No final de um ano de portas fechadas, cadeiras vazias, estreias adiadas e colapso das receitas, o mundo do cinema levou com um piano em cima: a Warner Brothers anunciou que os seus filmes de 2021 iriam estrear em simultâneo nas salas de cinema e na sua plataforma, HBO Max. A decisão foi vista por muitos como o princípio do fim da “janela de exibição”, o tempo que um filme está em exclusivo nos cinemas, mas também como um agitar da bandeira branca: desistir deles como peças tão centrais no modelo de negócio de Hollywood e abraçar os excitantes serviços de streaming.
Os sinais estavam lá. “Wonder Woman 1984” já tinha tido estreia simultânea e a Universal tinha chegado a acordo com a AMC para reduzir a janela de exibição para 17 dias. A IndieWire disse ser a maior mudança na distribuição de filmes desde o lançamento de “Jaws”, em 1975. A Warner continua a garantir que se trata de uma solução provisória, mas mesmo que a estreia simultânea não se torne a regra, a era de filmes em exclusivo no cinema durante 90 dias parece ter mesmo acabado. A pressão para isso acontecer já existia, mas foi muito mais fácil fazê-lo num momento de salas fechadas durante meses e famílias ficaram trancadas em casa a ver “Bridgerton” e “Mandalorian”.
Seguiu-se um ataque de nervos da indústria. Realizadores como Christopher Nolan e Denis Villeneuve mostraram-se ofendidos com a decisão. “Alguns dos maiores realizadores da indústria e estrelas de cinema mais importantes foram para a cama a pensar que trabalhavam para o melhor estúdio e acordaram para descobrir que trabalhavam para o pior serviço de streaming”, referiu em comunicado o realizador de “Tenet”, que se esperava que fosse um dos filmes do ano.
Salas de cinema ficaram desesperadas (“os cinemas vão ser lojas de Halloween”), agências de talento e parceiros financeiros dos estúdios bateram o pé a uma solução que pode prejudicar as suas receitas e bónus.
Tudo isto reacendeu o debate sobre a morte – ou pelo menos o definhar – do cinema como indústria de massas. Sair de casa para nos sentarmos numa sala com uma data de estranhos para nos rirmos ou assustarmos com um filme pode ser uma atividade cada vez com menos estranhos e menos filmes.
Às dificuldades do cinema, mais expostas durante a pandemia, junta-se o natural entusiasmo com as possibilidades financeiros do streaming. Por esta altura ainda estamos a viver uma espécie de corrida ao ouro, aparecendo cada vez mais serviços, com cada vez mais subscritores. Mas esta onda não vai durar para sempre. Basta olhar para os números da Netflix no primeiro trimestre deste ano.
Algumas análises sugerem que podemos estar a entrar numa fase de abrandamento, com obstáculos reais à estratégia de contínuo crescimento que tem guiado a Netflix (a empresa só chegou a cash flow positivo em 2020). Em vez de “onde posso ver aquela série?”, a pergunta pode passar a ser “será que preciso disto tudo?”. Algures no último par de anos, streaming deixou de ser sinónimo (apenas) de Netflix, à medida que cada vez mais concorrentes tentam ocupar o mesmo espaço. Em breve, podem começar a sentir-se apertados.
Enquanto o streaming se aproxima da sua primeira crise, o cinema tem pelo menos do seu lado a experiência de já ter ultrapassado várias. Outras pandemias, guerras mundiais, a chegada da televisão, o aparecimento dos DVD e a disseminação da pirataria. Mais: não é totalmente claro que o declínio de que tanto se fala seja um problema generalizado do cinema ou “apenas” um problema de Estados Unidos e Europa.
O que é um filme?
