A crise provocada pela pandemia atingiu o mundo de uma ponta à outra e não poupou quase nenhuma empresa. Perante tamanha onda de destruição e de incerteza, gerir com a missão de assegurar a sobrevivência do negócio de forma a transitá-lo para as gerações vindouras, em vez de se sucumbir à pressão das expectativas dos investidores para os próximos trimestres, pode ser a melhor bússola para se encontrar saída da crise. Essa talvez seja uma das grandes vantagens da maior parte das empresas familiares. Quando confrontadas com uma ameaça existencial sobre o seu próprio negócio, a probabilidade de união e de vontade de superar os obstáculos por parte de acionistas da mesma família pode ser maior. Pelo menos em teoria e se não houver uma relação disfuncional que comprometa os processos de decisão.
Num primeiro balanço, as empresas familiares aparentam ter mostrado mais resistência ao impacto do choque pandémico do que as suas pares dos mesmos setores. Para os analistas do Credit Suisse Research Institute, esta é mais uma prova de que companhias deste tipo são mais resilientes em tempos de crise. “A pandemia da Covid teve um impacto significativo nos retornos das bolsas e na volatilidade, este ano. Em trabalhos anteriores, sublinhámos que as empresas detidas por famílias tendiam a ter características defensivas acima da média que lhes permitiam ter bom desempenho, particularmente em períodos de stress nos mercados”, indicam os analistas do banco suíço num estudo divulgado recentemente.
No relatório, a que a EXAME teve acesso, detalham que “os retornos dos primeiros seis meses deste ano apoiam aquela perspetiva, já que em geral tiveram uma performance cerca de 300 pontos-base acima das outras empresas”. Essa diferença é mais notória no Japão, onde as cotadas controladas por famílias tiveram retornos 30 pontos percentuais acima do mercado. Na Europa, a vantagem foi de 6,2 pontos. A América Latina foi a única região em que ficaram abaixo das pares.
A análise englobou as maiores mil empresas controladas por famílias ou pelos fundadores, mesmo que jovens, que vão desde cotadas centenárias como a LVMH e a Jerónimo Martins, a tecnológicas como a Alphabet (dona da Google) e o Facebook. Incluir empresas tão recentes no lote de familiares não é consensual. Mas os especialistas do Credit Suisse argumentam, no entanto, que tal como empresas controladas por famílias há várias gerações, os fundadores destas empresas mais recentes têm posições acionistas significativas e sem tenções de serem liquidadas. “Em ambos os casos há um maior compromisso com a criação de valor de longo prazo”, defendem.
Como as empresas reagiram à pandemia
O Credit Suisse inquiriu várias cotadas mundiais, para perceber como responderam à crise.
> Preocupação com a crise
Cerca de 80% das empresas familiares revelaram que o seu negócio foi severamente afetado pela pandemia. Mas a crise da Covid-19 é apenas o segundo maior desafio que este tipo de cotadas considera ter de enfrentar nos próximos cinco anos, atrás da inovação e retenção de talento. No entanto, nas outras empresas, os efeitos da pandemia são a maior preocupação para os próximos anos, segundo o inquérito do Credit Suisse, que abrangeu 145 empresas familiares e 124 não familiares.
> Menor recurso ao layoff
A proporção de empresas familiares e não familiares a colocar em curso medidas de apoio aos seus funcionários foi semelhante, na ordem dos 80 por cento. Mas as cotadas controladas por famílias recorreram menos aos mecanismos de layoff temporário: 46% contra 55% das outras empresas. Para o futuro, estas também preveem um maior recurso a forças de trabalho flexíveis do que as familiares, 60% e 48%, respetivamente.
> Restruturar em vez de diversificar
O Credit Suisse conclui, com base no inquérito, que as empresas familiares admitem mais restruturar negócios existentes, enquanto as não familiares diversificariam mais facilmente para novos produtos e serviços. “Parece que as empresas familiares tendem a ficar-se pelo que sabem”, conclui o banco suíço.
A família faz a força…
As conclusões dos dados recolhidos pelo Credit Suisse confirmam os de outros estudos que foram feitos. E são indícios fortes de que as empresas familiares podem ter características que as ajudam, genericamente, a bater as suas pares. Mas, afinal, quais os pontos fortes de se ter um bloco familiar a decidir sobre o futuro da empresa? “Há a salientar uma vantagem importantíssima para enfrentar momentos de crise: a existência do chamado ‘capital paciente’, como alguns autores o apelidam”, destaca Fátima Carioca à EXAME. A dean da AESE Business School sublinha que “os acionistas, por serem membros da mesma família, suportam melhor os tempos de crise e a menor distribuição de dividendos porque olham para os resultados da empresa a longo prazo. A medida são gerações, e não apenas anos fiscais”.
