A invasão da Ucrânia aparenta ter refutado a tese de que o comércio internacional leva à paz entre os estados, que já no século XVIII era defendida por Montesquieu, nota o tenente-coronel Jorge Rodrigues. O diretor do curso de Risco Geopolítico e Estratégia para Executivos considerou – em respostas a meio de março para um trabalho alargado da EXAME sobre o que a guerra mudou na economia mundial – que poderá haver algum retrocesso na globalização. E levanta a hipótese de que poderá materializar uma macro-regionalização económica, tendência que se verificada desde 2016 e que foi consolidada pela pandemia e agora com a guerra na Ucrânia.
Muitas empresas (incluindo portuguesas) continuaram a investir na Rússia nos últimos anos, apesar das sanções que foram aplicadas em 2014 aquando da anexação da Crimeia. Isso é um indicador de que existia uma certa complacência por parte da gestão de empresas em relação aos riscos geopolíticos?
Muitas empresas revelaram complacência face ao risco geopolítico, tenham investido ou não na Rússia. Relativamente às empresas que não investiram na Rússia, muitas estavam indiretamente expostas ao risco de guerra e não se protegeram. Veja-se as dificuldades da indústria conserveira, dependente de óleo de girassol com origem na Ucrânia e na Rússia, ou da indústria dos transportes, muito vulnerável ao preço dos combustíveis. As empresas que investiram na Rússia estavam mais cientes do risco de guerra e tiveram tempo para se preparar, implementando medidas para mitigar e responder ao risco geopolítico.
É conveniente levar em conta que a aversão ao risco varia entre as empresas, e condiciona as estratégias de investimento. Por exemplo, as empresas no setor da energia estão habituadas a operar em regiões politicamente instáveis, e inevitavelmente estão dispostas a aceitar maiores riscos e a desenvolver competências na gestão do risco geopolítico. Sendo um dos grandes produtores mundiais de energia, é natural a Rússia atrair investimento direto estrangeiro neste sector.
A guerra na Ucrânia e as consequentes sanções económicas aplicadas à Rússia poderão alterar de forma significativa a análise de risco que deve ser feita nos negócios que se fazem em países que não tenham regimes democráticos? É expectável que antes de se apostar em mercados com regimes mais autocráticos as empresas comecem a pensar duas vezes e a exigir maiores prémios de risco?
É natural que a análise e gestão do risco geopolítico ganhe importância nos próximos anos. No caso da Rússia, as sanções económicas tiveram dois efeitos imediatos sobre a viabilidade dos negócios. Primeiro, a Rússia passou a ser incapaz de pagar às empresas estrangeiras ao perder acesso a dólares e a euros. Segundo, houve uma rutura nas cadeias de abastecimento que envolvem empresas russas.
Além dos efeitos das sanções económicas, há também efeitos do risco reputacional. Muitas empresas internacionais voluntariamente prescindiram das suas operações na Rússia, para evitar que a sua imagem estivesse associada ao regime de Putin. Concluindo, o caso russo alertou para o risco de sanções e para o risco reputacional.
Mas os efeitos da guerra na Ucrânia são mais vastos. As ondas de choque do conflito na Ucrânia terão impacto em outros países. Vejamos dois exemplos. Primeiro, a Primavera Árabe decorreu em anos de escassez global de alimentos (que se deveu em parte a más colheitas de cereais na Ucrânia e na Rússia), e podemos estar à beira de uma crise semelhante. Segundo, o mundo olha com expectativa para o desenlace da guerra na Ucrânia. O sucesso do plano de Putin pode encorajar comportamentos belicistas em outras geografias, como por exemplo Taiwan.
É provável que as empresas exijam maiores prémios de risco antes de investir em regimes autocráticos. Mas é redutor pensar que apenas esses países representam um risco, ou que essa será a única resposta. Há estratégias complementares para gerir o risco geopolítico, como por exemplo diversificar investimentos ou cobrir riscos no mercado financeiro. Doravante, as empresas investirão mais recursos para compreender e analisar riscos geopolíticos, e para implementar medidas para mitigar esse risco e responder a crises.
É ainda de referenciar que o prémio de risco será igualmente agravado pelos bancos, com resultados impactantes no financiamento das empresas.
A maior tensão que se tem assistido nos últimos tempos entre os países democráticos e as nações mais autocráticas (como a guerra comercial EUA/China, as sanções aplicadas por Pequim à Austrália e agora as sanções aplicadas à Rússia por causa da agressão à Ucrânia) poderá ser um golpe importante na globalização? Existe a possibilidade de o mundo ficar dividido em dois grandes blocos separados por uma cortina de ferro em termos económicos?
O conflito na Ucrânia reforçou uma tendência já existente — o fim de uma versão extrema da globalização, ou até algum retrocesso desta (desglobalização) — e o início de uma maior preponderância da geopolítica. No entanto, é improvável que o mundo fique dividido em dois blocos, pois a economia mundial atual assenta em muitas interdependências.
Pensamos na Guerra Fria quando pensamos em dois blocos separados por uma cortina de ferro. Só foi possível separar o bloco “capitalista” do bloco “comunista”, porque esses dois blocos tinham poucas relações económicas e lógicas de funcionamento muito diferentes. Durante a Guerra Fria, a dissuasão nuclear forneceu estabilidade às relações internacionais, evitando o confronto entre as duas superpotências.
As interdependências geradas pelo processo de globalização ajudaram a estabilizar as relações internacionais após o final da Guerra Fria. Já no século XVIII, Montesquieu defendia que o comércio internacional leva à paz entre os Estados. A guerra na Ucrânia parece mostrar que afinal a globalização não fornece estabilidade suficiente às relações internacionais. O que poderá acontecer é uma macro-regionalização económica, dentro do modelo de globalização clássico, conforme uma tendência de 2016, consolidada pela pandemia e agora maximizada pelo conflito ucraniano.
Face ao aumento do risco geopolítico, é provável as empresas dedicarem mais recursos à gestão desse tipo de risco. Nos próximos anos, algumas palavras-chave no léxico empresarial serão resiliência, redundância, diversificação, cadeias de abastecimento mais curtas, ou investimento europeu em sectores críticos como os semicondutores.