É debaixo desse espectro que serão organizados os 93ºs Óscares deste fim-de-semana. O momento em que a indústria se celebra a si própria, num formato meio-gala, meio-terapia. E é neste contexto que decidimos falar com Gianluca Sergi sobre o futuro do cinema. Em 2016, o professor na Universidade de Nottingham foi convidado por Kathleen Kennedy, presidente da Lucasfilm (é a ela que que tem de se queixar pelo último Star Wars), para fazer uma apresentação à Academia sobre a solidez da indústria: o cinema estava mesmo a definhar? Como veremos a seguir, a sua perspetiva continua a ser otimista.
Dois anos depois, a mesma Academia pediu-lhe para Sergi os ajudar a definir “o que é um filme”. A pergunta pode parecer disparatada, mas tornou-se uma fonte de ansiedade para Hollywood, agora que mais filmes são feitos para as nossas televisões e não para telas de cinema. O tema é relevante por motivos práticos – saber se um filme é elegível para um Óscar -, mas também para a indústria ser capaz de decidir o que deve celebrar (um filme que nunca passou numa sala de cinema?) e que critérios deve usar para o fazer (como sabemos se um filme da Netflix foi comercialmente “bem sucedido”?).
Talvez pareça uma abordagem demasiado económica à arte, mas Hollywood é uma indústria (e este é um texto de economia). Teria “Titanic” vencido 11 óscares se não tivesse faturado perto de dois mil milhões de dólares, alcançando, na altura, a receita mais alta de sempre? Embora este recém-adquirido desconhecimento possa ser saudável – a dimensão comercial ter menos peso numa avaliação artística – é natural que os estúdios se sintam nervosos.
“É assim que avaliamos a saúde da indústria. Os números são a forma mais fácil de mostrar o que os consumidores gostam. A era do streaming mudou isso. As listas da Netflix mostram o que as pessoas estão a ver mais, para que também o possa ver. O verdadeiro número, e como ele compara com outros conteúdos, é um mistério”, escreve Wesley Morris, no New York Times. Nós sabemos que um “Avengers: Endgame” será sempre mais visto do que um “Nomadland”, mas a necessidade de informação não acaba aí. “Quando a receita de bilheteira é o critério para determinar o que fazer e para quem, saber quão grande foi o sucesso global de um filme da Marvel com um elenco maioritariamente negro é importante para aquilo que vem a seguir.”
Há uma parte deste nervosismo da indústria que nasce da necessidade americana de estar sempre ansiosa com alguma coisa. Mas, este ano, temos mais motivos palpáveis. A cerimónia dos Óscares deve bater novos mínimos de audiências (em Portugal será transmitida pela RTP1), aprofundando a tendência da última década, apesar dos esforços da Academia para trazer a novidade possível à cerimónia, ao contratar Steven Soderbergh para a produzir. Que esta falta de entusiasmo coincida com o ano de maior diversidade dos nomeados deve provocar discussões muito aborrecidas nos próximos meses. É também o ano em que a Netflix bateu o recorde de nomeações para um só estúdio.
Isso acontece em paralelo com uma espécie de fenómeno de extinção em massa. Enquanto os filmes de super-heróis batem recordes, há um certo tipo de filme “médio” – comédias românticas, thrillers sem estrelas – que tem cada vez mais dificuldades em ser financiado. Não é inconcebível um futuro partido ao meio: cinemas-parques-de-diversões para os filmes-evento da Marvel; e pequenas salas para filmes indie. Tudo o que está no meio? Ligue a box. Ou o computador.
Como veremos a seguir, Sergi é muito menos pessimista acerca destas transformações no cinema e é até cético sobre se elas estão sequer a ocorrer. Mas ele também sabe que algum debate é inevitável. A resposta que Sergi deu à Academia sobre “o que é um filme de cinema” tinha 3 critérios principais: 1- ter pelo menos à volta de 90 minutos; 2 – reger-se pelas normas que se foram cristalizando na história deste medium; 3 – estabelecer uma espécie de contrato social entre o espectador e a sala de cinema, obrigando-nos a sair de casa e entrar numa sala escura com desconhecidos para ver a mesma coisa. Este último era o mais importante.
