Há pessoas que estão predestinadas a deixar a sua marca na história, seja qual for o caminho escolhido. John O’Keefe é uma destas pessoas. Filho de emigrantes irlandeses, que aterraram em Nova Iorque nas vésperas da Grande Depressão, cresceu no Harlem, a ver os pais a trabalhar de manhã à noite. Teve um percurso académico muito errante, interessando-se por filosofia, cinema, literatura, psicologia e biologia. Chegou a ser convidado a trabalhar na missão Apollo, que haveria de levar o homem à Lua, mas optou por deixar a aeronáutica para voltar a estudar. Ainda indeciso quanto ao rumo a seguir, percebeu que queria dedicar o resto da vida a estudar o cérebro – uma forma de esclarecer alguns dos dilemas abordados na filosofia – quando participou na primeira experiência desta natureza. Logo no início da carreira, em 1971, fez a descoberta que viria a valer-lhe o Prémio Nobel da Medicina, em 2014, que partilhou com o casal norueguês Moser. Identificou no cérebro o sistema de posicionamento. Dito de uma forma simples, o GPS cerebral, um sistema de ativação de neurónios que nos permite orientar no espaço e escolher o caminho a percorrer entre dois pontos. “Para compreender a capacidade de nos orientarmos no espaço, John O’Keefe estudou os movimentos de ratos e os sinais das células nervosas do hipocampo, uma área localizada no centro do cérebro. Descobriu que quando um rato estava num determinado local de uma sala, certas células eram ativadas e que quando o rato se deslocava para outro local, outras células eram ativadas. Ou seja, as células formam uma espécie de mapa interno da sala”, descreve-se na página da organização Nobel. Aos 82 anos, mantém a vivacidade e a vontade de descobrir os mistérios do cérebro, orientando uma equipa no University College, em Londres, bem como o interesse em motivar gerações de novos cientistas. Foi isso que o trouxe na semana passada a Lisboa, para participar no AIMS Meeting – o evento científico anual inteiramente organizado pelos alunos da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, que decorreu na semana passada na Reitoria da Universidade de Lisboa. Fez questão de participar e também de assumir todos os custos associados à viagem e estadia.
Há sempre muita conversa em termos de diferença de género no que toca a orientação. Afinal, em que é que ficamos? Os homens são mesmo mais orientados do que as mulheres?
As melhores experiências que conheço são as que foram feitas em sistemas de realidade virtual, em que homens e mulheres têm de navegar por uma simulação virtual do labirinto de água. Nas simulações existiam dois cenários diferentes: um em que o espaço era triangular e isto podia ser usado como referência para ir de um ponto para o outro, no outro cenário havia objetos espalhados pelo espaço que permitiam construir um mapa cognitivo. Em geral as mulheres tinham um mau desempenho quando tinham de usar a forma do ambiente, mas um desempenho muito bom quando havia objetos. O que indicia formas diferentes de resolver tarefas espaciais.
Até há pouco tempo havia pouca representatividade do género feminino, sobretudo nos estudos em animais.
A maior parte dos estudos eram feitos em machos, o que criava um viés. Então nos últimos dez anos as agências financiadoras, americanas e britânicas, reconheceram este viés e hoje não podemos candidatar-nos a financiamento sem incluir investigação em machos e em fêmeas. Portanto, estamos a caminhar no sentido de conseguir um maior equilíbrio de género. Voltando à questão da orientação, há alguns estudos que apontam para uma ligeira diferença a favor dos machos. Mas não conheço nenhum estudo que aponte para uma expressiva diferença, em termos gerais, de machos relativamente às fêmeas no que toca à orientação.
Está empenhado na utilização de realidade virtual para detetar sinais iniciais de Alzheimer. De que se trata?
Queremos desenvolver um teste muito, muito sensível para encontrar pessoas com sinais iniciais de demência, que ocorrem quando a própria pessoa ainda nem se deu conta. Com esta deteção precoce talvez pudéssemos travar a evolução da doença. Um dos grandes problemas das demências, em particular do Alzheimer, é que tem um início muito anterior ao aparecimento dos primeiros sinais clínicos. Portanto, temos mesmo de identificar as pessoas que estão em risco, para as poder tratar.
Mas para já não há grande terapia a oferecer.
É verdade. Estamos à procura. Um dos objetivos atualmente é identificar de que forma é que a doença se espalha. Sabemos que começa no córtex entorrinal, onde estão também as células grid [descobertas pelo casal Moser], e depois espalha-se a partir desta região – semelhante ao cancro em muitos aspetos. Espalha-se para o hipocampo e para o neocórtex e neste processo vai provocando os danos e déficits que conhecemos. Na memória, orientação, e depois para outras áreas do cérebro causando problemas de linguagem e dispraxia [descoordenação motora]. Podemos imaginar que, tal como no cancro, se conseguíssemos parar a propagação da doença, ou a formação de metástases, não curaríamos a doença, mas estancávamos os danos. Este é o nosso principal objetivo: entender de que forma podemos impedir que estas moléculas se espalhem.
O que já se sabe?
Começamos a perceber, e há evidência neste sentido, de que se espalham através dos axónios. Um dos meus colegas está a usar um microscópio para ver de que forma a proteína tóxica tau progride e se espalha. Precisamos de compreender melhor o mecanismo envolvido para depois então avançar para terapias. Estamos numa era em que o desenvolvimento de medicamentos é baseado na evidência. Ou seja, temos de perceber como acontece o dano, como se espalha e só então estaremos numa posição de desenhar uma intervenção.
Que impacto está a ter o Brexit na Ciência britânica?
A maior parte das pessoas concorda que o Brexit terá um impacto negativo na ciência britânica. A Ciência é uma aventura coletiva e sendo parte da União Europeia tínhamos acesso a fundos muito importantes a que agora já não temos. Também se perderam potenciais colaborações com institutos de investigação europeus. Mas os britânicos são muito empreendedores e encontrarão forma de enfrentar e superar este problema.