É o sonho de qualquer cientista da área médica: viver o dia em que o resultado da sua investigação chega aos doentes. Bruno Silva-Santos, vice-diretor do Instituto de Medicina Molecular João Lobo Antunes (iMM) e professor na Faculdade de Medicina de Lisboa, passou por este dia com uma lágrima no olho. “É uma enorme emoção!”, conta à Exame Informática, a propósito do início da fase de ensaios clínicos do tratamento à base de células identificadas pela primeira vez por uma equipa de cientistas do iMM. Já lá vão dez anos desde que o conjunto ‘estranho’ e desconhecido de células do sistema imunitário foi detetado. O que numa primeira análise parecia um erro, uma impureza da amostra, revelou ser um tipo de células T, até ao momento desconhecido de todos. Depois de um trabalho de persistência e grande paciência, a equipa coordenada por Bruno Silva-Santos conseguiu isolar, multiplicar e tornar hiper-eficazes no ataque às células cancerígenas este tipo de linfócitos T, entretanto denominadas de Delta One T (ou DOT).
Para explorar todo o potencial desta nova forma de imunoterapia – linha terapêutica em que se recorre às capacidades do sistema imunitário, ou de defesa, para combater a doença – Bruno Silva-Santos e o seu principal parceiro na descoberta, o então estudante de doutoramento Daniel Correia, criaram, em 2013, a empresa Lymphact, spin-off do iMM, financiada por investimentos nacionais privados, da Portugal Ventures e dos Busy Angels. Terminados, com sucesso, os estudos pré-clínicos, em células e também em animais modelo, no tratamento da leucemia mieloide aguda – o cancro do sangue com pior prognóstico – a empresa portuguesa foi comprada pela biotecnologia britânica, GammaDelta Therapeutics (GDT).
Esta aquisição, por um grupo internacional de peso no setor, permitiu avançar para a primeira fase de ensaios clínicos, na qual será avaliada a segurança, tolerância e dose recomendável do medicamento, por ora designado GDX012. Aprovado em maio deste ano pela autoridade americana do medicamento, sendo-lhe ainda atribuída a classificação de medicamento órfão – uma forma de reconhecer a necessidade e unicidade do medicamento, o que permite simplificar o processo de autorização –, o ensaio teve início a 1 de setembro. “Até chorei quando soube que um doente já tinha recebido a injeção com as células DOT”, confessa o cientista.
Nos ensaios clínicos de fase I serão tratados 28 doentes, de quatro centros médicos americanos. É também na América que são isoladas, de um banco de sangue, ampliadas e fortificadas as células, para depois serem injetadas, em duas doses, aos pacientes com leucemia mieloide aguda selecionados para o ensaio. Desde que são isoladas do sangue de dador até estarem prontas a ser utilizadas no tratamento do cancro tardam duas semanas. De uma doação apenas é possível produzir material suficiente para mais de 20 pacientes. Sem que haja qualquer requisito de compatibilidade.
“Uma das razões para termos tanto interesse nesta leucemia é porque três em cada quatro pacientes chega a uma fase da doença em que não apresenta resposta à quimioterapia”, sublinha Bruno Silva-Santos. Isto leva a que cinco anos após o diagnóstico apenas 25% dos doentes ainda esteja vivo. Com a terapêutica baseada nas DOT, espera-se que seja possível atrasar as recidivas e assim prolongar a vida dos doentes.
Paolo Paoletti, CEO da GDT, avança em comunicado, libertado esta quarta-feira, que “as características biológicas das células DOT serão a base da nossa plataforma inovadora de imunoterapia celular do cancro, podendo constituir uma base para terapias alogénicas (a partir de células de dadores saudáveis) para tumores hematológicos e sólidos”. O fim desta fase de ensaios, com análise de resultados e avaliação da dose tolerada, está previsto para daqui a dois anos, altura em que se avançará, caso tudo corra como previsto, para a fase seguinte. Nos ensaios clínicos de fase II já se tem como objetivo avaliar a eficácia do medicamento, comparando-o com os tratamentos já aprovados.
Paralelamente, os investigadores do iMM, em parceria com a GDT, continuam a trabalhar na aplicação desta terapêutica a outros tipos de cancro, nomeadamente no cancro do cólon. Nas palavras de Bruno Silva-Santos: “o sonho continua.”