Depois de a Johnson & Johnson ter anunciado na semana passada que vai começar a testar uma vacina contra o Vírus da Imunodeficiência Humana (VIH) num grupo de 3800 homens no final deste ano, a Exame Informática esteve à conversa com o Kamal Mansinho, médico e especialista na área de estudo da transmissão do VIH/Sida. Atualmente, com 64 anos, Kamal Mansinho médico no Hospital Egas Moniz, de Lisboa e ex-diretor do Programa Nacional para a Infeção VIH/Sida, foi dos primeiros médicos em Portugal a trabalhar com grupos de doentes com VIH/Sida. Ao cabo de 25 anos a acompanhar a disseminação do vírus em Portugal, o professor no Instituto de Higiene e Medicina Tropical, dá a conhecer as expectativas geradas pelos primeiros testes com uma potencial vacina criada pela Janssen, do grupo Johnson & Johnson: «Se estivesse disponível amanhã, não dispensaria de ser integrada num pacote de medidas preventivas igualmente importantes».
Sente-se esperançado relativamente ao método que a Johnson & Johnson vai testar?
Sim, repare que houve vários ensaios ao longo dos últimos 25 anos e o conceito da vacina para o VIH têm evoluído muito. O conceito evoluiu e os ensaios clínicos contra o VIH permitiram na maior parte das circunstâncias acumular conhecimento sobre as reações do nosso organismo quando exposto ao vírus. Os resultados nunca foram eficazes quer na perspetiva preventiva, quer curativa. Pela capacidade do vírus em sofrer mutações para escapar às intervenções de controlo, por um lado, mas também pela falta de tecnologia para conceber a sequência de proteínas que vai constituir a vacina com a cura. A resposta do nosso organismo resulta de uma combinação de fatores, é desenvolvida uma memória perante uma resposta e daí quando a pessoa é exposta novamente ao vírus o organismo combate procurando inativá-lo. Esta vacina e todas as outras que foram criadas para o VIH são apenas uma componente no combate contra o vírus. Não deve ser vista como a única ferramenta ao nosso dispor no combate do VIH. Se estivesse disponível amanhã, não dispensaria de ser integrada num pacote de medidas preventivas igualmente importantes. Tem um conceito inovador que se encontra agora na fase (de testes em humanos) 2B. O que traz de novo é que os ensaios iniciais foram feitos em humanos e em algumas espécies de macacos. Em paralelo, procuramos encontrar quais as substâncias em comum produzidas pelo organismo humano e pelo organismo dos macacos, nos indivíduos em que foram administradas vacinas, para as identificar como marcadores. No caso dos macacos, expostos por via retal a uma combinação de vírus da imunodeficiência dos símios e da imunodeficiência humana, eram avaliados os efeitos da vacina passados seis meses da administração das doses. Durante o estudo foi administrado o vírus a duas populações de macacos: um que foi exposto ao tratamento e outro que não foi, que funcionou como “braço de controlo”. Constatou-se que uma parte dos macacos vacinados, penso que 60%, não se infetaram e aqueles que não tinham sido vacinados infetaram-se. Estes marcadores encontrados na experiência podem ser alguns dos elementos relevantes para um organismo vivo mais próximo da espécie humana combater o vírus do VIH.
Por que razão a vacina da Johnson & Johnson vai inicialmente administrada apenas em homens que mantiveram relações sexuais com outros homens?
Porque estamos numa fase em que temos de construir o conhecimento por etapas. Isto é, não podemos extrapolar o conhecimento adquirimos a partir dos macacos que foram expostos ao VIH e se os marcadores que encontrámos terão a mesma eficácia na espécie humana. Como de um ponto de vista ético não é possível fazer em ambiente controlado uma exposição experimental ao vírus, tenta-se identificar uma população que tem um grande risco de se expor ao vírus, através de critérios muito bem definidos e validados. Depois, é necessário verificar se os marcadores que foram identificados nos macacos coincidem com os marcadores que presentes na subpopulação a quem se administrou a vacina. Em relação à espécie humana, na fase preclínica conseguiu-se ir tão longe quanto se pode. Já os macacos foram infetados propositadamente. As populações de alto risco acabarão por se expor ao vírus e teremos informação se o organismo humano ao produzir essas mesmas substâncias consegue, ou não, combater a infeção.
A iniciativa Imbokodo vai levar a alguns países africanos uma vacina que será aplicada apenas em mulheres. Por que continua a ser feita esta diferenciação?