Essa maior propensão para pensar em gerações em vez de exercícios trimestrais até pode tirar alguma vantagem às empresas familiares em ciclos de expansão. Mas dá mais solidez aos negócios em dias de tempestade. Alexandre Dias da Cunha, professor auxiliar convidado da Nova SBE, refere à EXAME que “os estudos mostram que uma das características verificadas nas empresas familiares é a sua maior resiliência”. O docente, que é também senior advisor e associate partner da Cambridge Advisors to Family Enterprise, afirma que as empresas familiares “não serão tão fortes no aproveitamento dos ciclos expansivos, mas resistem muito melhor às crises quando comparadas com aquelas que, sendo semelhantes no resto, não são de cariz familiar”. A maior solidez em tempos turbulentos advém de características que geralmente as empresas familiares têm, como uma maior frugalidade e menor alavancagem, considera Alexandre Dias da Cunha.
O foco no longo prazo é um dos pontos fortes que ajudam as empresas familiares a navegarem as crises. Mas, geralmente, estas têm outras vantagens para superar tempos conturbados como os que atravessamos. “Estabelecem canais de comunicação frequentes e informais, o que lhes permite lidar melhor com as crises”, sublinha Bo Ji. O assistant dean e representante para a Europa de uma das maiores escolas de negócios chinesa, a Cheung Kong Graduate School of Business, destaca ainda que “as empresas familiares têm maior propensão a uma ‘complementaridade comercial’, construindo boas relações com stakeholders, como os funcionários, clientes, fornecedores e distribuidores, o que reduz de forma significativa os custos de transação”.
A combinação entre família e negócios pode ter ainda outras vantagens que se revelam essenciais em tempos de crise. Fátima Carioca destaca algumas: “Maior motivação pessoal, a missão da empresa estar impregnada de valores sólidos e familiares e a empresa gozar, no mercado, de um extra de confiança.” E conclui: “São trunfos extraordinários para enfrentar e ultrapassar a crise.” A juntar a isso, refere Alexandre Dias da Cunha, as empresas familiares tendem a ter “maior agilidade nos processos de decisão”.
O relatório do Credit Suisse aparenta confirmar essa qualidade. Apesar de nesta crise os cortes de dividendos terem sido generalizados, e de até se terem verificado em menor proporção nas empresas familiares, estas mostram uma maior flexibilidade para se disponibilizarem a cortar na remuneração aos acionistas para responderem aos impactos de recessões, segundo um inquérito feito pelo banco suíço. Peter Villax, presidente da Associação de Empresas Familiares, exemplifica: “Uma conversa num conselho de família sobre redução de dividendos não demora mais de dez minutos, e não há discussão.”
… mas também a fraqueza
Pode parecer contraditório, mas algumas das características que constituem a força das empresas familiares podem, em certos contextos, jogar contra elas. É certo que a familiaridade entre os acionistas possibilita um processo de decisão mais rápido e decidido. Mas em casos de relações disfuncionais e em que as águas entre o que é a família e o negócio não estão bem separadas, há maior risco de existirem desentendimentos que coloquem obstáculos à resolução de problemas, especialmente em tempos de maior pressão.
“Paradoxalmente, a relação entre a empresa familiar e a família empresária pode também revelar-se uma desvantagem. Em concreto, quando não existe unidade no seio da família proprietária, o futuro da empresa estará sempre em jogo. Ora, tempos de crise são propensos a desentendimentos e mesmo a conflitos sobre a estratégia para a empresa e de distribuição de dividendos, por exemplo”, refere Fátima Carioca. Outra das grandes forças deste tipo de empresas é o orgulho que dá uma motivação extra para defender o nome e o legado da família. Alexandre Dias da Cunha considera que existe um “enfoque na qualidade mais consistente e eficaz, porque está ancorado num forte anseio de proteger o nome da família, que muitas vezes coincide com o nome da marca”.
A vontade de salvaguardar a marca da família na economia e na sociedade é muitas vezes uma vantagem competitiva. Mas pode também levar estas empresas a terem dificuldade em fazer mudanças quando o aconselhável é agir de forma rápida. “A fraqueza que mais me preocupa nesta crise é a sua hesitação em fazerem grandes mudanças em tempos difíceis”, revela John A. Davis, diretor de programas de empresas familiares da MIT Sloan School of Management. O consultor, que fundou e preside à Cambridge Family Enterprise Group, realça que “quando a situação o exige, alguns produtos precisam de ser descontinuados, alguns gestores precisam de sair e algumas unidades de negócio precisam de ser encerradas”. Mas constata que, muitas vezes, as famílias mostram relutância em tomar estas medidas difíceis.
Outra das fraquezas que podem ocorrer pela obsessão em defender o nome e manter o negócio na família é a resistência em entrar em operações de consolidação, algo que pode ser essencial para a sobrevivência em tempos de crise. A dean da AESE reconhece que “apegar-se ao próprio negócio porque é o seu trabalho ou o legado da família é um instinto compreensível” e sublinha que, “por vezes, os processos de cedência da propriedade e governo são emocionalmente dolorosos”. Mas realça que “a regra de ouro é sempre ‘gerir a empresa como empresa e tratar a família como família’, daí que, seja para bem do negócio e da empresa, seja para salvar o património familiar, podem existir razões que levem a movimentos positivos de consolidação”.
