Entre o Sol e o famoso Monte da Virgem de Gaia não deverão ir mais de 152 milhões de quilómetros de distância, no máximo. Dalmiro Maia conhece a distância como poucos: durante 10 anos, o investigador do Observatório Astronómico Professor Manuel de Barros, que pertence à Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, estudou o Astro-Rei com os dados recolhidos pelo único rádioespectógrafo do País – que era, com elevado grau de probabilidade, o mais rápido da Europa nos anos 2000. O mesmo Radioespectógrafo Solar Microcomputarizado, ou Radioespectógrafo do Porto para os mais chegados, também implicou o conhecimento detalhado dos 60 quilómetros da antiga estrada que ligava Gaia e Serabigões, a pequena aldeia do concelho de Arouca, que foi escolhida para albergar as antenas e os sistemas de processamento de dados, devido ao isolamento que permitia recolher informação dos diferentes corpos celestes entre os 150 e os 650 MHz com reduzidas interferências.
Com a entrada do novo milénio, o progresso trocou as voltas aos investigadores da Universidade do Porto. Serabigões passou a estar servida por uma estrada nova. E as visitas não se fizeram esperar: «As pessoas iam para lá pendurar-se na antena; roubaram fios de cobre, partiram o sistema de controlo, e chegaram a tentar a arrombar o contentor onde se encontravam os sistemas de aquisição de dados. Por mais de uma vez, os nossos engenheiros tiveram de sair daqui de Gaia para ir buscar os equipamentos mais caros que estavam em Serabigões, devido aos alertas de incêndio», explica o físico solar, que integra o Departamento de Geociências, Ambiente e Ordenamento do Território da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto.
A estrada acelerou o tráfego automóvel e também o fim de Serabigões como local de condições quase idílicas para qualquer astrónomo que estuda o Sol. E é esse o novo elemento que precipita o epílogo de uma história que começou a ser escrita mais de 20 anos antes – e com sotaque francês à mistura. Dalmiro Maia situa um primeiro contacto entre o Observatório Astronómico de Paris e o engenheiro António Magalhães, do Observatório Astronómico portuense, em 1979. Foi nessa altura que os investigadores franceses terão lançado o repto para a instalação de um radioespectrógrafo em Portugal, que pudesse beneficiar dos reduzidos índices de poluição radioelétrica para fornecer dados complementares àqueles que eram captados pelos equipamentos de outros países.
Apesar de bem-intencionado, o processo acabou por ter uma morosidade comparável à construção de uma nova estrada para Serabigões: depois de testes com alguns protótipos com antenas de cinco metros, concluiu-se que faria sentido construir um dispositivo mais moderno.
O projeto avançou, mas só nos anos de 1990 foram supridas duas lacunas cruciais para tornar a observação do sol e todos os efeitos que produz na Terra numa atividade regular e consistente: 1) no mercado já era possível comprar suportes eletrónicos que rapidamente substituíram as resmas de papel necessárias para o registo da imensidão de dados captados pelo radioespectógrafo; e 2) em 1995, a entidade que antecedeu a Fundação para a Ciência e Tecnologia desbloqueou as verbas necessárias, depois de os Observatórios Astronómicos de Lisboa e do Porto apresentarem um projeto conjunto para a observação do Sol, que não só contava com o apoio de investigadores franceses, como ainda dava resposta ao requisito essencial de formar um físico solar português.
E é nesse momento que entra em cena Dalmiro Maia. O radioespectógrafo já funcionava em Serabigões, ainda sem estrada nova, desde o início dos anos 1990. O uso era esporádico e só acelerou depois de 1993, com a publicação do primeiro artigo científico com dados recolhidos pelo equipamento construído pelas oficinas do Observatório Astronómico Professor Manuel de Barros. Em 1996, Dalmiro Maia ganha a bolsa para fazer o doutoramento – e ganha também o salvo-conduto académico para a Universidade de Lisboa e para o Observatório Astronómico de Paris que haveria de o tornar aquilo que é hoje: um dos mais experientes especialistas europeus na observação do Sol.
Apesar de variar consoante a translação da Terra, o caminho para o Sol não tem as mesmas sinuosidades da nova estrada para Serabigões, que haveria de estrear pouco depois de se iniciar o novo milénio. E o capítulo final do radioespectógrafo começa a ser escrito em 2004, com a mesma cadência das visitas indesejadas que percorriam o asfalto para chegarem àquele local isolado, onde podiam fazer o que quisessem apenas com as estrelas por testemunhas. «Ainda houve vários danos que conseguimos reparar. Mas chegou uma altura em que nos demos por vencidos», explica Dalmiro Maia.
Depois de uma última tentativa, o radioespectógrafo foi desativado no final de 2004. O desmantelamento e o transporte haveriam de ter lugar três anos depois.
A ciência não chega para explicar o que se seguiu a essa decisão. No verão de 2007, investigadores e engenheiros do Observatório Astronómico do Porto acabaram por abandonar o local que lhes desvelou «um dos espetros mais limpos do Sol». Na bagagem, levavam antenas, motores e sistemas de aquisição de dados.
