Christoph Grote, vice-presidente para Área da Eletrónica, e Klaus Straub, vice-presidente responsável pela Área da Informação – ambos executivos da BMW e ambos responsáveis por um dos dossiês mais estratégicos: desenvolver os primeiros carros autónomos de uma marca que fez sucesso junto de quem gosta de conduzir. De passagem pela inauguração oficial do centro de Lisboa da Critical Techworks, os dois executivos explicam o que os levou a estabelecer uma parceria com a portuguesa Critical Software e apontam para um futuro próximo em que os habitáculos dos carros passará ter várias semelhanças com algumas das mais avançadas salas de estar.
A BMW e a Daimler, que é detentora da marca Mercedes, estão a trabalhar em parceria numa nova plataforma para carros autónomos… A rivalidade acabou?
Christoph: Estamos a testar e a desenvolver uma plataforma em parceria. Temos de encarar o racional desta iniciativa. Antes de mais, estamos a trabalhar com a Daimler numa plataforma de condução autónoma que não será usada apenas pelas duas empresas, mas também por outras empresas. A razão para isso é que acreditamos que é realmente importante liderar a tecnologia de condução autónoma, tendo por cenário o futuro da mobilidade. A BMW tem vindo a estar envolvida em diferentes formas de mobilidade do futuro há muitos anos. Há quase uma década lançámos um sistema de partilha de carros; mas também queremos liderar a condução autónoma. Tendo em conta o dinheiro que é necessário investir, não faz sentido fazer uma plataforma de condução autónoma para cada marca. Vemos isto mais como um desafio transversal. E por isso faz sentido juntar esforços e criar uma plataforma conjunta.
Portanto, vai acontecer nos carros o que aconteceu nos computadores e telemóveis: dois ou três sistemas operativos dominam todo o mercado!
Christoph: Há muitas tecnologias em que a diferenciação não é propriamente necessária. Dou como exemplo a localização de um carro. O veículo tem de saber em que local se encontra na estrada, mas essa é uma das coisas que um utilizador repara se algo de errado acontecer – o que não acontece. Em contrapartida, há outros tópicos onde a diferenciação é realmente necessária. Por exemplo, na interface de utilizador. Nesse caso, é possível uma diferenciação, com tecnologias, como a localização que são comodities (serviços essenciais)… e que podemos desenvolver em parceria com a Daimler.
O acordo com a Daimler poderá vir a produzir algum efeito nos vossos planos de iniciar os primeiros testes com carros autónomos em 2020?
Christoph: As duas marcas vão manter os roteiros de desenvolvimento com veículos de nível 2 e nível 3 de condução autónoma, como planeado. Mas para lá das primeiras implementações, acreditamos que a partir de 2020 veremos surgir uma convergência entre plataformas e produtos.
Acreditam que as pessoas vão passar a dizer este carro é do sistema operativo X ou Y, tal como hoje dizem que têm um telemóvel Android ou iOS? O sistema operativo, as aplicações utilitárias e o infotainment poderão vir a determinar as escolhas das marcas pelos consumidores?
Christoph: A um nível das aplicações mais básicas, as pessoas não vão conseguir detetar a diferença. Mas há outras coisas como a interface do utilizador que vão ser altamente diferenciadoras.
Klaus: É preciso ter em conta outros parceiros. Não é só a Daimler… há também empresas da área das comunicações móveis e não só. Vamos ter cada vez mais serviços baseados de dados; é tudo uma questão de volume de dados a que temos acesso. Será uma mais-valia se nos articularmos com outros fabricantes de carros para termos mais dados do que aqueles que temos hoje. É algo que já fizemos com o grupo FCA (da Fiat) e que nos permite combinar métodos, dados, inteligência artificial, com o objetivo de desenvolver serviços baseados em aplicações. É uma questão de capacidade.