“Estamos a perder algo óbvio. Uns aos outros. Quando a Carey Mulligan chega aquela despedida de solteiro em “Promising Young Woman”, preparada para se vingar, vestida como uma enfermeira num filme porno, eu sentei-me à beira do meu sofá, desperado pela tensão de uma sala cheia. Aquele filme, cirurgicamente feito e moralmente confuso, foi feito para uma perturbação em comunidade que nunca chega a provocar”, escreve o mesmo Wesley Morris.
Eu vi o “Irishman” em 3 partes separadas por dois dias sentado no meu sofá. Quantas pessoas o viram de seguida aquelas 3 horas e meia? Se os filmes forem feitos para ver em casa, isso significa que vamos valorizar mais umas coisas (argumento, ação) do que outras (som e, à falta de melhor palavra, ”beleza”)?
Sergi concentra-se no impacto do cinema como cimento social. Da sua entrevista à Vanity Fair:
“Que oportunidades existem para as pessoas partilharem um espaço em comunidade e terem uma experiência em conjunto, sem se preocuparem se votou em Trump ou pelo Brexit? Quase todos os países têm um problema fundamental de falta de coesão social e falta de oportunidades para as pessoas se lembrarem umas às outras que adoramos histórias. Gostamos de rir, de chorar, não somos estranhos. Se remover esse elemento e disser “o cinema pode morrer, não é um problema, podemos ver filmes online”, o que está a fazer é remover esse contrato social – faça-o por sua conta e risco.”
Essa e outras discussões sobre o estado do cinema e a ascensão do streaming nesta conversa com Gianluca Sergi.
“O cinema não está em perigo de expirar. Acho que, eventualmente, veremos um grande regresso às salas”
2020 foi um ano de transição para o cinema. Por opção de consumidores e estúdios, os filmes chegaram-nos de forma diferente. A indústria mudou mesmo ou precisamos de alguma perspetiva?
Algumas coisas mudaram, mas não tudo. Algumas tendências já cá estavam antes da pandemia. Já havia muitas conversas entre executivos dos estúdios sobre encurtar a janela de exibição dos filmes. Isso iria sempre acontecer. Os filmes que fazem mais de 10 milhões de dólares de receita e estão em mais de 2 mil salas fazem 98% do dinheiro nos primeiros 45 dias. Dizer que a janela tem de ser maior do que isso é um pouco tendencioso. Os donos das salas de cinema têm de perceber que seria sempre muito complicado manter a mesma janela, de 2 ou 3 meses. Por outro lado, os estúdios continuam a precisar dos cinemas, principalmente para os grandes filmes. Porque esses grandes filmes são a locomotiva que puxa tudo.
Eles puxam até pelos filmes mais pequenos?
Sim. E não apenas os filmes. “Mandalorian” é um sucesso, tal como “WandaVision” [séries da Disney], mas eles vêm de grandes filmes [Marvel e Star Wars]. Não são originais. Não se pode dizer que há não sei quantos milhões de subscritores de streaming e, portanto, os cinemas já não são necessários para os estúdios. Não, não. Eles são os primeiros a saber que precisam desses filmes para depois produzirem essas séries de TV com base neles. Dizer o contrário é não perceber como se desenvolve uma ligação com uma marca. A Lucasfilm precisa de Star Wars e Indiana Jones. A Marvel precisa de algumas das suas principais personagens. Os estúdios estão comprometidos com os cinemas porque precisam de desenvolver essa propriedade intelectual. Claro que haverá mais atenção aos serviços de streaming, porque é isso que determina o preço das ações das empresas. São empresas cotadas. O dinheiro não se faz com filmes ou séries, mas com o preço das ações. E, atualmente, Wall Street gosta desta ideia de investir em serviços de streaming.
E faz sentido?
Acho que muitas pessoas se esquecem de que o cinema é um formato e modelo de negócio bastante testado. Sobreviveu por mais de 100 anos e já atravessou períodos piores. As pessoas acham que isto é terrível – e é -, mas comparado com outras crises, outras pandemias e guerras mundiais, isto é apenas um pequeno obstáculo.
