Para muitas famílias, 2020 é um ano para esquecer. Para quem estuda a economia, no entanto, é crucial que ele não desapareça da nossa memória, pelas lições que nos deu e pelas transformações que nos deixou. A pandemia obrigou-nos a mudar de vida. Fechou-nos em casa, revolucionou a nossa relação com o trabalho, o consumo e até as nossas famílias. Atirou o mundo para a maior recessão desde a II Guerra Mundial e obrigou os Estados a intervenções inéditas na economia. O que aprendemos nestes 12 meses? Cinco economistas ajudam-nos a responder.
“É impossível não responder que a maior novidade foi a pandemia, a grande mudança foi o ajuste que todos fizeram para se proteger do contágio e a grande lição foi que a nossa prosperidade depende do contacto com os outros e do comércio entre todos”, afirma Ricardo Reis, professor da London School of Economics. “No que diz respeito às instituições económicas que afetam Portugal, a grande mudança foi a emissão conjunta de dívida e o pacote de resposta à pandemia”, assim como “mudanças no enquadramento orçamental da União”, acrescenta.
A mesma opinião tem Fernando Alexandre. Recém-nomeado vice-presidente do Conselho Económico e Social, elege como principal acontecimento económico do ano “a resposta das instituições europeias – Comissão Europeia e Banco Central Europeu – à crise económica provocada pela pandemia Covid-19”. “Num contexto de enorme aumento dos défices orçamentais e das dívidas públicas e de grandes necessidades de liquidez, o BCE assegurou a estabilidade dos sistemas financeiros e, através de programas de compras massivas de ativos, o financiamento a baixo custo dos Estados”, explica o economista à EXAME, destacando também a capacidade de liderança de Ursula von der Leyen. “A Comissão Europeia aprovou um plano de recuperação de grande fôlego, financiado com dívida a emitir pela própria UE. Ambos os instrumentos implicam uma grande partilha de risco entre os Estados-membros, a um nível que, no início de 2020, pareceria, à generalidade dos analistas, impossível de alcançar.”
Recorde-se que, no arranque da crise pandémica, a coordenação entre os países europeus parecia uma miragem, assistindo-se a encerramentos unilaterais de fronteiras, défices de solidariedade (por exemplo, com material médico) e o regresso às noitadas de negociações e às declarações inflamadas entre chefes de Estado (lembra-se do “repugnante” de António Costa?). Porém, no final do processo, acabámos com um acordo para um fundo comum de recuperação, uma inédita emissão conjunta de dívida, regras orçamentais suspensas e um BCE interventivo.
Além de ajudar a estancar a hemorragia da crise, a ação concertada via fundo de recuperação – que escapou a um veto de Hungria e Polónia nos últimos dias de 2020 – contribui para uma retoma mais homogénea da economia europeia e para evitar a repetição do cenário da crise anterior, com uma animosidade crescente entre os Estados-membros.
“O sucesso desta nova abordagem da UE, que requer uma recuperação razoavelmente simétrica dos estados-membros, abrirá o caminho para uma maior centralização da decisão política em Bruxelas”, antecipa Fernando Alexandre. “Ao invés, uma recuperação assimétrica dos estados-membros colocará os que tardarem em recuperar debaixo da vigilância de Bruxelas. Neste caso, será de esperar o regresso da acrimónia que caracterizou o período da crise das dívidas soberanas, com os riscos daí decorrentes para o projeto europeu.”
Os poderes do Estado
Seja com fundos nacionais ou comunitários, a saída da crise está a obrigar os Estados a exercitar os seus músculos, com injeções de dimensão inédita na economia, dos cheques enviados por Donald Trump, ao lay-off simplificado em Portugal. As mudanças de comportamento e as ordens de confinamento significaram que o setor público teve de manter a atividade à tona durante meses.
Para Ricardo Paes Mamede, esse é o principal ensinamento do ano passado: a “importância do Estado para o bom funcionamento das economias e das sociedades”, algo que “as sociedades modernas relembram em momentos mais agudos de crise”. O professor do ISCTE nota que, com a chegada da pandemia, “tornou-se evidente a importância dos serviços públicos de saúde, mas também de educação e proteção social”. “Mas não só. Os Estados foram chamados a apoiar as empresas e o emprego. A organizar o abastecimento, a produção e a distribuição de bens e serviços essenciais. A financiar os esforços de pesquisa de vacinas e tratamentos para enfrentar o vírus”, acrescenta.
