípio de “bias”, seja ele de que tipo for, dos seus algoritmos; tem de ser segura; e tem de ser transparente, o que significa que sabemos qual é o algoritmo matemático que está por detrás e, se estamos a falar com uma máquina, sabemos que é uma máquina e não um ser humano, portanto não ter a pretensão que uma coisa substitua a outra. Com estes princípios acreditamos que estamos a fazer um desenho de tecnologia responsável, no sentido daquilo que vai ser a sua utilização para o propósito para o qual foi desenhada e vai ser utilizada. Criámos até um comité de ética que faz a aprovação de qualquer peça de tecnologia que incorpora este tipo de algoritmia antes de ser colocada no mercado. Acredito que a indústria enquanto indústria tem de criar os seus próprios valores de ética para que, enquanto não existe essa regulação, nos possamos autorregular no sentido destas tecnologias serem utilizadas para aquilo que nós acreditamos que é suposto serem, que é aumentar a capacidade e o engenho do Homem.
Estamos no final do ano. É possível fazer um balanço da evolução do negócio da Microsoft Portugal e de que forma está alinhado com as perspetivas iniciais?
O negócio da Microsoft em Portugal segue a estratégia da Microsoft global, portanto, hoje muito focada naquilo que é a adoção e utilização das nossas plataformas de cloud. Essas plataformas estão, acima de tudo, assentes naquilo que é a família de Office 365, portanto, todas as ferramentas de produtividade e de espaço de trabalho. Depois todas as ferramentas de aplicações de negócio, mais relacionadas com a plataforma de Dynamics. E depois ainda a nossa plataforma de Azure, que é a nossa plataforma de cloud. Esta é a nossa estratégia: cada vez mais promover a adoção destas plataformas no mercado português. Isto porque a utilização ou o consumo da tecnologia através da cloud permite às empresas fazer um consumo de tecnologia com muito pouco investimento CAPEX e, acima de tudo, com um movimento de subscrição em OPEX. Isso para uma economia como a portuguesa é muito importante, porque significa que não é preciso fazer grandes investimentos à cabeça, mas pode fazer-se a utilização destas tecnologias como qualquer grande empresa sendo uma empresa mais pequena para modernizar, transformar e incorporar estas tecnologias e poder ser mais competitivo num mercado que é cada vez mais digital e global. O nosso foco está em ajudar as empresas portuguesas a fazerem a adoção desta digitalização e acompanhar esta transformação digital. Os resultados têm estado a correr bastante bem, temos tido cada vez mais clientes e parceiros – porque nós operamos, acima de tudo, num modelo indireto e temos cerca de 3 mil empresas em Portugal que trabalham em cima da nossa tecnologia para o cliente final. Neste momento, já mais de 50% da nossa faturação é faturação em cloud nestas plataformas e acreditamos que vamos continuar a ajudar o país neste movimento de modernização.
Este foi um ano de eleições e uma das medidas que muitos partidos de esquerda defendiam nos seus programas eleitorais era a abolição do software licenciado a favor de soluções de software livre na Administração Pública. Que argumentos utilizaria para mostrar que ainda é vantajoso continuar a usar software licenciado?
Penso que há espaço para uma coisa e para outra. Na nossa plataforma de Azure é possível correr muitos dos softwares de open source. Portanto, em cima da cloud da Microsoft pode ser utilizado muito do open source disponível – posso dizer que os nossos engenheiros são dos maiores contribuidores para a plataforma de open source enquanto geradores de software aberto. E acreditamos que cada vez mais as plataformas devem ser abertas, para que, em todo o momento, cada entidade possa decidir o que é melhor para si. Há espaços, como a produtividade e as ferramentas que utilizamos para trabalhar no dia-a-dia, em que há que ter em conta aquilo que é a formação dos indivíduos, os hábitos e a familiaridade que têm e o que uma mudança pode introduzir – esse é um fator importante para qualquer tecnologia e para o momento de adoção de qualquer mudança. Mas hoje em dia as plataformas são cada vez mais abertas e penso que os clientes, sejam da Administração Pública sejam do setor privado, têm cada vez mais a opção de poder fazer a sua escolha do que, a cada momento, é mais interessante.
Referiu o peso que a cloud tem no negócio da Microsoft Portugal. E que peso tem a venda de hardware da linha Surface no nosso mercado?
Os dados de mercados individuais é algo que não partilhamos, poderão ver o peso de cada área nos relatórios globais. Mas posso dizer que Portugal foi dos locais onde o Surface teve maior sucesso logo desde o início. Na verdade, aquilo de que estamos a falar é de um produto que veio revolucionar uma nova categoria de dispositivos e a forma como utilizamos os dispositivos de produtividade no nosso dia-a-dia; outras marcas seguiram depois o princípio do 2-em-1. O Surface é hoje uma marca com um portefólio muito mais alargado – também já tem laptop, um Surface mais pequeno, outro maior, o Hub (que já é um computador em formato de ecrã para acompanhar uma sala de reuniões)… Portanto, vamos crescendo a família e o portefólio, acreditamos que também marcando ou procurando desenhar o que pode ser uma nova tendência da utilização destes dispositivos, seja na nossa vida pessoal seja no mundo empresarial.
Está prevista uma maior aposta da Microsoft Portugal na Xbox para ganhar quota de mercado? E como vê o futuro do gaming, com esta aparente futura dicotomia entre consolas e serviços de streaming, onde a Microsoft também vai entrar?
A Xbox continua a ter uma presença em Portugal também. O mundo do gaming vai transformar-se, acho que já está a transformar-se. Basta ver o movimento dos eSports, que é muito interessante, porque, na verdade, é uma coexistência entre o mundo online e físico. As pessoas hoje não jogam sozinhas no seu cantinho ou cubículo, pelo contrário, tipicamente jogam em equipa com outros ou contra outros. Inclusive neste novo modelo de eSports acontecem num espaço físico num determinado momento e depois visionado por milhões em todo o mundo. Portanto, acho que vamos ver muitas alterações e o streaming é uma delas. As capacidades que a tecnologia hoje traz permitem que isso possa vir a ser uma realidade se o consumidor assim o quiser e se a indústria trabalhar nesse sentido.