Acha então que a pandemia não mudou a natureza do negócio?
Acelerou o que já estava a acontecer. A única coisa que talvez tenha mudado é que criou um momento em que os filmes de Hollywood não estavam disponíveis e havia uma oportunidade que, infelizmente, não aproveitámos na Europa. Na China, há agora dois filmes, “Hi, Mom” e “Detective Chinatown 3”, que fizeram mais de 600 milhões de dólares nas bilheteiras ao mesmo tempo [“Hi, Mom” já ultrapassa os 800 milhões]. Ambos são comédias, um mais de aventura. Quando se diz “as comédias já não são bem-sucedidas no cinema”, o que querem dizer é que as comédias já não são bem-sucedidas nas bilheteiras dos EUA. Nem em Hollywood alguma vez dois filmes fizeram mais de 600 milhões ao mesmo tempo em receita doméstica. E os cinemas chineses só estavam a 3/4 de capacidade.
A paragem de Hollywood criou um vazio.
Sim, há um vazio e as pessoas estão a pensar como podem preenchê-lo. Esses dois filmes são um exemplo. Mas “Demon Slayer”, no Japão, fez mais de 300 milhões de dólares, a maior receita de sempre, também durante a pandemia. Acho que isso não é um acaso.
Podemos estar a viver uma inversão do que aconteceu na pandemia de 1918, que marcou a ascensão de Hollywood face ao resto do mundo?
A “Gripe Espanhola” aparece no final da I Guerra Mundial. A Europa tinha sofrido uma devastação catastrófica e a produção de filmes era um problema, porque muita gente morreu e alguns estúdios estavam destruídos. Nos EUA, no entanto, não tinha havido essa destruição. Após a guerra, os filmes europeus eram tão populares como os americanos, talvez até mais. Eram ainda mudos, portanto a questão da língua não se colocava. Quando as pessoas começaram a pensar em recomeçar a vida, a pandemia chega e afunda qualquer possibilidade de a Europa acompanhar Hollywood. É nesse período que muita da produção passa de Nova Iorque para a Califórnia, a longa-metragem torna-se no produto principal (o filme de 90 minutos) e, a seguir, o som é introduzido. A pandemia matou a possibilidade de o cinema europeu competir com Hollywood, agora pode acontecer o contrário com China, Coreia, Japão, Indonésia, Nigéria… Países com populações muito grandes, cujas indústrias podem beneficiar muito com a falta de grandes filmes de Hollywood em 2020 e 2021. Claro que, quando regressarem, esses filmes vão continuar a ser muito populares, mas parece-me que algo mudou. O sucesso daqueles dois filmes chineses não teria ocorrido noutra situação.
Quando falamos de crise do cinema, estamos a falar apenas de uma crise no Ocidente?
Exato. Fico um bocado exasperado com alguns artigos. Quando as pessoas de Hollywood dizem “temos um problema”, o que querem dizer é que ELES têm um problema. Dizem “temos”, porque acham que são o centro do mundo. Antes da pandemia, os filmes de Hollywood só representavam 25% da receita de bilheteira. Quando se diz “as pessoas já não vão ao cinema”, estão a falar do quê? Elas estão a ir em números recorde na Ásia. Hollywood adora entrar em pânico, ter medo de alguma coisa. Se há um novo filme, perguntam logo “porque é que não fazemos um filme igual a esse?!”. Temos de separar o que se passa nos EUA, onde há uma mudança na relação do público com o cinema, do resto do mundo.
Olhando então para EUA e Europa, fazem sentido as críticas que sugerem que as salas de cinema não fizeram o suficiente para atrair as pessoas?
