(Artigo publicado originalmente na revista Exame n.º 462, em outubro de 2022)
Leitos de rios em que a água deu lugar ao pó, o Tejo a ser atravessado a pé em algumas zonas, barragens em reservas mínimas, aldeias que repousavam submersas, há décadas, e que reemergiram sob a forma de ruínas fantasmagóricas. Se dúvidas existissem sobre a necessidade de aprendermos a viver com menos água, os últimos meses dissiparam-nas. A Europa enfrentou em 2022 aquela que pode ter sido a maior seca dos últimos 500 anos, e Portugal tem sido um dos países mais afetados. Nos últimos cinco anos, a precipitação ficou sempre abaixo do normal. A situação é delicada e, só no ano de 2022, os prejuízos para a economia podem ter-se cifrado em centenas de milhões de euros. O setor da agricultura, por exemplo, fala de uma situação de “desastre”. Mas o pior pode ainda estar por vir, já que os especialistas anteveem que, no futuro, as secas poderão ser ainda mais longas e frequentes. Está o País preparado para enfrentar este desafio estrutural, com efeitos significativos no ambiente, na sociedade e na economia? Há formas de mitigar o impacto de um cenário de cada vez mais escassez de água?
A sabedoria popular diz que “só percebemos o valor da água depois de a fonte secar”. Mas, apesar de a água ter começado já a escassear em várias zonas do País, não é ainda líquida a atribuição do merecido valor a até recurso. “Estamos, de facto, todos muito distraídos”, considera Helena Freitas. A professora catedrática na área da Biodiversidade e Ecologia, na Universidade de Coimbra, realça que “os modelos demonstram claramente que vamos ter uma perda de níveis de precipitação, e os cenários estão sempre a piorar”, mencionando projeções que apontam para perdas médias de 20%, nas próximas duas décadas.
O cenário atual já deveria ser suficiente para se valorizar mais este recurso, segundo os especialistas ouvidos pela EXAME. “Não creio que haja uma perceção adequada, especialmente na sociedade em geral, apesar de ser conhecido que um euro investido nos serviços de água tem um impacto de seis euros em benefícios económicos”, refere Jaime Melo Baptista, presidente do Lisbon International Centre for Water. As evidências de que a fonte está a secar são fortes. O especialista refere que “devemos ter consciência de que, desde 2000, não se verificam anos húmidos em Portugal, os quais permitem acumular água nas albufeiras e recarregar os aquíferos”. E nota que, “nos últimos 20 anos, a precipitação diminuiu cerca de 15% e, no mesmo período, a disponibilidade de água reduziu cerca de 20%”.
Essa tendência deverá agravar-se. Ricardo Deus, diretor da divisão de Clima do IPMA, indica que as projeções apontam para uma diminuição da precipitação anual e um aumento da evapotranspiração, que retira a humidade ao solo. A conclusão, realça, “é que, perante estes cenários, será de esperar um aumento significativo do défice hídrico em Portugal Continental, o que, desta forma, poderá, por exemplo, ter efeitos expressivos no crescimento e no desenvolvimento das plantas e, consequentemente, na produtividade e qualidade dos produtos”.
A fatura económica
A economia enfrenta os choques provocados pela invasão da Rússia à Ucrânia e pela subida em flecha da inflação. Mas a seca começa também a passar uma fatura à atividade económica, amplificando alguns efeitos da crise energética e do aumento nos preços dos alimentos. Ora, se alguns danos são já visíveis, há, no futuro, o risco de os impactos destes fenómenos na economia se agudizarem. As fortes evidências de que situações de seca, como a que atravessamos, se irão tornar o novo normal começam a preocupar algumas instituições, que avaliam o desempenho económico de países europeus.
No final de julho, por exemplo, a agência de notação financeira Moody’s publicou um relatório a alertar para os potenciais impactos negativos desses fenómenos nas contas públicas da economia portuguesa, espanhola, francesa, grega e italiana. Os analistas desta entidade sublinharam que, atualmente, alguns desses países tiveram já de assumir despesa não prevista para responderem a desastres naturais exacerbados pela situação de seca, como os incêndios. Portugal, por exemplo, anunciou recentemente um pacote de 200 milhões de euros para apoiar os territórios afetados pelos grandes fogos. Antes disso, já a Grécia e outros países haviam sido forçados a fazer o mesmo. Não obstante estes impactos, os analistas consideram que as despesas causadas pela seca e pelos incêndios nos cofres públicos são comportáveis a curto prazo, mas, a longo prazo, o cenário pode ser diferente. A Moody’s afirma que “o expectável aumento no número, intensidade e duração das secas e incêndios nos próximos anos terá provavelmente efeitos negativos” na qualidade de crédito e, consequentemente, nos ratings desses países.