Christoph: A BMW já tem mais de 10 milhões de carros conectados na estrada. A última geração de carros dispõe de um sistema de condução que transmite um grande volume de dados relativo às condições das estradas, alterações de mapas – e tudo isso é transmitido para a cloud, que depois reencaminha esses dados cá para baixo. Essa é uma das vantagens que a maioria das pessoas não compreende. Uma empresa que não tenha carros nas estradas também não tem este tipo de informação. Não é apenas uma questão de dinheiro; trata-se também de ter uma frota em andamento que recolhe informação das estradas todos os dias.
Essa necessidade de dados atualizados não justificaria a instalação de uma nova infraestrutura junto das estradas, para facilitar a recolha de informação?
Klaus: Temos de nos diferenciar. Abrimos um novo centro de dados há pouco tempo na nossa sede. Temos as nossas competências, mas temos volumes de dados tão grandes… que o problema é levar essa informação do dia-a-dia do carro para o centro de dados. Tivemos de encontrar forma de transmitir esses dados a grande velocidade do carro para os centros de dados para serem trabalhados com os nossos métodos e cálculos.
Mas isso só é possível num cenário controlado, nas vossas instalações… será que já é possível fazer o mesmo em estradas do dia-a-dia?
Klaus: É necessário fazer a diferenciação. Desenvolvemos uma funcionalidade para os carros que nos permitem fazer atualizações de software quando os carros estão nas estradas.
Christoph: Os carros geram dados em bruto, mas também dados em bruto já classificados. Antes da inauguração do centro de dados a que damos o nome de High Performance D3 Platform, em Unterschleissheim, nos arredores de Munique, conseguimos recolher e processar 8 TB de dados por dia a partir de cada carro, Depois de lançarmos a D3 Platform, o que deverá acontecer muito em breve, vamos passar a ter capacidade para recolher e processar 8 TB por hora. O que significa que serão necessárias redes de quinta geração de telemóveis (5G), porque nos vão permitir latências baixas e disponibilidade de rede excelente.
A inteligência vai ficar no carro ou vai depender da rede?
Klaus: No princípio vai estar mais dentro do carro… mas quando tivermos muitos mais carros nas ruas, será bastante mais barato levar cada vez mais a inteligência para fora do carro. Mas para isso é necessário garantir alguns pressupostos como as redes 5G, com níveis de qualidade mínima garantidos. Hoje, as redes 4G há vários níveis de qualidade possíveis…
A 4G não garante a qualidade mínima necessária para a condução autónoma?
Christoph: Para algumas áreas pode ser suficiente… mas para as marcas de automóveis não é tanto a capacidade de pico das redes que conta. Para nós, é a qualidade do serviço que conta. E a qualidade do serviço é uma parte do standard da 5G. Introduzimos a voz há 15 anos nos carros… e desde então temos vindo a trabalhar na voz. Nos primeiros anos, a voz apenas era usada com os sistemas dos carros e não ia para o ambiente online. Hoje, temos um sistema híbrido que permite dizer coisas muito complexa. Podemos dizer que estamos com fome e o carro responde: «que comida quer comer?». Muita desta inteligência já vem de fora do carro, mas o carro pode não ter cobertura de rede que permite indicar os destinos, mas não pôr em causa o controlo da condução.
A rede usada na condução autónoma não tem requisitos técnicos mínimos?
Christoph: A condução autónoma tem de ser sempre segura independentemente dos requisitos técnicos da rede. Mesmo com cobertura nula, o carro tem de fazer sempre uma condução segura. É algo que temos de assumir, ou dito de outra forma: nunca tomamos por princípio que a rede é um componente de segurança crítico. Por outro lado, podemos encarar a 5G como um componente vital, porque vai ser necessário fazer o upload de dados e precisamos dessa capacidade para atualizar mapas, para garantir que autorização necessária para fazer uma condução autónoma; é um tipo de autorização que é feito pela rede. Cada carro tem de ter autorização para poder garantir uma condução autónoma.
