“Estou a pesar as minhas palavras com cuidado: podemos estar à beira de uma mudança de paradigma [na política] orçamental”, escrevia Olivier Blanchard no Twitter, no início de dezembro. Blanchard não é um economista qualquer. É um antigo economista-chefe do FMI e uma das vozes mais influentes no debate económico. A afirmação foi feita após um debate com quatro outros pesos-pesados: Larry Summers, Ben Bernanke, Kenneth Rogoff e Jason Furman. É difícil juntar um grupo de economistas que simbolize melhor o consenso da macroeconomia pré-crise financeira de 2008. Mas aquilo que os ouvimos dizer hoje estava há uma década reservado apenas a vozes consideradas radicais.
A violência do choque económico provocado pela Covid-19 juntou-se a tendências de longo prazo a que começámos a dar mais atenção após a crise financeira de 2008 e à emergência de algum novo pensamento económico. Para a política orçamental, isso significa que é cada vez mais complicado encontrar economistas que achem errado os Estados estarem a atirar dinheiro para as economias infetadas pelo coronavírus. Na crise anterior, principalmente na Europa, não era complicado ouvir defensores dos méritos de um ajustamento orçamental o mais rápido possível, com diferentes graus de convicção, mas que podia ser sintetizado na ideia de “austeridade expansionista”.
O debate que juntou esses cinco economistas não podia ser mais claro acerca da morte dessa abordagem. Organizado por dois dos think tanks mais influentes do mundo, o Peterson Institute for International Economics (PIIE) e Brookings Institution, ele serviu para discutir um novo estudo de Larry Summers, ex-secretário do Tesouro de Bill Clinton e coordenador da política económica de Barack Obama, e Jason Furman, presidente do Conselho de Assessores Económicos também na Administração Obama.
O paper explora o que deverá mudar na política orçamental norte-americana numa nova era de juros muito baixos. Os dois economistas acham que essa alteração é estrutural e defendem que isso exigirá uma revolução na política económica, semelhante aquela que vivemos com a explosão da inflação nos anos 70. Escrevem eles:
Se taxas de juro baixas são boas ou más para o nosso futuro económico depende das nossas escolhas. Como as taxas de juro não podem ficar muito abaixo de zero enquanto o dinheiro existir – e mesmo taxas de juro baixas podem levar a problemas de estabilidade financeira – isto cria um desafio para a economia e especialmente para as tentativas de gerir recessões com políticas monetária contracíclicas. Elas expandem a oportunidade para uma política orçamental expansionista, tornam a dívida mais sustentável e aumentam a quantidade de investimentos públicos capazes de se pagar a si próprios ao longo do tempo. Se esta era de taxas de juro baixas se torna num tempo de recessões mais graves e prolongadas e maiores bolhas no mercado financeiro ou, em vez disso, uma oportunidade para investimento público e crescimento mais rápido dependerá de decisões de política macroeconómica.
Em específico, Summers e Furman argumentam que será necessário: uma política orçamental permanentemente mais ativa, possibilitada pelo facto de os Estados terem mais margem do que julgavam; desvalorizar a evolução da dívida pública enquanto métrica de referência para avaliar a sustentabilidade da contas públicas, sendo preferível olhar para os gastos anuais com o serviço da dívida; e aceitar que certos investimentos se pagam a si próprios.
Todos os economistas presentes no debate partilhavam mais ou menos a mesma opinião: esta é a altura certa para gastar. O próprio Bernanke assumia esse consenso. “Ninguém no painel vai dizer que devemos equilibrar o orçamento nos próximos tempos”, afirmou o antigo presidente da Reserva Federal dos EUA. “Concordo que há muito espaço orçamental e que devemos ser pró-ativos”, sublinhava antes.
Blanchard deu a entender que poderíamos precisar de constantes estímulos orçamentais, se quisermos evitar um crescimento anémico. Como? “Fazer todo o investimento que faça sentido” e “usar a política orçamental para manter [o nível de] procura”, o que significa que “talvez seja preciso ter défices grandes”.
Esta não foi a primeira vez que se especulou sobre o que deve mudar na política orçamental para a adaptar a uma nova era de juros baixos e inflação controlada. Ricardo Reis, professor da London School of Economics, dizia-nos há alguns meses:
Há aqui uma mudança, sim. Mas não foi motivada por uma revolução intelectual. Keynes dizia “quando as circunstâncias mudam, eu mudo de ideias”. É isso que está a acontecer. Estamos a fazer muito mais porque as circunstâncias são diferentes. Há uma nova fase da política macroeconómica. [A partir de 2010] temos duas grandes mudanças: taxas de juro muito baixas; e inflação totalmente controlada. A dimensão do pacote [de recuperação] só foi possível porque as taxas de juro reais estão tão baixas.