Chegam ao Monte da Virgem à hora de almoço. Descarregam o equipamento com o à vontade de quem frequenta o local diariamente. Aparentemente, nada há a perder. O radioespectógrafo estava desmantelado. Seria inútil para qualquer cientista – e também para a esmagadora maioria das pessoas que não sabe o que é um radioespectógrafo. E o almoço estava ali ao virar da esquina. O repasto não demorou muito mais de meia hora. Com o desmantelamento ainda fresco na memória, não será difícil imaginar o ânimo em que decorreu a refeição… mas o regresso ao Observatório Astronómico situado no Monte da Virgem haveria de ter contornos de tragédia: «Roubaram-nos o prato da antena porque era de alumínio, e os motores (de controlo da antena) porque tinham cobre. Não levaram a base de metal porque era muito pesada», recorda Dalmiro Maia. O desfecho não esconde uma triste ironia: semanas depois do roubo, os investigadores recebem a notícia de quem um incêndio destrói os equipamentos de menos valor que tinham ficado em Serabigões. O que leva a acreditar que, mesmo que não houvesse o desmantelamento e o transporte, o equipamento estaria condenado a desaparecer.
Com o radioespectógrafo provavelmente remetido para uma qualquer sucata ou garagem de recetador de equipamentos roubados, acabou-se a contribuição de Portugal enquanto país que conseguia providenciar dados com uma qualidade que outros não podiam disponibilizar. «Nós conseguíamos fazer varrimentos em 47 milissegundos; os outros radioespectógrafos só conseguiam varrimentos a meio segundo ou um segundo», refere Dalmiro Maia.
Às características técnicas, juntavam-se dois fatores diferenciadores: o radioespectógrafo captava as ondas de rádio provenientes dos fenómenos registados no Sol com reduzidas interferências de transmissões que usam bandas UHF (TV e mais recentemente os telemóveis), e operava num local e num fuso horário que poderiam ser úteis para completar a monitorização levada a cabo por dispositivos de observação do sol dispersos pela Europa.
A invasão eletrónica das duas últimas décadas, o uso intensivo de sistemas de localização por satélite (como o GPS) e a proliferação de missões espaciais tornaram a observação do Sol uma área de estudo de importância estratégica. Uma tempestade solar pode ser suficiente para deixar a vida na Terra à beira do caos, caso consiga interferir no funcionamento dos múltiplos sistemas que dependem das coordenadas GPS, ou nos servidores que suportam a Internet ou nas máquinas que mantêm barragens, centrais elétricas ou fábricas em funcionamento. «Aquele radioespectógrafo era importante, porque não havia muitos equipamentos de meteorologia espacial com aquelas características na Europa. O próprio programa de investimentos em ciência Horizonte 2020 tem uma área dedicada em exclusivo à meteorologia espacial e à observação do Sol», sublinha Dalmiro Maia.
Durante 10 anos, vários pedidos de financiamento seguiram para a Fundação para a Ciência e Tecnologia, mas a resposta foi sempre negativa. «A física solar usa vários tipos de equipamentos. Teria sido melhor ter tido os nossos próprios dados e não depender dos dados que nos são disponibilizados por instituições estrangeiras… é que essas instituições publicam logo artigos científicos, se descobrirem alguma coisa importante», refere Dalmiro Maia, sem desperdiçar a oportunidade de enaltecer as qualidades do saudoso radioespectógrafo do Porto: «os dados dos equipamentos de outros países não eram tão bons quantos os nossos devido à poluição de rádio. No varrimento às 500 frequências do nosso radioespectógrafo aproveitava-se quase tudo».
O professor da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto admite, porém, que oo tetos orçamentais obrigaram a limitar as escolhas da FCT ao longo dos últimos 12 anos. «Pessoalmente posso achar que o dinheiro foi mal aplicado por não ter sido usado na construção de um radioespectógrafo, mas é natural que um outro cientista que tenha beneficiado desse investimento considere que foi uma aposta correta», acrescenta com fairplay.
Em 2014, a história voltou a mudar o suficiente para merecer ser contada. A construção de um radioespectógrafo passou a constar no Roteiro das Infraestruturas de Investigação da FCT. O Observatório Astronómico do Porto não desperdiçou a oportunidade e submeteu um orçamento para a construção do equipamento de observação solar. O custo deverá ser inferior aos 100 mil euros. O desenho e a configuração do equipamento ficaram a cargo dos engenheiros e cientistas do Observatório portuense, mas o fabrico dos diferentes módulos deverá ser encaminhado para empresas do norte do País. Os investigadores da Universidade do Porto acreditam que poderão fazer a estreia em 2017.
Tirando o prato usado pela antena, que deverá ser idêntico, não deverá haver muitas mais similaridades com o radioespectógrafo dos anos 1990. Na primeira “versão”, os cientistas tinham de repartir os 47 milissegundos de captação de ondas rádio por 500 frequências; o novo radioespectógrafo vai permitir usar a fração de 47 milissegundos em simultâneo em todas as 500 frequências, aumentando o detalhe da informação recolhida em cada frequência.
Além disso, há a registar as evoluções que surgiram recentemente nas tecnologias da informação: em vez das cassetes DAT, que exigiam que deslocações regulares para substituir os suportes de armazenamento, o sistema vai passar a enviar os dados em tempo real pela Internet. «Se houver um choque na coroa solar, podemos ter acesso a esses dados no momento. E torna-se possível receber em parte do mundo alertas relacionados com os vários tipos de eventos que forem registados no Sol», refere Dalmiro Maia.
A localização do futuro equipamento também já está definida: Pampilhosa da Serra, nas imediações do único radiotelescópio do País, que hoje é usado para recolher dados relativos à Galáxia Via Láctea (enquanto o futuro radioespectógrafo apenas vai estudar o sol). Desta vez, Dalmiro Maia não vai ficar à espera da construção de uma nova estrada: «O equipamento vai ficar vedado e deverá ter um sistema de segurança adequado».