Também em Bruxelas se tenta fazer contas aos impactos orçamentais que a seca e demais efeitos provocados pelas alterações climáticas poderão ter nas contas públicas dos Estados-membros. No caso de Portugal – e num cenário em que a temperatura aumente 1,5 graus centígrados até meados deste século –, o custo orçamental direto poderá ser equivalente a 2,1% do PIB já a partir de 2024, segundo simulações feitas pelos especialistas da Comissão Europeia, num relatório publicado no passado mês de julho. Num cenário de aumento da temperatura de 2 graus, esse impacto negativo aumentaria para 2,4% do PIB. Apesar de Portugal ser uma das economias mais vulneráveis, as consequências seriam bem menores do que em Espanha, que teria de assumir um custo de 4,5% e de 5,3%, respetivamente, naqueles dois cenários. No entanto, é importante esclarecer que os próprios autores deste estudo reconhecem que este tipo de projeções tem um elevado grau de incerteza. Ainda assim, mais décima ou menos décima, a mensagem mantém-se: “a vulnerabilidade às alterações climáticas pode gerar riscos de incerteza, afetar a qualidade de crédito e o acesso aos mercados financeiros internacionais”. Além dos impactos diretos nas contas públicas, haverá ainda consequências indiretas, como o potencial abrandamento da economia e a consequente menor arrecadação de impostos.
Caso a fatura causada pela seca e pelos incêndios aumente – e a informação disponível aponta para que isso seja muito provável –, esta poderá ser uma fragilidade da economia nacional alvo de escrutínio. “Portugal é um dos países do Sul da Europa que enfrentam cenários climáticos de alguma gravidade, porque estes transformam brutalmente o nosso território e o seu potencial produtivo”, refere Helena Freitas. A investigadora considera que “devíamos ter isso mais presente”, já que a UE realizará, até ao final do próximo ano, uma avaliação regional do risco climático, o que tornará mais evidente para as instituições internacionais e financeiras a situação portuguesa. “Temos de mostrar que estamos a olhar para o problema e que encontramos formas de nos adaptar e de mitigar os seus impactos”, defende. Uma das medidas urgentes sugeridas pela especialista passa pela constituição de uma task-force com presença obrigatória na definição da política agrícola e ambiental.
Crise no terreno
A Comissão Europeia e as agências de rating até podem ter concluído que, para as contas públicas, os riscos de curto prazo podem ser controlados. Porém, no terreno, há já setores que estão a sofrer. Para se ter alguma referência, no início do ano, uma equipa de investigadores da Nova SBE, citada pelo Jornal de Negócios, estimava que, caso a seca se prolongasse, o impacto na economia poderia ficar em torno dos 400 milhões de euros.
A agricultura, que utiliza cerca de 70% da água que captamos, está na frente dos prejuízos. “As perdas são enormes”, avalia Eduardo Oliveira e Sousa. O presidente da Confederação de Agricultores de Portugal (CAP) revela que, em alguns setores ou produções, existem “quebras superiores a 50%, nunca inferiores a 30%, o que facilmente induz que o ano, em termos económicos, será para muitos um desastre”. Além das quebras que já se verificaram, a situação de seca compromete também a capacidade de produção futura. “O elevado stresse hídrico a que as plantas e as culturas estão expostas naturalmente põe em causa o seu desempenho posterior, o que transporta para o futuro o impacto desta seca”, explica o responsável da CAP. Calcular a dimensão dos prejuízos não é tarefa fácil. “A quantificação das perdas não é apenas muito difícil como prematura, porquanto muitos dos efeitos da seca estão ainda por ser totalmente conhecidos”, diz Eduardo Oliveira e Sousa. Até porque a principal variável para esta estimativa seria saber até quando irá durar a atual situação de seca.