Nos últimos anos, tem havido cada vez mais reflexão sobre o que este novo ambiente significa para a gestão das contas públicas. Em 2019, Blanchard já tinha escrito que este contexto permitia que os países acomodassem mais dívida pública do que se julgava anteriormente. As suas contas mostram que a obsessão mundial com o controlo do endividamento do Estado é claramente exagerado e Blanchard até admitia a heresia máxima: “De forma abrupta, a dívida pública pode não ter custos orçamentais.”
Essa possibilidade já tinha sido admitida por economistas do FMI dois anos antes, numa caixa do Fiscal Monitor.
Ora, os juros só continuaram a descer desde que Blanchard escreveu aquelas palavras. Hoje, o economista tem ainda menos dúvidas. “Se não houver constrangimentos do lado dos juros, a dívida tem um custo de oportunidade muito baixo em termos orçamentais e de bem-estar. Se estamos no effective lower bound [os bancos centrais não podem descer mais os juros], então o argumento é que é necessário gastar mais. E a ferramenta são défices orçamentais. Nos EUA, a conclusão é: devemos estar preparados para ter défices pós-Covid. E não podemos excluir novos aumentos de dívida”, afirmou na conferência do PIIE e Brookings.
Vale a pena ver o debate completo a partir da segunda hora deste vídeo:
Lições aprendidas
Este debate nasce também dos erros que são hoje assumidos em relação à crise anterior. Na Europa, os países cortaram despesa e subiram impostos durante essa crise. Essa lição parece ter sido aprendida. Durante a pandemia, a generalidade dos países está a optar por colocar estímulos orçamentais de dimensão histórica no terreno e a prioridade é aplacar primeiro a crise e só depois começar a pensar em reduzir o défice e a dívida. Há limites (Portugal é um exemplo de contenção nos estímulos), mas a estratégia é claramente diferente.
Blanchard foi um dos primeiros a retirar o seu apoio à estratégia de austeridade da crise anterior, quando denunciou a utilização errada dos chamados multiplicadores orçamentais. Hoje sabemos que as medidas de redução do défice prejudicaram muito mais a economia do que aquilo que a troika e os governos nacionais esperavam. Ou seja, a austeridade dói muito mais do que se pensava.
A pandemia e a reação dos governos oficializa a falência da austeridade como estratégia de saída de uma crise. A UE suspendeu regras orçamentais, criou um fundo comum para relançar as economias – a tal bazuca – e, em Frankfurt, o BCE avançou com uma resposta musculada que manteve os custos de financiamento controlados. O FMI, que também fazia parte da troika, já vinha evoluindo para uma posição de ceticismo sobre austeridade e, nesta crise, não se tem cansado de pedir aos governos para gastarem mais.
“Uma lição importante que aprendemos depois da crise financeira é que a política orçamental desempenha um papel essencial na recuperação. E cada aumento da dívida não planta as sementes da destruição. Não significa que devemos abandonar as preocupações com a subida da dívida, eu seria muito, muito cuidadosa com isso”, explica Gita Gopinath, atual economista-chefe do FMI, numa entrevista ao Financial Times. “O ponto é que existem boas formas de investimento público que podem criar empregos, melhorar a atividade económica sendo orçamentalmente prudentes, no sentido de ajudar a descer a dívida para os níveis da dívida em percentagem do PIB. E isso pode ser essencial num tempo como este, em que existe uma grande incerteza que pode travar o investimento do setor privado.”
A OCDE, que também defendeu os esforços de austeridade na crise anterior, também parece abraçar uma nova abordagem para a recuperação da pandemia, com base naquilo que aprendeu desde os tempos da troika. “O erro que foi cometido não foi falta de estímulo durante a depressão de 2009… o erro veio depois, em 2010, 2011 e por aí fora, e ocorreu nos dois lados do Atlântico”, explicou a economista-chefe da OCDE, Laurence Boone, ao Financial Times. “A primeira lição é que devemos garantir que não começamos a consolidar um ou dois anos após a queda do PIB.”