A expansão dos poderes do Estado foi inédita um pouco por todo o mundo. Em Portugal, a despesa pública deverá ter ficado muito perto de 50% do PIB e, em abril, entre funcionários públicos, apoios ao lay-off, à família e a recibos verdes e beneficiários de subsídio de desemprego ou de doença, o Estado português já estava a pagar ou comparticipar o rendimento de 2,3 milhões de portugueses. Houve apoios a fundo perdido para empresas, a TAP foi resgatada, o SNS foi reforçado e a dívida pública atingiu o valor mais elevado de sempre, a rondar os 135% do PIB. Os movimentos das pessoas foram restringidos como nunca.
Ainda é cedo para compreender todas as consequências (positivas ou negativas) desta expansão de poderes, mas o protagonismo do Estado chega numa altura em que a academia e as organizações internacionais parecem ter executado definitivamente uma viragem no porta-aviões intelectual da política orçamental. Entre novos desenvolvimentos económicos (juros muito baixos e inflação controlada), políticos (ascensão do populismo) e acesso a mais informação, estamos cada vez mais próximos de um novo consenso: os Estados podem gastar mais do que se pensava.
“A principal grande ‘novidade’ é a incorporação no mainstream de que (certos) Estados têm capacidade para continuar a gastar e incorrer em défices mesmo que tenham níveis de dívida pública muito elevados”, sublinha por email Miguel Faria e Castro, economista da Reserva Federal de St. Louis. Reconhece que é uma resposta “enviesada” porque, trabalhando num banco central, é um tema que investiga a fundo, mas também assinala que aquela “novidade” não está entre aspas por acaso. Há alguns motivos para Faria e Castro a considerar uma novidade relativa.
O primeiro é que o tema já vinha a ganhar gás nos meios académicos há algum tempo, com destaque para a intervenção de Olivier Blanchard, ex-economista-chefe do FMI, na American Economic Association, em 2019. Em segundo lugar, “o facto de isto se encontrar muito relacionado com várias mudanças de paradigma ao nível de política monetária: o aceitar de um “novo normal” em que os bancos centrais levam a cabo grandes quantidades de estímulo sem tal resultar em inflação em bens de consumo (mas possivelmente inflação em activos financeiros)”, explica. Essa intervenção é feita através da compra de dívida, o que permite aos Estados aumentarem o seu endividamento enquanto veem os juros continuar a cair.
Ao mesmo tempo, Faria e Castro associa esse fator “à ‘perda de vergonha’ em termos de coordenação entre políticas orçamental e monetária”. Algo que, ainda há poucos anos, seria considerado uma heresia. “Isto tinha-se tornado numa espécie de tabu, pois temia-se que pudesse hipotecar a independência dos bancos centrais. Mas a maior abertura e transparência na coordenação começou com a crise de 2007-08 e certamente intensificou-se este ano com grande coordenação nas respostas à crise gerada pela pandemia.”
Por tudo isto, o economista avisa que a conclusão de que os Estados podem gastar mais não se aplica a todos os países. “Paises em desenvolvimento ou com instituições mais fracas/pouco credíveis ainda não se podem dar ao luxo de incorrer neste tipo de privilégio. Isto é um fenómeno que se circunscreve às economias desenvolvidas: Japão, EUA, zona euro, Reino Unido, Suíça, etc.”
Ainda assim, o contexto pandémico colocou estas lições progressivas em fast forward. Uma espécie de turbo na mudança de paradigma. “Aquilo a que assistimos em termos políticos foi um muito maior consenso em termos de necessidade de intervenção do Estado através do espectro político, tanto nos EUA como na Europa. Naturalmente pessoas de esquerda e de direita discordarão de alguns dos detalhes das intervenções, mas ninguém nos EUA em março de 2020, por exemplo, colocou em causa o maior pacote orçamental desde o New Deal mesmo numa situação em que a dívida pública está nuns históricos quase 100% do PIB”, conclui.
Nesse sentido, 2020 trouxe também a morte – ou, pelo menos, a entrada em coma – da austeridade como estratégia de saída de uma crise. Pode ler mais sobre isso aqui.