Porém, os impactos da seca não se circunscrevem à agricultura. Na energia, tem de se fazer um uso muito mais moderado da capacidade hidroelétrica. Em plena crise, a água das barragens poderia ser um antídoto para compensar os elevados preços do gás, mas a escassez obrigou a um uso mais baixo dessa fonte de energia. Segundo contas da EXAME, baseadas em dados da REN, a produção hídrica, entre o início do ano e final de agosto, foi de apenas 3 102 GWh. Este valor corresponde a apenas 40% da média da última década. A hídrica contou apenas com 11% para a produção total de eletricidade, abaixo do peso de 24% verificado na última década. A situação é tão delicada que o Governo teve de suspender, no início do ano, a produção de energia em algumas barragens. Mais recentemente, o Executivo “aprovou medidas preventivas para a segurança do abastecimento de energia que envolvem uma nova ponderação sobre a hierarquia dos usos, garantindo uma reserva nas albufeiras com capacidade de produção de energia hídrica para a segurança do setor”, indicou fonte oficial do Ministério do Ambiente e da Ação Climática (MAAC) à EXAME. A menor disponibilidade hídrica obrigou ainda a que se reforçasse a utilização das centrais alimentadas a gás natural e motivou também uma subida das importações de eletricidade. Ora isso acaba por agudizar a crise nos preços da eletricidade que Portugal e Espanha tentaram mitigar com a criação de um mecanismo para limitar o preço do gás na produção de eletricidade. A seca tem passado a fatura também a algumas produtoras de eletricidade. No caso da EDP, por exemplo, fonte oficial da empresa refere que, na atividade em Portugal, “se registou um prejuízo de 111 milhões de euros, fortemente determinado por este contexto de seca severa ou extrema”.
Também o setor segurador tem sido mais vezes chamado a cobrir prejuízos. Apesar de nos seguros de colheitas – em particular no âmbito do Sistema de Seguros Agrícolas – a seca não estar incluída no leque de riscos cobertos definido pelo Estado, nos últimos anos os custos com fogos florestais aumentaram. “O certo é que os grandes incêndios, com uma correlação evidente com a seca e o aumento da temperatura, têm ocorrido em Portugal com uma frequência crescente e têm afetado seriamente o património habitacional e industrial seguro na orla das regiões florestais”, observa José Galamba de Oliveira. O presidente da Associação Portuguesa de Seguradores (APS) recorda que “a vaga de incêndios que ocorreu em outubro de 2017 afetou mais de três mil habitações e de 700 edifícios comerciais ou industriais, gerando perdas seguras superiores a 226 milhões de euros”, as maiores de sempre no setor segurador português. Neste ano, indica o responsável, “os incêndios ocorridos no verão deram lugar a perdas seguras superiores a 10 milhões de euros, não estando ainda contabilizados todos os sinistros”.
No turismo, a situação de seca também causa apreensão. No Algarve, teve de haver racionamento de água, e a Confederação do Turismo de Portugal (CTP) observa que os empresários do setor “estão preocupados com a necessidade de investimentos na captação e no abastecimento de água para consumo humano, quer dos residentes quer dos turistas”.
Investimentos prioritários
O desafio de nos adaptarmos a uma economia de seca é grande – e exige investimento, organização na gestão e aplicação de conhecimento que já existe. O Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) contempla algumas verbas para a gestão hídrica. Do poder de fogo total de 18 mil milhões de euros desta bazuca, 390 milhões de euros estão destinados a investimentos nessa área. Desse valor, a maior fatia – cerca de 200 milhões de euros – é para ser aplicada no Algarve. O objetivo, segundo o MAAC, é reforçar “a interligação do sistema de abastecimento em alta do Barlavento e Sotavento, o projeto de uma central de dessalinização e a intervenção em cinco ETAR para afinação e adução de água residual tratada”.
O PRR tem previstos 390 milhões de euros para investimentos direcionados para a mitigação da escassez hídrica
Há mais 120 milhões de euros para o aproveitamento hidráulico de fins múltiplos do Crato, que inclui a construção da barragem do Pisão, a criação de uma nova zona de regadio e a produção de energias hídrica e solar. Este investimento é considerado pelo Governo um “projeto-âncora para a recuperação económica da região do Alto Alentejo”. Os outros 70 milhões de euros destinam-se à eficiência e ao reforço hídrico dos sistemas de abastecimento e regadio na Madeira.
Fora do PRR, também estão em curso outros projetos, como a interligação do Alqueva aos sistemas de abastecimento das bacias do Sado e do Guadiana, que contempla um investimento de 57 milhões de euros, segundo o MAAC. Já na reabilitação da rede hidrográfica, o Governo conta “executar mais 50 milhões de euros”. Isto depois de se terem promovido, entre 2015 e 2021, investimentos de 116 milhões de euros nesse tipo de projetos por todo o território. O ministério liderado por Duarte Cordeiro salienta ainda que, nos últimos anos, foram disponibilizados cerca de 94 milhões de euros para a redução de perdas em áreas urbanas e sublinha que “existe disponibilidade do Fundo Ambiental para financiar medidas pontuais e de rápida execução”.