Isso estende-se a alguns dos economistas presentes naquele painel de discussão. Apesar da denúncia dos efeitos da austeridade no episódio dos multiplicadores, Blanchard foi economista-chefe do FMI durante os programas de austeridade na zona euro e nunca disse ser necessária uma “mudança de paradigma”. Rogoff ficou conhecido na crise anterior como um dos rostos que defendeu os méritos de uma redução rápida da dívida pública, incluindo o famoso episódio do “erro de excel”. Não estão sozinhos. Janet Yellen, a escolha de Biden para o Tesouro, foi dizendo várias vezes que estava preocupada com a sustentabilidade da dívida dos EUA, mas agora quer mais estímulos.
Não significa que seja hipocrisia. Como Ricardo Reis dizia, quando as circunstâncias mudam – ou quando temos mais informação -, as ideias podem acompanhá-las. O consenso para o qual estes economistas e instituições parecem convergir é um sinal de viragem na economia.
Gato escaldado
O que está a provocar esta mudança de circunstâncias? Em primeiro lugar, um palavrão de que talvez nunca tenha ouvido falar: estagnação secular. A ideia de que entrámos num longo período de crescimento baixo. Não existe consenso sobre o que está a provocar esse novo ambiente económico, embora tenhamos vários suspeitos: envelhecimento da população, desigualdade crescente, ascensão da economia digital, inovações tecnológicas menos revolucionárias, falta de investimento em educação, entre outros.
São forças estruturais, algumas delas difíceis de reverter por governos e bancos centrais, o que sugere que parte deste novo ambiente pode ser inevitável. Quando conjugado com os mega-programas de compra de ativos dos bancos centrais, isso tem resultado em juros cada vez mais baixos. As obrigações portuguesas a dez anos chegaram mesmo a valores negativos (!). O país que teve de pedir um resgate há dez anos porque não se conseguia financiar nos mercados vê os investidores a assumirem que podem pagar pelo privilégio de lhe emprestar dinheiro (para já, os valores negativos são apenas no mercado secundário).
Contudo, começa também a ser consensual que os bancos centrais esgotaram a sua capacidade de intervenção na economia e que a compra sem precedentes de ativos traz também efeitos secundários negativos (bolhas financeiras, desigualdade, défice de responsabilização política). Mais razões para incentivar a utilização do braço orçamental, em vez de continuar a depender do já cansado braço monetário.
A isto junta-se a já referida rejeição da austeridade. Ela é feita por convicção – ao reconhecer que o combate à crise anterior teve muitas falhas -, mas também porque há um dado novo que ainda não era tão claro há de anos: a ameaça do populismo. As consequências da crise anterior mostraram que os economistas não podem desenhar modelos fechados em torres de marfim. A desconfiança das instituições, descontentamento e, talvez acima de tudo, o medo do avanço de novas forças políticas e movimentos inorgânicos está a empurrar os responsáveis políticos para uma postura mais “mãos largas” na gestão do dinheiro público.
Conseguem imaginar, no atual ambiente político, manifestações violentas como houve por toda a Europa na primeira metade desta década? (A fotografia deste artigo é de um desses protestos em Portugal, de outubro de 2012)
Numa crise tão profunda, é impossível travar totalmente o descontentamento. Mas os governos estão a tentar. Nos EUA, por exemplo, os apoios dados em 2020 superaram o esforço financeiro do New Deal. O colunista Noah Smith resume com piada o novo mantra da política macro: por favor, deem mais dinheiro às pessoas!
Para alguns, pode parecer uma demissão da política orçamental. Em vez de modelos macroeconómicos sofisticados, procura fazer-se o que é mais popular. Mas não é como se a estratégia anterior de gestão das contas públicas estivesse isenta de considerações políticas e até morais (basta ver como eram enquadrados os papeis de devedor e de credor).
No debate no PIIE, Rogoff notava que estas decisões dependem sempre de preferências políticas, mesmo quando a opinião dos técnicos é diferente. “Em todos os World Economics Outlooks que fiz, tínhamos lá a frase “a Europa deve deixar os seus estabilizadores automáticos funcionar…”, afirmou o homem que também ocupou o cargo de economista-chefe do FMI entre 2001 e 2003. Para o momento atual, talvez nem fosse preciso fazer disparar os défices – bastaria uma melhor distribuição dos recursos -, mas seria preciso haver condições políticas. “Se houver maior redistribuição, atua-se sobre o problema e haveria um grande impulso à procura. Isso não acontecerá porque não há consenso, mas de uma perspetiva tecnocrática, seria a primeira coisa a tentar.”