No entanto, o comum é haver resistência a esse tipo de mudanças, que podem fazer a diferença entre o crescimento ou o insucesso. John A. Davis realça que “as empresas familiares resistem frequentemente a fusões ou aquisições porque, na maior parte das vezes, qualquer destas opções irá diluir o seu controlo na companhia” e alerta que “a obsessão pelo controlo total da empresa é um obstáculo ao crescimento e, por vezes, à própria sobrevivência”.
A solução passa por olhar para todas as opções disponíveis. Até porque, sublinha John A. Davis, “há formas de ter um adequado nível de controlo do capital e atingir o crescimento desejado”. Existem várias abordagens possíveis para se conseguir essa espécie de melhor dos dois mundos. Alexandre Dias da Cunha destaca quatro: “parceria com uma empresa de capital de risco, já que existem algumas que se vocacionam para trabalhar com famílias empresárias; parcerias entre famílias empresárias; emissão de dívida, nomeadamente através do programa Family Share da Euronext; e emissão de ações preferenciais sem direitos de voto”. Estratégias que podem ajudar a manter o negócio entre família sem comprometer o futuro da empresa, especialmente em tempos de crises como os que vivemos em que a tradicional resistência das empresas familiares tem sido posta à prova.
Peter Villax: “A continuidade e a solidez são mais importantes do que sucessos com fogo de artifício”
Peter Villax é chairman da Hovione Capital e lidera a associação que representa as empresas familiares portuguesas. O gestor considera que as empresas controladas por famílias têm maior flexibilidade para responder a crises.
Um estudo do Credit Suisse concluiu que as empresas familiares, a nível global, recorreram menos a apoios do Estado do que as suas pares durante esta crise. Em Portugal também se verificou esta tendência?
O que o relatório do Credit Suisse nos diz agora é uma realidade bem conhecida. Já um artigo da Harvard Business Review de 2012 dizia a mesma coisa: em tempos de crise, as empresas familiares sobrevivem melhor, porque são mais prudentes, distribuem menos dividendos, têm reservas mais elevadas para fazer face a crises, eventos inesperados. Desta vez foi uma pandemia, amanhã será outra coisa, e nós temos de estar preparados, temos de sobreviver. A informação que tenho de alguns associados é de que nem todos aproveitaram as facilidades de diferimento do pagamento de impostos. Enviaram as guias e pagaram no dia certo. Os que podiam, pagaram, os que não podiam, ainda bem que havia esse diferimento. No layoff, a mesma coisa: quem não precisou não aproveitou. Mas ainda bem que lá estava.
Existe a convicção de que as empresas familiares têm uma perspetiva de mais longo prazo. O que pode explicar essa característica?
Visão de longo prazo, resiliência, prudência – todos aspetos característicos da maioria das empresas familiares. Não vou dizer que isso nos permite ter melhores resultados, existem pelo mundo fora empresas não familiares muito bem geridas e com ótimos resultados. Por que razão nos centramos no longo prazo? Porque as gerações têm trinta anos entre elas. Porque trabalho a pensar naquilo que os meus filhos e os meus sobrinhos vão fazer quando for a vez deles de gerirem os negócios. Porque a visão de longo prazo é inimiga da jogada, do truque, do dinheiro fácil. Porque a continuidade e a solidez são mais importantes do que sucessos com fogo de artifício.
O estudo do Credit Suisse aponta que as empresas familiares têm uma maior flexibilidade para suspenderem ou reduzirem dividendos. Isso é uma qualidade importante, em tempos de crise?
Parece-me evidente. Uma conversa num conselho de família sobre redução de dividendos não demora mais de dez minutos, e não há discussão. É o que é. Por isso, o acionista familiar também tem de ser prudente na gestão dos seus ativos pessoais, para poder fazer frente a um ano sem dividendos.
Em Portugal, tem-se discutido a necessidade de existirem mais fusões e aquisições de forma a termos empresas com maior dimensão e escala. Mas, para manter o negócio controlado pela família, poderá existir uma maior resistência das empresas familiares em entrarem nestes movimentos de consolidação?
Aumentar a escala é a estratégia do ministro da Economia, Pedro Siza Vieira, que fez um esforço notável em agosto e setembro de 2019 – há um ano precisamente – na constituição de fundos com o objetivo de financiar fusões e aquisições nas empresas familiares. Foi a primeira vez na História recente que um governante fez alguma coisa pelas empresas familiares. Quanto mais escala tiverem as empresas, maior é a sua produtividade, e é isso que temos de melhorar. Siza Vieira viu isso e agiu.
Artigo publicado originalmente na edição 438, de outubro, da EXAME