Face à dimensão do problema que a seca acarreta para a economia portuguesa, serão estes valores suficientes? Gonçalo Santos Andrade considera como positivo o investimento previsto para o Algarve, que contempla novas fontes de água através de transvase e da central dessalinizadora. Mas o presidente da Portugal Fresh esperava uma “aposta muito superior no âmbito do PRR”, defendendo investimentos noutras zonas do País semelhantes aos que vão acontecer no Algarve. Também Eduardo Oliveira e Sousa considera os valores previstos nos PRR “pouco mais do que uma gota de água, se quisermos criar uma estratégia de combate ao avanço da desertificação em curso e que já invadiu o País, vindo do Norte de África”. O presidente da CAP afirma que são “necessários milhares de milhões de euros, e não apenas algumas centenas”, mas ressalva que esta “será uma estratégia a longo prazo, pelo que, com o PRR agora, o PT2030 e outros recursos no futuro, não será a falta de recursos financeiros que justificará não se avançar com esta visão”. Defende que “isso só depende mesmo da vontade política”. Por seu lado, a CTP pede celeridade na conclusão dos projetos previstos no âmbito do PRR para o Algarve.
O caderno de encargos que as associações empresariais gostariam de ver executado é pesado. Porém, essas entidades alertam que isso será essencial para se garantir a competitividade em áreas de atividade fulcrais para a economia nacional. Na agricultura, por exemplo, Gonçalo Santos Andrade teme que se possa perder terreno em relação a outros mercados: “O setor agroalimentar enfrenta enormes desafios com a ausência de obras de fundo na modernização dos aproveitamentos hidroagrícolas, criação de charcas e barragens, e novas fontes de água, que são vitais para ultrapassarmos os impactos da seca, para continuarmos a aumentar as exportações e competirmos com os nossos principais concorrentes do Sul da Europa”.
Uma das medidas, consideradas essenciais por empresários e peritos, passa pela modernização de algumas infraestruturas. Rodrigo Proença de Oliveira, professor no Instituto Superior Técnico e consultor da área de ambiente e recursos hídricos na Bluefocus, observa que, “tipicamente, o que temos na agricultura são associações de regantes que gerem infraestruturas construídas nos anos 50 e 60, que estão neste momento a necessitar de um forte investimento na sua reabilitação”. Uma conclusão que é partilhada por Gonçalo Santos Andrade: “Temos muita rega por gravidade em canais abertos em vários perímetros de rega, na maioria obras com mais de 50 anos, com perdas superiores a 30% na distribuição”. O presidente da associação que representa empresas de fruta, legumes e flores considera nuclear que se modernizem essas infraestruturas, “pressurizando a grande maioria dos blocos de rega desses perímetros”, e defende ainda uma aposta “em novas fontes de água com transvases e dessalinizadoras”, apontando o exemplo de Espanha, que conta com cerca de 750 instalações deste tipo. Já no setor do turismo, a CTP sugere “apoios à captação e reutilização de águas residuais para uso na operação” e diz que “são urgentes investimentos na reparação de condutas, por forma a se estancarem desperdícios de água”.
No entanto, nem todas as possíveis soluções são consensuais. No caso da dessalinização, Helena Freitas refere que resulta “numa água de muito menor qualidade, com custos e impactos”. A investigadora considera que “não vale a pena irmos para soluções de fim de linha” e que é essencial que exista uma transformação na agricultura que torne esta atividade menos desligada dos territórios. Helena Freitas sublinha ainda a “absoluta e imperiosa necessidade” de se restaurarem as bacias hidrográficas, exemplificando com o impacto dos incêndios da serra da Estrela: “É muito preocupante, num território onde nascem os rios Zêzere e o Mondego, que são da maior importância. Vamos deixar de ter o ciclo da água a acontecer”. Outra medida fulcral passa por um “investimento maior na monitorização e nos sistemas de apoio à decisão”, salienta Rodrigo Proença de Oliveira.