Os testes destas vacinas não são exclusivos de países ou continentes. Nos ensaios iniciais, ainda antes da fase 2B, aquilo que se procurou foi encontrar populações de vários continentes, porque a eficácia da vacina não depende exclusivamente do vírus, mas também do contexto genético. No caso concreto da África do Sul, o “tipo de vírus” que circula de forma dominante é diferente daquele que circula nos Estados Unidos e na Europa. Portanto, a tecnologia permitiu a construção de uma vacina desenvolvida através do mosaico de fragmentos do vírus previamente estudados em diferentes continentes costurados num transportador (que também é um vírus modificado), para depois chegar às células responsáveis pelas nossas defesas. Alguns países foram escolhidos devido à elevada incidência da infeção. Depois porque, contrariamente ao mundo ocidental, a infeção na África ou na Ásia atinge em grande escala a população de mulheres em idade fértil, havendo simultaneamente o risco de transmissão do vírus a recém-nascidos. Em terceiro lugar, nem todos esses países têm capacidade de tratar doentes de VIH com os medicamentos que dispomos na Europa, porque existem medicamentos de primeira linha e podem não existir medicamentos de segunda e terceira linha quando os primeiros falharem. Também existem problemas a nível de abastecimento logístico. A escolha dos países também passa pelas autoridades locais e pelos núcleos de investigadores, pois a aplicação de uma vacina desta natureza tem de cumprir determinados requisitos éticos para ser administrada, nomeadamente, os direitos das pessoas e dos doentes de forma a acautelar os princípios da declaração de Helsínquia que serve de enquadramento para as regras que todos nós estamos obrigados a cumprir quando se faz investigação clínica.
Considera que poderá existir uma vacina universal em breve?
Quando elegemos uma população específica para ser estudada, estamos a tentar fazer o percurso para que seja alargado a outros grupos da comunidade. Onde estamos agora é apenas um momento do percurso que ainda tem de ser feito para chegarmos à formulação de uma vacina que seja para aplicação universal. Aliás, foi já feita uma grande aprendizagem ao longo dos últimos dez anos, pois foram feitos ensaios em populações muito específicas sobre a profilaxia pré-exposição, outra ferramenta extremamente importante para a prevenção. Começamos por estudar casais que sejam do mesmo sexo ou de sexos diferentes, em que um dos membros estava infetado para saber qual era o risco que a pessoa desse agregado tinha de se infetar ao ter relações sexuais desprotegidas. Depois se tivessem relações sexuais quando eram submetidos a determinado tipo de procedimentos de prevenção. Por fim, usando o tratamento em ambos. Fomos em pequenos passos procurando encontrar e consolidar o conhecimento e hoje é possível dizer com segurança que estamos em condições de administrar dois medicamentos, por vezes num comprimido único, a uma pessoa não infetada que antecipe que vá ter uma exposição de risco, de forma a diminuir a probabilidade de infeção. Seja um homem que tenha sexo com outro homem, seja um homem que tenha sexo com uma mulher. Para chegarmos a esta formulação tivemos de começar com populações muito bem definidas e específicas porque o facto de dizer que a vacina é eficaz não significa do ponto de vista científico que podemos administrá-la uniformemente a qualquer pessoa da comunidade. Inicialmente terão de haver critérios muito apertados e depois teremos de começar por algum sítio, dependendo das populações em que a doença tem maior expressão. Por exemplo, nos Estados Unidos, Europa e alguns países da América do Sul a infeção afeta maioritariamente homens que praticam sexo com outros homens, enquanto na Ásia e na África a doença tem uma expressão maior em mulheres do que em homens. Então se temos de começar a ensaiar medidas de proteção, é melhor começar pelos grupos onde há maior incidência de casos. Há também os casos de homens e mulheres que praticam sexo remunerado, em que não têm oportunidade de negociar a utilização de preservativo com o cliente, ou que o cliente paga mais para ter relações sexuais sem preservativo. Há condicionalismos bem conhecidos sobre o que se passa na comunidade que levam a que os investigadores selecionem estes critérios para começar os testes com as populações que estejam em maior risco. É necessário aliar o conhecimento que se obteve em laboratório, com o conhecimento adquirido no insucesso dos ensaios de vacinas no passado, com os fatores que põem a população ou subpopulação em maior risco, para determinar quem estará na linha da frente destes tratamentos.
Podemos esperar novas vacinas contra a Sida no futuro?
Sim, este é apenas um percurso para continuar a marcha sobre as investigações para a obtenção de uma vacina eficaz para a comunidade em geral, independentemente das suas orientações terapêuticas e dos comportamentos de risco que tenham. O futuro reserva-nos isso. A investigação encaminha-se nessa direção. Até lá é ainda preciso ser feito um caminho muito cuidado para que os resultados que se obtenham sejam robustos e sobretudo que seja trabalhado em simultâneo, de um ponto de vista preventivo, em combinação com todas as outras medidas de prevenção. É importante reduzir o risco de exposição o máximo possível tendo em conta as especificidades das populações que forem estudadas. É importante nunca perder de vista que mesmo que venhamos a ter uma vacina 100% eficaz ela deverá ser acompanhada de um conjunto de outras medidas das quais já dispomos neste momento, para impedir que o vírus entre em contacto com o organismo humano.