Sim. Mas não acho que seja à volta de tecnologia. Se estivermos a falar de Itália e Portugal, onde os cinemas são relativamente pequenos, é difícil investir muito. Novas tecnologias são boas, mas muito caras. Por exemplo, conheço muito bem a Dolby, escrevi um livro sobre a empresa. A Dolby inova frequentemente com som e imagem, mas essas coisas são muito caras. Não é expectável que um pequeno cinema possa gastar meio milhão de euros nisso. Quanto às grandes cadeias, deram grandes passos em frente nos últimos 15 anos para melhorar a experiência de visionamento. Na China, onde a IMAX tem mais écrans do que em qualquer outro país do mundo, o CEO da empresa disse que esperava que, assim que tudo abrisse, as coisas estivessem ótimas. “Ah eu vejo melhor o filme em casa.” Não, não vê. A não ser que vá a cinemas muito maus. Há espaço para melhorar? Claro que sim. Mas, se calhar, temos de olhar para políticas de Bruxelas que apoiem a inovação no cinema. Vários programas ajudaram na transição de película para digital. Acho que precisamos de algo semelhante, se quisermos manter a qualidade.
Quando falamos de streaming, existe uma narrativa de que ele está em concorrência direta com o cinema. É assim? Ou um estimula o outro?
A palavra “narrativa” é chave. Há interesses por detrás de cada narrativa e há muita gente interessada em que cinema e streaming seja um jogo de soma zero. Veja-se a pirataria. “Avatar” foi o filme mais pirateado de sempre, ao mesmo tempo que foi o filme mais bem-sucedido de sempre nas bilheteiras. Quanto muito, uma coisa ajudou a outra. Claro que a pirataria é ilegal. No streaming vs cinema, a questão é quem consegue pagar? O streaming é um serviço barato, mas se começar a juntar 2/3 serviços pode começar a ficar mais caro. Mas a minha preocupação é mais que sejam sempre as mesmas pessoas a determinar o que é “bom”, o que ajuda a explicar porque é certas coisas são bem-sucedidas nas bilheteiras. Não tenho nada contra filmes de super-heróis. Adoro alguns, odeio outros.
Não vamos falar do “Snyder Cut”.
Estou só a dizer que não estou no campo do Martin Scorsese. Nos EUA, Reino Unido ou numa grande cidade europeia, é mais caro ir ao cinema e há tantos filmes que apenas uma pequena fração da população os consegue ver. Antes, havia um grande filme por mês, agora parece que há um a cada semana.
Nas plataformas de streaming, existem tantos filmes e séries novas, que se cria uma espécie de ansiedade por não se conseguir ver tudo.
O streaming ainda não atingiu uma crise. Não sabemos como irá reagir quando isso acontecer. O cinema já teve dezenas de crises, tal como a televisão. Essa crise pode chegar por aquilo que acabou de dizer: as pessoas ficarem sobrecarregadas com demasiada escolha. Há investigação que mostra que, quando se dá muita possibilidade de escolha, as pessoas congelam e acabam até por consumir menos. A Netflix tem de diversificar o negócio porque, quando houver uma crise, os investidores vão dizer “ok, foi divertido, mas vou meter o meu dinheiro noutro sítio”. Eles não podiam querer saber menos da Netflix, querem saber do seu dinheiro. Os estúdios são liderados por pessoas que, em geral, sabem aquilo que estão a fazer. Às vezes têm de falar para os investidores porque, a cada três meses, têm de lhes explicar o que estão a fazer com o dinheiro.
Essa lua de mel pode estar a acabar para o streaming? Há cada vez mais pessoas a optarem pelos serviços com os quais querem mesmo ficar, abdicando de algumas das plataformas.
Acho que isso vai acontecer nos próximos 5 anos. Nos EUA, há Disney+, Hulu, ESPN (tudo da Disney), Amazon, Netflix, HBO Max, Paramount+, Apple TV… E o problema não é só o preço. Eu nem sei onde está aquilo que quero ver e passo uma meia hora à procura. A TV por cabo foi bem-sucedida porque simplesmente estava lá. Não estamos habituados a este nível de fragmentação.