A dimensão dos investimentos que podem ser necessários é enorme. Jaime Melo Baptista – que liderou a Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos, entre 2003 e 2015 – afirma que, “para garantirmos no futuro o abastecimento suficiente de água para consumo humano em Portugal, necessitamos de manter as infraestruturas que temos e pensar em origens alternativas de água”. O especialista sublinha que “os valores de investimento são significativos” e faz as contas: “O setor necessita de investir 900 milhões de euros na conclusão da construção de infraestruturas, 2,9 mil milhões de euros na reabilitação de ativos existentes, 1,2 mil milhões de euros em medidas infraestruturais de resiliência, modernização e descarbonização, 400 milhões de euros em sistemas de águas pluviais e 100 milhões em medidas não infraestruturais, num total de 5,5 mil milhões de euros”.
Quando a escassez aguça o engenho
Face à dimensão do desafio que a seca apresenta à sociedade portuguesa, ainda há muito a fazer. Mas, como refere Rodrigo Proença de Oliveira, “quando a escassez da água é extrema, aguça-se o engenho”. E já há vários casos de inovação e de tecnologia de ponta usadas em Portugal para ajudar a se encontrar outras nascentes de água.
Uma das apostas passa pela utilização de águas residuais tratadas, atividade que foi atribuída, em 2021, à Águas de Portugal (AdP). Fonte oficial da empresa indica que existem “já exemplos de uso para rega de complexos desportivos e espaços verdes, na região de Lisboa (nomeadamente no Parque das Nações), para rega de campos de golfe, no Algarve e no Vidago, para sistemas de climatização, lavagens de ruas e veículos, para o suporte de ecossistemas (nomeadamente, a lagoa dos Salgados, no Algarve) e também para utilização na agricultura”. Do lado do MAAC, sublinha-se que no Algarve já é utilizado um hectómetro cúbico (hm3) de água para reutilização na rega, “prevendo-se a sua duplicação em 2023, por forma a se alcançar o objetivo de 8hm3 em 2025”.
Apesar de já se começar a usar águas residuais em algumas atividades, ainda há um longo caminho a percorrer. “A dificuldade está em como podemos utilizar a água reutilizada em grandes extensões de rega”, diz Rodrigo Proença de Oliveira, sublinhando que Espanha já o consegue fazer. A AdP tem em curso vários projetos para conseguir dar escala a esta tecnologia. Na estação de tratamento de águas residuais (ETAR) de Beja foi instalado um projeto-piloto que “consiste num sistema de produção de água para reutilização (ApR) através da desinfeção solar das águas residuais tratadas na ETAR, para utilização, por um agricultor da região, na rega de um pomar de romãzeiras”, explica a empresa. Outro projeto nesta área centra-se na rega de vinha no Alentejo, mais concretamente na Herdade da Ravasqueira.
Também o setor da agricultura já meteu mãos à obra no sentido de encontrar tecnologia que permita uma utilização mais eficiente dos recursos hídricos. “De uma maneira geral, penso que os agricultores têm cada vez mais essa preocupação”, observa Helena Freitas. Já Eduardo Oliveira e Sousa garante que “há muita tecnologia nos processos de rega modernos”. O líder da CAP afirma que “é fácil encontrar no terreno muitos agricultores e dezenas de milhares de hectares regados com base em informação em tempo real das necessidades das plantas, do teor de humidade no solo, de sistemas de rega programados e integrados com programas de previsão meteorológica, interpretação de dados através de Inteligência Artificial em equipamentos no campo, ligados à internet e abastecidos com energia fotovoltaica no local, enfim: tudo o que de mais moderno possamos ter ao nosso alcance”. No entanto, adverte que “faz falta um apoio mais específico e expressivo neste tipo de investimentos, bem como agilidade e simplificação processual e melhor formação”.
Já na gestão de infraestruturas – principalmente nas mais antigas, que estão a necessitar de reabilitação – também há bons exemplos que podem ser replicados. Rodrigo Proença de Oliveira destaca o da EDIA – Empresa de Desenvolvimento e Infraestruturas do Alqueva, que aposta em painéis fotovoltaicos flutuantes para gerar energia necessária à bombagem de água para cotas mais altas. Além disso, a empresa utiliza ainda técnicas inovadoras na monitorização dos recursos e de deteção de perdas de água, e presta também aconselhamento aos agricultores para que possam ter a informação necessária para tomarem as decisões mais adequadas.
