O mundo está mais perto de chegar a um acordo sobre como tributar os gigantes tecnológicos como a Google e o Facebook. A OCDE anunciou que 129 países concordaram em encontrar uma solução até ao final de 2020 e o plano sobre como o fazer foi aprovado há poucos dias pelos ministros das Finanças do G20, reunidos em junho no Japão.
Os últimos anos trouxeram uma rápida digitalização da economia. Menos volkswagens e coca-colas, mais amazons e facebooks. A diferente natureza das empresas significa que elas conseguem fazer bastante dinheiro em diferentes sem países, sem que, para isso, precisem de ter qualquer presença física, o que traz desafios complexos aos sistemas fiscais, que têm muitas dificuldades em tributá-las. Os países europeus, em específico, não estão contentes com esta transformação e alguns – Reino Unido, França, Espanha… – já avançaram mesmo com novos impostos.
É precisamente para evitar soluções unilaterais que a OCDE está a tentar encontrar um acordo global para o problema. Há duas avenidas principais de reforma em cima da mesa: deixar de depender a aplicação de impostos de uma presença física (onde o produto e serviço é vendido, em vez de onde ele é produzido); e criar taxas de imposto mínimas para todo o mundo.
Há dois meses, a VISÃO entrevistou Pascal Saint-Amans, o homem que tem a responsabilidade por trazer estas reformas a bom porto. O diretor do Centro de Política e Administração Fiscal da OCDE explica como os nossos impostos deverão mudar nos próximos anos e porque está otimista com a possibilidade de se chegar a um acordo global.
Em baixo, segue a versão completa da entrevista, cuja síntese foi publicada originalmente na Visão a 9 de maio.
Historicamente, os impostos têm cada vez mais peso na economia. Vai continuar a aumentar?
Houve três momentos em que o peso dos impostos no PIB aumentou: no final da I Guerra Mundial, no final da II Guerra Mundial e nos anos 70, durante a crise do petróleo. Depois estabilizou, com pequenas subidas. O aumento deveu-se ao crescimento do papel do Estado na economia, em particular os apoios sociais. Embora não haja uma só forma de o países se desenvolverem, há necessidade de um nível mínimo de impostos. É preciso financiar infraestruturas, segurança, justiça, polícia… Cabe à população escolher o seu modelo de sociedade e o sistema fiscal adapta-se. Pode ter um nível muito elevado de impostos, se o modelo for a Dinamarca; e pode ter um nível baixo, como os EUA.
E para o futuro?
Depende dos países. Temos de ver o que vai acontecer nos EUA. Existem algumas tensões. Há pressões contraditórias no Ocidente. Assegurar uma transição “verde” pode exigir que o preço de energia – que não inclui o impacto ambiental – aumente. Por outro lado, os níveis de impostos na Europa já são altos e as pessoas parecem cansadas disso. Basta ver o que está a acontecer em França. Há também tendência para baixar.
Sejam mais altos ou baixos, os impostos provavelmente serão diferentes. Uma das mudanças que parece estar a ocorrer é privilegiar impostos indiretos em vez de diretos. Não há o risco de o sistema fiscal se tornar menos progressivo?
Nos últimos anos, temos visto o crescimento de contribuições sociais e de impostos indiretos. Pode argumentar-se que [estas mudanças] se devem à competição [entre países] nos impostos aplicados a empresas, que os governos tiveram de compensar aumentando o IVA. O IVA é neutro para o crescimento, dá muito dinheiro e “não se vê”. O problema é que não é progressivo e até pode ser regressivo. É verdade que as alterações vão no sentido de menor progressividade. A nossa recomendação anterior era que os impostos diretos eram muito distorcivos, mas é preciso ter em conta o impacto nas desigualdades. Os impostos diretos têm um papel fundamental a desempenhar.
Temos uma economia cada vez mais de serviços e digital. Os sistemas fiscais estão a ficar para trás?
A crise financeira levou os responsáveis políticos a perceber que os sistemas fiscais não estavam preparados. As regras atuais facilitam a evasão fiscal por multinacionais. Por isso tentámos alinhar os impostos com o local onde o valor é criado. Agora, temos de voltar a analisar os limites para uma empresa ser tributada num território. Hoje, implica ter uma presença física, mas é consensual que isso não é relevante. É preciso determinar que há uma presença tributável, mesmo sem presença física. A Netflix é o exemplo perfeito: normalmente não tem trabalhadores nem escritório onde tem consumidores, como Portugal ou França. São tributáveis? Sim, pelo IVA. Isso clarificámos há seis anos. Mas impostos diretos? Não. E achamos que devem ser. Onde é criado o valor da Netflix? Na Califórnia, onde estão as pessoas que fazem a programação e concebem as séries ou em Portugal, onde estão as pessoas que veem? O mundo mudou com a globalização, digitalização. Agora precisamos de ir mais longe.
Está otimista quanto a uma possível solução?
O que as pessoas não percebem é que, ao contrário da Administração Obama, os EUA de [Donald] Trump são favoráveis a uma solução de longo prazo e multilateral. Há 18 meses, eu diria que não havia hipóteses, porque os EUA tinham parado de negociar. Sem EUA não é possível taxar a economia digital. Agora são os EUA que estão a puxar por uma solução, assim como a China. Acho que será encontrada uma solução política até ao final de 2020.
Trata-se apenas de tornar o sistema mais justo ou estamos a falar de montantes de receita relevantes?
Ambos. O que é ser “justo”? Há quem diga que o facto de a Apple não pagar impostos num país não é justo. A Apple responderá que respeita a lei. Mas isso não é bem verdade. Pode ser injusto porque a política fiscal não está a atingir o seu objetivo. As leis fiscais não estão atualizadas e isso faz com que as empresas não paguem os impostos onde deveriam pagar. Queremos realinhar a tributação com aquilo que é suposto ela ser.
Desde que Piketty escreveu “O capital no século XXI”, tem havido mais debate sobre a tributação de riqueza ou heranças, procurando corrigir desigualdades pela via fiscal. Essas soluções fazem sentido?
Já acho há muitos anos que vão aparecer impostos sobre riqueza ou herança, mas isso ainda não aconteceu. É interessante: deviam ser medidas apoiadas pelos pobres e a classe média, mas eles são os principais inimigos dessas medidas, porque têm poucas posses e não as querem ver taxadas. As desigualdades são um tema? Sim. Mas é muito complexo e ainda ninguém encontrou uma forma criar ou aumentar impostos sobre a riqueza sem ter pessoas nas ruas.
Daqui a 30 anos, quão diferentes serão os sistemas fiscais?
Será tudo digitalizado e não será preciso preencher nada. Será mais soft. Quanto à política fiscal, não consigo responder. Alguns dirão que o IRS e o IRC terão desaparecido, mas eu não acredito. Outros dirão que virá aí um imposto sobre riqueza. Não sei… depende do caminho que a sociedade seguir: se aceitará desigualdades ou se as rejeitará violentamente.