E a falta de curadoria? O facto de nos mostrarem aquilo que acham que nós vamos gostar.
Essa pode ser outra fonte de crise: as pessoas sentirem que estão sempre a ver a “mesma coisa” uma e outra vez, porque as recomendações dos algoritmos não abrem horizontes. Pode parecer que não estou a ver nada de interessante. Mas claro que há diferenças entre estas empresas. A Apple e a Amazon não precisam de streaming. Têm-no porque as ajuda a manter as pessoas com eles. A Disney tem o reconhecimento e uma grande história por trás de si. Eu digo às pessoas da Disney que elas têm de perceber que são o farol [da indústria]. Depois tem a HBO Max, que ainda ninguém percebeu bem a relação que terá com a Warner Brothers. Por último, a Netflix. E é aí que eu acho que pode haver crise. Não tenho nada contra a Netflix, têm pessoas muito talentosas. Mas não têm nada para onde recuar. Apple e Amazon têm outros negócios, a Disney é forte e quase metade da sua receita vem dos parques de diversões. Na Netflix, o que acontece quando as séries e filmes regressarem aos seus criadores, ao mesmo tempo que o preço do serviço continua a subir? As pessoas podem começar a pensar “será que preciso mesmo de Netflix?” Basta que falhem por alguns trimestres a meta de subscritores para alguns investidores pegarem no dinheiro e irem para outro lado.
Mas a Netflix tem tido um papel interessante. Produzem muito e nem tudo é ótimo, mas foram os únicos a dar 200 milhões a Martin Scorsese para ele fazer o “Irishman”, compraram o “Roma”. É só para ganhar o óscar de melhor filme?
Orson Welles disse que o inimigo da arte é a ausência de limites. É engraçado ter sido ele a dizer isso, porque ele não queria limites nenhuns. A Netflix tem sido ótima a apoiar realizadores a fazerem filmes que, de outra forma, talvez não fossem produzidos noutros estúdios ou, pelo menos, seriam de forma diferente. Mas a ausência de limites talvez seja um problema. A Netflix pode ter de mudar esse paradigma. Os estúdios costumavam fazer 15/20 filmes por ano, a Netflix parece que faz 20 por semana. Não é possível supervisionar isso tudo, nem sei se há realizadores suficientes. E onde os vai fazer? Os grandes estúdios em Londres estão alugados por 10 anos. A Netflix é gerida por gente muito inteligente, mas não sei se o modelo é sustentável. Eles não divulgam quantas pessoas viram o filme. E, quando o fazem, sabe como é calculado? Contam quem vê os primeiros dois minutos.
Esse é um ponto interessante. Essa falta de informação sobre audiências muda a forma como a indústria olha para si própria? Ela sempre cruzou a dimensão artística com o sucesso comercial.
Hoje, alguns estúdios também deixaram de partilhar os dados de bilheteira, o que é muito preocupante. Estão a tentar fazer como a Netflix. Imagine que o novo “Missão Impossível” não faz assim tanto dinheiro e a Paramount decide não dar os números.
Há um tipo de filme que parece estar em decadência nos EUA e na Europa. Os grandes filmes-evento continuam a ter público e os mais pequenos talvez mantenham os seus nichos, mas os filmes médios têm dificuldades em ser produzidos. Os canais de streaming não podem ajudar nisso?
Gostava de estudar isso melhor. Sempre que alguém de Hollywood me diz que algo “está a acontecer”, gosto de verificar. Quando comecei a trabalhar com as pessoas da Academia, olhei para os dados de bilheteira. Analisei os últimos 20 anos e, depois, os 20 anos anteriores, quando não havia Internet nem streaming. O cinema foi mais popular entre 2000 e 2020 do que entre 1980 e 2000. “Hi, Mom” e “Detective Chinatown 3” são comédias e fizeram, somados, mais de 1,2 mil milhões de dólares. Mas é verdade que os estúdios parecem estar a ter mais dificuldades em promover esses filmes “médios”. Hoje, se o filme custa 100 milhões de dólares a produzir, vai gastar perto disso em marketing. Antes, gastaria 20 milhões. É muito dinheiro. A Marvel pode fazê-lo com “Endgame”, mas uma pequena comédia consegue? O que não quer dizer que os géneros estejam mortos.