Baterias, sol e vento
No setor da energia, também há exemplos de fortes investimentos para se contornar os impactos da seca e se fazer uma gestão mais eficiente dos recursos. O Alqueva é considerado pela EDP uma “espécie de laboratório vivo”. Foi aí que a elétrica construiu o maior parque solar flutuante em albufeira da Europa, o que representou um investimento de seis milhões de euros e que entrou em funcionamento neste ano. Esta infraestrutura permite abastecer mais de 30% da população nessa região do Alentejo e é um primeiro ensaio da empresa para testar “a complementaridade entre tecnologias de produção de energia renovável despachável (hidroelétrica) e não despachável (fotovoltaica), assim como tecnologias de armazenamento de energia de longa duração (bombagem) e de curta duração (bateria)”, especificou a EDP no lançamento deste projeto.
As centrais hidroelétricas têm um “papel fundamental na segurança, estabilidade e resiliência do sistema elétrico”, sublinha a elétrica, liderada por Miguel Stilwell de Andrade. Não obstante o risco de secas mais frequentes e longas, a EDP garante que “a produção de energia hídrica continuará a ser sustentável e a fazer parte do míx energético”. A aposta para mitigar os impactos da escassez de água passa por encontrar formas de inovação que tornem essas centrais mais eficientes e que incluem o aproveitamento do ponto de ligação à rede da hidroelétrica para ligar uma nova central eólica ou solar, como aconteceu no Alqueva.
Outra tecnologia em que as elétricas têm investido fortemente concentra-se na capacidade de armazenamento. Um dos exemplos é a gigabateria do Tâmega, que permite armazenar grandes quantidades de energia e que faz parte de um projeto que representou cerca de 1,5 mil milhões de euros de investimento por parte da Iberdrola. “A principal mais-valia do Sistema Eletroprodutor Tâmega passa por se tratar de uma gigabateria. A sua capacidade de armazenamento, bem como a produção da central de bombagem de Gouvães, de 880 MW, não são, por isso, afetadas pela seca”, explica fonte oficial da empresa espanhola. Realça ainda que o “armazenamento hidroelétrico acrescenta grande valor e estabilidade ao sistema, especialmente em situações de stresse energético como estas”, e que “um sistema de produção de energia hídrica, com a possibilidade de armazenamento por bombagem permite manter este grande valor no sistema, independentemente do tipo de ano hidrológico”. No futuro, a Iberdrola prevê que esta instalação se torne híbrida, através da construção de um parque eólico que irá combinar e otimizar a produção das fontes de energia renováveis. “Deste modo, não será necessário construir novas redes de transporte, uma vez que serão utilizadas as do complexo hidráulico, evitando-se assim um maior impacto no ambiente e no território”, diz a empresa.
Novos investimentos e ideias
Contornar o problema da escassez de água será um dos grandes desafios de Portugal e de muitas outras geografias. Christian Zilien, analista da Allianz Global Investors, acredita que, ao nível global, o setor das infraestruturas relacionadas com recursos hídricos irá ter crescimentos acima do PIB, o que pode constituir uma oportunidade para investidores e atrair capital para o setor. Além dessa área, terá de se continuar a inovar e transformar a economia e a sociedade para se adaptarem melhor aos efeitos das alterações climáticas. Apesar de poderem existir algumas barreiras de entrada, o tecido empreendedor também será chamado a contribuir para a resolução do problema.
Em Israel, por exemplo, várias start-ups tecnológicas têm tentado encontrar novas tecnologias que permitam à agricultura e a outras áreas de atividade fazer um uso mais eficiente dos recursos hídricos. Helena Freitas antevê que a transformação terá de ser feita com soluções tecnológicas de suporte a grandes empresas e também em pequena escala. “As possibilidades são inúmeras e passam pelo conhecimento. Vamos ter novos mercados e a capacidade de produzir mais e melhor com menos água, e isso pode passar por soluções impulsionadoras de um tecido empreendedor”, afirma a investigadora. No mercado nacional, Jaime Melo Baptista nota que “há um setor empresarial em crescimento, oferecendo produtos e serviços, como, por exemplo, contratos de melhoria da eficiência hídrica baseados no desempenho”.
A seca destapou, em alguns locais da Europa, as chamadas “pedras da fome”, marcos feitos há séculos que serviam de alerta para a queda perigosa dos níveis dos rios. Algumas centenas de anos depois, esses avisos vindos do passado são um sinal de alerta. A boa notícia é que agora temos o conhecimento para gerir esses riscos. A má é que as alterações climáticas poderão revelar-se testes cada vez mais exigentes às tecnologias e ferramentas de que dispomos.