Todos os anos, por esta altura, os lóbis organizados e interlocutores institucionais tentam condicionar o Orçamento do Estado, seja em negociações à porta fechada seja pela apresentação de propostas em público. A novidade deste ano é que, pela primeira vez em muito tempo, há um conjunto de propostas de uma entidade, a CIP, que o País está a discutir.
Na sua proposta de um Pacto Social, há 30 medidas, divididas pelos eixos de Crescimento (11), Rendimento (12) e Simplificação (7). Percebe-se a intenção de encontrar um número redondo, mas muito do que ali está não é realmente uma proposta ou uma medida concreta. No entanto, se olharmos para as primeiras três propostas no capítulo Rendimento, a coisa muda de figura.
Na primeira, propõe-se o “pagamento voluntário pelas empresas do 15º mês, até ao limite do salário base auferido pelo trabalhador, sem incidência de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) e exclusão da base de incidência contributiva em sede de segurança social”. Ou seja, nas empresas que optem por pagar esse mês-extra de salário, o trabalhador recebe por inteiro, sem pagar impostos ou contribuições.
Na segunda, a CIP defende “testar em 2024 e 2025 uma medida extraordinária de liquidez para as famílias pelo incremento salarial de 14,75% nos salários, e pela redução temporária da TSU. Este incremento salarial traduzir-se-ia num aumento da liquidez em 4,75%, sendo os restantes 10% incluídos num plano individual de reforma”. Trocado por miúdos, durante um período de teste de dois anos, haveria uma redução da contribuição para a segurança social, com cerca de um terço desse valor a ir direito para o bolso do trabalhador e dois terços para um plano individual de reforma, público. Esta possibilidade de ter um plano individual de reforma até já existe, mas pouca gente o utiliza, por uma simples razão: tem de contribuir à mesma o valor estipulado para o sistema geral de pensões, não podendo optar entre este e o seu plano individual, nem sequer dividir o valor.
Na terceira, a CIP propõe “promover a retenção de talento, isentando de IRS os primeiros 100 mil euros auferidos por um jovem até aos 35 anos”. Não é preciso grande explicação.
De uma penada, os patrões abordam a questão do rendimento dos trabalhadores portugueses; a questão do rendimento e da Segurança Social, das nossas pensões; e do rendimento e da luta contra a fuga de talento jovem.
Sejamos claros, não há almoços grátis, e algumas destas medidas têm de ser mais estudadas, nomeadamente outras nas quais não me foquei aqui e que têm custos eventualmente elevados. Outras escondem perigos de má utilização (por exemplo, se as empresas optarem por dar o 15º mês, que pode ser dado num ano e não ser dado noutro, em troca e em detrimento de aumentos salariais, que ficam para sempre). E não está totalmente claro se a aceitação de umas pressupõe necessariamente a aceitação de outras, como moeda de troca.
Mas há uma coisa que me parece óbvia: estão aqui contributos ricos para uma discussão. Já sabemos que a CGTP, como é deprimentemente previsível, já disse mal de tudo sem fundamentar grande coisa. A UGT parece sentir-se tentada mas desconfiada. Mesmo dentro dos outros representantes empresariais dentro da Concertação Social há fissuras e um eventual mal-estar com este brilharete mediático da CIP.
Espera-se, sobretudo, que haja da parte do Governo uma real vontade de pensar e discutir sem tabus.
Não sendo esse, presumo, o objetivo da entidade agora liderada por Armindo Monteiro, há nestas propostas um efeito sobre o Governo, se este se limitar a dizer não e a fazer mais do mesmo.
Por um lado, a CIP propõe que as empresas que queiram (via o tal 15º mês) até possam gastar bem mais do que gastam atualmente com os trabalhadores, desde que o Estado não vá meter parte desse dinheiro ao bolso. E vira para António Costa e para Fernando Medina o ónus de eventualmente vir a recusar uma medida que os patrões estão em grande parte dispostos a assumir. O Governo foca-se no salário mínimo (como se todos os nossos problemas, nomeadamente a da fuga de talento qualificado, se resolvessem assim), e chuta para os privados a culpa dos salários baixos (sem mexer nos impostozinhos, claro). Perante algumas destas propostas, a CIP vira o tabuleiro e coloca o papel do Estado sob os holofotes: afinal, o que está disposto o Estado a fazer para conseguir desígnios nacionais como subir rendimentos e combater a fuga de talento para o estrangeiro? Não sabemos, mas agora António Costa vai ter de o tornar claro, não se podendo só limitar a dizer que estas propostas não servem.
Em segundo lugar, este documento mostra que a discussão sobre rendimentos e impostos não tem de ser a pobreza franciscana do costume. É, afinal, possível ter sugestões diferentes, estudar caminhos alternativos, pensar fora da caixa.
A CIP não tem exatamente um edifício cheio de quadros brilhantes a fazer contas e a desenhar cenários. Mas foi capaz de pensar de forma criativa. O que nos leva a pensar: se a CIP o consegue, porque é que os partidos e as nossas instituições públicas não conseguem? Não têm competência ou não têm vontade, preferindo restringir a discussão ao salário mínimo, à taxa e taxinha, ao desdobrar dos escalões e às benesses fiscais pomposamente anunciadas com que nos amaciam o lombo dorido da carga fiscal?
Em suma, a CIP deu aqui um bom contributo, e felizmente o País está a discuti-lo. Depois disto, o Estado não pode continuar a fingir que a subida dos rendimentos é algo que lhe é alheio; e é mais difícil que os portugueses se resignem a mais do mesmo, mais ou menos meio ponto, que ninguém sente e não faz mexer o ponteiro.
É possível fazer diferente ou, pelo menos, estudar caminhos diferentes. Os que temos seguido não estão a funcionar. Estará o Governo e o PS (que tem a maioria absoluta, ou seja, o poder) dispostos a pensar sem tabus e sem preconceitos?