Klaus: Como acontece no setor das tecnologias esta não é uma questão de isto ou aquilo. Vendemos carros em 120 ou 140 países. Dentro de 20 anos, haverá países que ainda têm redes 4G. Será que nessa altura poderemos dizer?: «não vendemos nenhum carro para esse país porque não tem 5G».
Christoph: Digo-lhe uma coisa: não queremos que os nossos clientes tenham acidentes. Os nossos carros vão gravando dados que podem indiciar risco de acidente. Os nossos carros vão enviando dados que podem estar relacionados com chuva forte, falta de visibilidade, ou estradas escorregadia. Sempre que alguém guia um carro da BMW de 2018, esses dados são enviados para a cloud e nos mapas é agregada em permanência informação relativa a locais perigosos. Pode ser uma estrada que está ao pé de um desfiladeiro e que devido às condições existentes sabe-se que é possível vir a ganhar gelo. Estamos a aprender… é uma mistura de aprendizagem com Inteligência Artificial (IA) e informação em tempo real. Tudo isto é possível devido ao facto de os carros estarem conectados à rede. Para muitas destas funcionalidades pode não ser necessário, mas para outras coisas, o 5G é bem melhor.
Mas se não houver rede, os carros autónomos terão de ter uma grande capacidade de computação! Esses computador não exigem uma transformação do design dos veículos?
Christoph: A arquitetura base é híbrida. Sempre que possível, tentamos usar a cloud, mas temos também que garantir que o carro é seguro quando não há cloud nem cobertura da rede. Se olharmos para a capacidade computacional, verificamos que os carros da BMW usam três grandes plataformas computacionais. Uma delas garante a assistência ao condutor, que tem uma grande capacidade computacional, que é refrigerada com água nas versões mais avançadas.
Klaus: Esta arquitetura será sempre flexível nos próximos cinco a 10 anos. O que significa que nos próximos anos teremos dar resposta à computação quântica e a computação localizada no carro. Agora não sabemos quando é que estas tecnologias surgirão e quando é que ficarão maduras. A arquitetura tem de ser estável nos próximos cinco a 10 anos, sem impedir que possamos acrescentar algumas destas tecnologias.
Os carros autónomos vão ser verdadeiras salas de estar ambulantes… com cinema e videojogos, os bancos para descansar!
Christoph: Essa é uma questão interessante, que temos tido dentro da BMW. A BMW é conhecida por ser a marca dos carros feitos para quem gosta de conduzir. Como é que essa mesma marca pode avançar para a condução autónoma? A realidade é que os nossos carros podem sempre ser usados com uma condução agradável se a pessoa quiser conduzir numa estrada dos Alpes, e esse mesmo carro também terá de garantir uma condução autónoma no caminho para casa numa estrada congestionada. Isto tem efeitos no interior dos carros. Se olhar para os carros iNext, por exemplo, vai verificar que se trata de uma arquitetura comum num espaço em que as pessoas gostam de estar, com vários recursos de entretenimento e produtividade que vão acabar por diversificar, com mais espaço no interior…
… E com mais gente a tentar vender-nos alguma coisa através da Internet enquanto viajamos!
Christoph: Os nossos clientes gostam de ter o poder de decisão – e é essa também a nossa filosofia. Nunca daremos acesso a outras empresas cuja publicidade seja indesejada pelos nossos clientes. O carro é o espaço do cliente…!
Klaus: …E é o cliente que decide quem pode entrar no carro.
Os carros são cada vez mais computadores com rodas, mas os códigos da estrada ainda são do tempo em que não havia computadores nos carros… Não precisamos de um novo código da estrada?
Klaus: Mesmo que consigamos resolver todos os desafios técnicos que venhamos a ter, não há no código da estrada a permissão para usar carros autónomos nas estradas. Outra das questões tem a ver com a regulação. A regulação tem de avançar no mesmo sentido das soluções técnicas que estão a ser desenvolvidas. É algo que também depende de cada país…
As regras como se produz software também terão de mudar?