Equilibrar riscos
O ambiente em que estamos a viver pode mudar as expectativas dos eleitores em relação à política orçamental. Qual será o impacto de o Estado português ter sido responsável por pagar salários e apoios a quase metade dos trabalhadores do país. Ou, nos EUA, de o governo federal ter enviado duas ronda de cheques a toda gente. Deixará as pessoas mais exigentes?
No artigo que já citámos em cima, Ricardo Reis procurava moderar as expectativas. Esta crise foi provocada por um fator externo que não pode ser atribuído à irresponsabilidade orçamental de algum país. No futuro poderá não ser assim.
“[Alguns perguntarão]: fomos tão agressivos agora [a intervir na economia]; Porque não continuar a fazê-lo numa próxima recessão? Uma das razões que justificou esta resposta tão agressiva foi o facto de o choque da Covid-19 ter sido tão imprevisto. Não havia uma questão de maus incentivos, nem podemos dizer que partes da economia ignoraram riscos. Isto é invulgar. O moral hazard não foi muito relevante. Noutras recessões pode ser.
E é possível que esta viragem na política macro não dure para sempre. Ainda Ricardo Reis:
A política macro dos últimos anos já tinha sido muito diferente. Como vai ser nos próximos cinco ou 10? É mais adivinhação do que outra coisa. Provavelmente vai ser mais parecido com os últimos anos do que com os anos 1990 e 2000. Mas, daqui a algum tempo, podemos estar a falar de uma contra-revolução keynesiana devido às suas consequências.”
A crítica mais fácil a esta abordagem é notar que as taxas de juro não irão ficar baixas para sempre. Embora muitos economistas antecipem vários anos de juros baixos, mais tarde ou mais cedo eles deverão aumentar. Summers acha que esse argumento é uma falácia “Para a acumulação de dívida, os riscos associados a estagnação secular são muito maiores do que a flutuação das taxas de juro”, defende.
Ou seja, bem pior do que ver os juros subirem, é manter a economia a crescer lentamente. Essa é a grande preocupação: ter anos e anos de crescimento anémico em economias avançadas como os EUA ou Portugal por falta de apoio à procura. E isso é mais preocupante do que juros 1 ou 2 pontos percentuais mais altos. “Temos de pensar na política orçamental com a ideia de que os défices são necessários para atingir o objetivo de pleno emprego, estabilidade financeira e, possivelmente, défices elevados”, acrescentou Summers. Leia-se: neste contexto, ter défices orçamentais *pode* ser uma boa política orçamental.
Ainda Summers: “Num período de taxas de juro muito baixas, que assim podem ficar 10 a 30 anos, esta é uma enorme oportunidade para lidar com grandes défices de investimento. Não aproveitar essa oportunidade é colocar os nossos filhos em risco e também a nossa posição orçamental de longo prazo.”
Este novo consenso entre os economistas pode demorar algum tempo a refletir-se na política. A OCDE, por exemplo, não foi encorajada pelos sinais que vai vendo. “Quando se olha para a comissão para a dívida em França ou a revisão de despesa no Reino Unido ou as discussões na Alemanha, não tenho a certeza que todos os responsáveis política tenham já dado esse salto para um novo enquadramento conceptual sobre a sustentabilidade da dívida… Cabe às organizações internacionais e ministros das Finanças começarem a pensar sobre isso agora”, afirmou Boone, na mesma entrevista ao FT.
O título não podia ser mais claro acerca da sua visão sobre este debate: OCDE avisa que governos devem repensar os limites à despesa pública. A justificação é aquela que fomos dando nestas linhas: juros baixos permitem mais endividamento, os bancos centrais têm problemas de legitimidade democrática (daí terem de ser os governos a atuar), nova austeridade provocaria uma revolta popular e a dívida é sustentável se houver confiança nas instituições. A reação de Blanchard à entrevista:
Não quer dizer que não existam limites de velocidade orçamentais. Para percebermos isso, basta olhar para Portugal, que colocou muitos estímulos no terreno, mas que são tímidos em comparação com uma Alemanha. E é também importante sublinhar que esta história ainda não acabou. Os próximos dois anos serão decisivos para perceber qual será o nível de pressão comunitária para voltar a ajustar os défices. Talvez por isso seja mais indicado dizer que a austeridade entrou em coma do que pronunciar já a sua morte.
Para Portugal, onde contas públicas equilibradas claramente se tornaram num trunfo eleitoral, esta discussão ainda demorará algum tempo a chegar e, provavelmente, será recebida com ceticismo. Mais: é discutível que um país pequeno e já bastante endividado possa ser muito mais agressivo orçamental do que tem sido. Mas o debate é inevitável e bem-vindo.