Uma pandemia sem vacina à vista que deixou o mundo em suspenso, protestos em massa nas ruas dos EUA, a maior recessão global desde a Grande Depressão, milhões de desempregados e a continuação da guerra comercial entre Washington e Pequim. As más notícias acumulam-se. Mas, após um choque inicial, as bolsas seguem numa espécie de ‘business as usual’. Desde os mínimos de março têm valorizado de forma rápida, o que deixa alguns especialistas de pé atrás com esta espécie de mundos paralelos entre os mercados financeiros e a economia real.
As bolsas mundiais estão perto de recuperar de um dos crashes mais rápidos da história. O medo sobre as consequências económicas da pandemia levou as bolsas a atingir o seu fundo a 23 de março, após terem perdido cerca de um terço do seu valor em poucas semanas. Mas, desde aqueles mínimos, foi sempre a recuperar. O índice que mede o desempenho das bolsas globais leva já ganhos de 35% nesse período, semelhante ao conseguido pelas ações americanas e europeias. Em Portugal, o PSI20 recupera mais de 30%.
David Lebovitz, responsável de estratégia de investimentos da JP Morgan Asset Management, explica – numa nota – esse otimismo do mercado com “o abrandamento no crescimento de casos de Covid-19, a resposta agressiva do lado orçamental e monetário e a expectativa de uma recuperação em V dos lucros das empresas”. Os governos mundiais têm injetado biliões de euros nas suas economias para conter os danos. Além disso, os bancos centrais têm colocado no terreno programas de compras a uma escala massiva para manter a economia à tona e assegurar a confiança nos mercados financeiros.
O que diz a História? Oportunidade ou risco?
Mas, apesar de os investidores estarem a assumir nas suas decisões uma espécie de “vai correr tudo bem”, há avisos de que o caminho das bolsas poderá não ser assim tão favorável. David Lebovitz duvida de que as empresas cotadas consigam continuar a fazer crescer os seus lucros de forma a corresponder às expectativas que os investidores estão a depositar.
Já os responsáveis de investimento da Schroders, por exemplo, recomendam uma maior cautela com as ações. “Continuamos preocupados sobre quanto tempo pode demorar a forte subida no preço das ações”, avisaram. Justificam que “temos visto uma deterioração dos dados económicos e mais tensões entre os EUA e a China que podem baixar o interesse dos investidores a este nível de preços”.
As cicatrizes no mercado de trabalho e a procura fraca sugerem que não se avista a recuperação rápida que muitos comentadores esperavam no início do vírus
Gabriella Dickens
Apesar de muitos países estarem a reabrir a atividade após a paralisação ditada pelo Grande Confinamento, a economia dá sinais de estar a recuperar de forma muito lenta. Gabriella Dickens, economista da Capital Economics, observa que alguns dos indicadores de atividade económica aparentam mostrar “que o pior já passou” e que em junho poderemos ter mais melhorias. Mas, realça num relatório, “as cicatrizes no mercado de trabalho e a procura fraca sugerem que não se avista a recuperação rápida que muitos comentadores esperavam no início do vírus”.
Recuperar do choque da pandemia não será fácil. Mas, ainda assim, muitos investidores apostam forte que as bolsas continuarão a subir, o que pressupõe uma regeneração da economia e dos lucros das empresas. Stuart Podmore, especialista em finanças comportamentais da Schroders, põe a hipótese, num artigo colocado no site da gestora, de estar a acontecer um fenómeno de “enviesamento retrospetivo”, recordando o que se passou na crise financeira de 2008. Os mercados colapsaram no segundo semestre desse ano mas em março de 2009 começaram a aparecer os primeiros sinais de recuperação. Os investidores que arriscaram nessa altura em que muitos estavam ainda paralisados pelo medo foram premiados com um dos maiores e mais longos ciclos de ganhos da história.
Com aquele episódio ainda fresco na memória, as quedas provocadas pela pandemia em março foram encaradas por muitos investidores como uma oportunidade de compra numa tentativa de tentar repetir a jogada que tantos lucros renderam na última grande crise. O dinheiro tem fluido principalmente para produtos que replicam índices ou para as cotadas com maior dimensão, como as grandes tecnológicas, o que tem tornado as gigantes cada vez maiores em relação ao resto do mercado.
Mas se em 2009 a estratégia de arriscar quando todos pareciam estar cautelosos deu frutos, nem sempre foi assim. A História já mostrou que podem existir falsas partidas. Stuart Podmore conclui que “até superarmos a ameaça de uma segunda vaga ou de uma mutação do vírus há sempre o risco de outra correção”. E recorda que na Grande Depressão, após um primeiro crash nos mercados as bolsas americanas ainda recuperaram 100% em apenas seis meses. Mas depois veio novo colapso e uma longa travessia no deserto, com os mercados a não resistirem à onda de falências dos bancos americanos e à explosão do desemprego na década de 1930.