Christoph: Já está a mudar. Se olharmos para os sistemas críticos, verificamos que os melhores exemplos se centram não só nos processos e não só no produto. Se olharmos para a segurança, por exemplo, verificamos que está relacionada com o que acontece dentro e fora de carro. É algo muito vital. E precisa de regras.
Quais as vossas expectativas para os centros da Critical Techworks de Lisboa e do Porto? Quais as metas para esta parceria entre a BMW e a Critical Software?
Klaus: E eu o Christoph começámos a trabalhar nesta ideia há cerca de 1,5 anos, ao percebermos que a engenharia de software vai tornar-se cada vez mais uma parte crucial na nossa empresa. E está a tornar-se cada vez mais um elemento estratégico. Tentámos perceber como é que poderíamos aumentar a nossa capacidade de produção de software, mas também como poderíamos ganhar outras competências. Há um ano assinámos um memorando com Gonçalo Quadros, da Critical Software. Queríamos um parceiro forte em Portugal, que tivesse competências nos modelos de produção de software Agile. Juntos, acreditamos que conseguimos captar os melhores talentos deste País. Atualmente devemos ter cerca de 320 profissionais. E no final do ano deveremos ter cerca de 600… em Lisboa e Porto. O objetivo é criar equipas que trabalham em conjunto aqui com equipas que podem estar em Munique, tendo em conta o modelo de negócio da BMW. O que pode produzir efeito na área de vendas, no desenvolvimento de produto, finanças ou contratação eletrónica. Mas há uma segunda parte que está mais orientada para os próprios carros.
Christoph: A Critical Techworks não trabalha com problemas fáceis ou aborrecidos. Trata dos problemas difíceis. Não é uma unidade de pré-desenvolvimento, nem uma unidade que desenvolve coisas bonitas que nunca serão usadas. Aqui são criados produtos, que vão ser usados no quotidiano. O nome é Critical e não é apenas coincidência. Quer seja dentro ou fora do carro o software é uma coisa crítica. Há mais um aspeto que gostaria de abordar: não se trata de ter apenas pessoas competentes, mas sim pessoas com a mentalidade adequada, que gostam de problemas difíceis, que gostam de os resolver para poderem criar superprodutos. Foi o que encontrámos aqui.
Não se trata de tirar partido dos salários baixos dos países do Sul da Europa?
Klaus: Queremos estar em consonância com os salários de Portugal, mas queremos que sejam salários justos, que consigam atrair os melhores profissionais… e por isso não podemos pagar salários baixos.
Christoph: Se falar com as pessoas verifica que estão mesmo contentes, por trabalharem em problemas complexos. E estão simultaneamente contentes e a trabalhar duramente.
Klaus: E se falar com os colegas de Munique vai ouvir o mesmo… pois o que nos dizem é que é fantástico trabalhar com as pessoas da Critical Techworks. Os dois lados estão contentes com esta parceria.
É uma parceria para durar?
Christoph: Na BMW apostamos sempre em estratégias de longo prazo.
Klaus: A única questão realmente decisiva surge quando as equipas mudam. Porque implica perder ou ganhar competências. E é por isso que queremos uma longa estada aqui, de forma sustentada. O que temos vindo a dizer é que a responsabilidade dos produtos criados aqui é da Critical Techworks e não em Munique. Isto é muito importante. Não se trata de estar hoje em Portugal e amanhã na Índia.
Christoph: Não queremos pessoas que apenas olham para os requisitos e desatam a programar. Queremos pessoas que estão identificadas com o produto e dos métodos de produção. Têm de compreender os desafios e os produtos da BMW.
NOTA: este artigo saiu originalmente na edição da Exame Informática Semanal, que foi publicada no dia 14 de março