Como assim?
O que constitui sucesso? Hollywood teve sempre cuidado para não o definir. Ninguém sabe o que isso quer dizer. Posso dar exemplos de pequenos filmes que custaram 7 ou 8 milhões a produzir e fazem 20 milhões nas bilheteiras. Acho que o problema não é o género do filme, mas o preço. Nalguma altura teremos de parar com esta loucura de ter o mesmo preço, independentemente do custo do filme. Nenhuma indústria do planeta faz isso. Imagine que um Fiat 500 custa 10 mil euros e um Mercedes gigante também. Como é que isso é possível? “Endgame” e um filme com orçamento de 7 milhões não podem custar o mesmo. Temos de ser mais inteligentes do que isso. O cinema nasceu com a equação: vender muitos bilhetes por pouco dinheiro. Agora, essa equação inverteu-se para poucos bilhetes por muito dinheiro. Claro que, se for ver um Porto vs. Manchester United, vai gastar dez vezes mais, mas não é a mesma coisa. Ir ao cinema é caro.
Fez uma apresentação à Academia sobre o que deve ser considerado um filme. Tem alguma atualização?
A Academia é muito mais flexível em relação àquilo que constitui um filme que se possa qualificar para um óscar. E faz sentido. Não há razão para sermos muito conservadores. O “Irishman” é obviamente um filme. Porque não deveria qualificar?
Mas não esteve nos cinemas.
Sim. Nós “vamos” ao cinema. É uma atividade social. Sentamo-nos no escuro com outros estranhos a partilhar uma experiência. Se não faz isso, pode ser um filme, mas não é cinema. Ao ir para o streaming, escolhe limitar o seu impacto social. Algumas pessoas discordarão e dirão que a TV pode ter mais impacto social e cultural do que um filme. Percebo o ponto. Mas, para mim, é preciso cumprir esse critério.
Não está a dizer que é mau, mas que talvez seja diferente.
Não é talvez, é mesmo diferente. “Nomadland” é um grande filme. Se a Netflix tivesse feito o “Nomadland” seria um grande filme na mesma. Percebo a questão do preço e da conveniência, mas ver filmes em casa é muito distrativo. Há telemóveis a tocar, chá para fazer, ir à casa de banho.
Não há aqui uma ajuda à democratização da arte? Provavelmente muito menos gente teria visto “Roma” se não estivesse na Netflix.
Mas assim voltamos à questão do jogo de soma zero. É um falso argumento. Pode ter o “Roma” no cinema na mesma e num serviço de streaming. Não sei porque é que tem de ser uma coisa ou outra. Percebo que, se calhar, “Roma” não teria sido feito se a Netflix não pagasse. Mas aí voltamos à questão de Orson Welles. Se calhar, Alfonso Cuarón não o teria feito como fez, mas até poderia ter feito um filme melhor, mais pequeno. Se calhar, com 100 milhões, Scorsese tinha feito um “Irishman” melhor. Os estúdios – Disney, Warner, Universal – têm as cartas todas nas mãos e têm grandes responsabilidades. Se decidirem que só podem ter nas salas de cinema os grandes filmes-evento será complicado, a não ser que a Europa e a China preencham esse vazio. Mas estou otimista. “Nomadland” é realizado por Chloé Zhao e o próximo filme dela é “Eternals”, da Marvel. O cinema não está em perigo de expirar. Acho que, eventualmente, vamos ver um grande regresso às salas. Talvez haja um problema de uniformidade do gosto se forem sempre as mesmas pessoas a irem ao cinema, mas acho que isso pode ser resolvido.