Declínio das cidades
Há ainda uma série de mudanças que parecem mais afastadas no coração do debate económico, mas que podem mudar radicalmente a forma como nos organizamos coletivamente para produzir bens e serviços. Susana Peralta, por exemplo, destaca como uma alteração possivelmente estrutural à qual devemos estar atentos nos próximos anos: o papel dos grandes centros urbanos.
“As cidades, pela sua densidade e tipo de atividade, concentraram riscos de saúde e também riscos económicos. Temos observado um êxodo para zonas rurais. Teletrabalho e a própria telecultura (a quantidade de eventos culturais, mas também conferências, etc. que agora há online) potencia isso”, explica a professora de Economia da Nova.
Num paper recente que escreveu com Bruno Carvalho e João Pereira dos Santos, conclui que os municípios urbanos foram mais penalizados economicamente pela crise pandémica, devido às mudanças de perfil de consumo. “Havendo menos pessoas a viver nas cidades e trabalhar no centro, isso pode alterar muita coisa no comércio de rua, na restauração, na própria vida cultural das cidades”, sublinha Susana Peralta.
Claro que esta realidade cava imediatamente um fosso entre mais e menos prejudicados pela crise e entre quem pode ou não mudar-se para zonas de menor densidade populacional. “Isto também vai levantar questões de desigualdade, claro. Quem pode abandonar a cidade? Que tipo de empregos são tele-trabalháveis (sabemos que são os mais high skilled e bem pagos)”, refere a economista. Algumas perguntas podem ser ainda mais complexas e ter respostas desconfortáveis. “Havendo menos vida de escritório, há menos empregos de má qualidade de limpeza, entregas, etc. – isto é uma oportunidade ou uma ameaça para os low skilled? Tudo depende de como a economia se vai reorganizar à volta disto.”
A desigualdade é um tema ao qual os economistas vinham dando cada vez mais atenção. Ricardo Paes Mamede também considera que 2020 o trouxe definitivamente para o centro do palco. “A pandemia pôs a nu problemas que exigem mudanças. Tornou-se claro que os efeitos do vírus são assimétricos, penalizando mais quem vive em condições impróprias, quem se desloca em transportes apinhados, quem se alimenta mal. Os impactos da crise económica afetam mais quem tem contratos precários e os trabalhadores informais”, conclui o economista, assinalando que a necessidade de reforço do contrato social se tornou óbvia, com mais investimento público em serviços coletivos e maior segurança no mercado do trabalho. Essas mudanças, no entanto, “ficam por fazer”.
A incerteza sobre o legado deste ano é uma das dificuldades de fazer este exercício poucos dias depois de 2020 ter terminado. Pode ser cedo para perceber que feridas vão sarar e que cicatrizes carregaremos por muitos anos.
“A nível mundial, fica o lastro da dívida que esta crise deixou, pública e privada, que terá de ser resolvida nos próximos anos. Para a economia portuguesa fica a maior recessão desde que os ciclos económicos são datados no nosso país, mas é ainda uma incógnita até que ponto é que os padrões de consumo e de organização do trabalho vão mudar de agora em diante”, aponta Ricardo Reis.
E estes são apenas os temas que estes cinco economistas decidiram destacar. Num ano com uma crise tão violenta, o que não faltam são histórias económicas às quais teremos de estar atentos nos próximos tempos. Será que o teletrabalho se tornará mesmo mais prevalecente? E qual será o impacto na produtividade? Olharemos para os vínculos precários de outra forma? Na área da Educação, qual será o impacto ao longo da vida que a pandemia terá para as crianças que não tiveram aulas? Que equilíbrio teremos entre o reconhecimento dos méritos da cooperação internacional e na resolução desta crise a pressão para “desglobalizar” a economia?
Poderiam ser escritos milhares de caracteres sobre o desastre que se abateu sobre o setor da aviação, a revolução vivida pelo comércio a retalho e a aceleração da digitalização da economia. Ficou também exposto o fosso entre os mercados financeiros (a bater máximos históricos) e a economia “real” (a viver uma crise histórica).
Por último, é difícil ignorar a ascensão da China ao longo de 2020. O epicentro da pandemia controlou rapidamente o vírus e foi o primeiro a ligar o motor da retoma. Sairá mais forte e mais influente do que nunca desta crise.
Este é o sabor inicial que 2020 nos deixa. Talvez precisemos de mais uns meses para o digerir completamente.