David Ballard esteve recentemente em Portugal, a convite da Ordem dos Psicólogos Portugueses e da Confederação Empresarial de Portugal, para falar sobre bem-estar, produtividade e sustentabilidade das organizações. Psicólogo, liderou o programa Center for Organizational Excellence and Psychologically Healthy Workplace na American Psychological Association. Consultor de referência em empresas de todo o mundo, gosta particularmente de trabalhar ao nível dos sistemas, onde diz que a psicologia pode ter um impacto significativo na definição de políticas e na cultura das organizações.
A pandemia veio alterar a forma como as empresas olham para o impacto da saúde psicológica, não só no bem-estar e na satisfação dos profissionais, mas também na produtividade das empresas?
Não sendo uma questão nova, a pandemia colocou um foco sobre ela. De repente, deixou de ser um tema apenas para algumas pessoas que poderiam estar a debater-se com fatores de stresse, e tornou-se um assunto que é relevante para todos. Tornou-se relevante para que as próprias empresas continuassem a operar, o que as levou a reagir rapidamente. Existe um trabalho de campo e normativo que tem décadas – a Organização Mundial da Saúde emitiu também novas orientações após a pandemia – e penso que as empresas começaram a perceber a sua importância. Mas em termos de implementação efetiva, de medição, de conhecer os seus resultados e a qualidade das evidências, ainda está muito atrás do mundo da saúde física e da segurança.
O tema tornou-se mais premente porque existiu uma degradação da saúde psicológica dos trabalhadores com a pandemia?
Pegando nos EUA como exemplo, os níveis pré-pandémicos de casos clinicamente significativos de ansiedade e depressão eram de cerca de 11% da população. No final de 2022, eram de 36% da população. Mais de três vezes os valores pré-pandemia, e esses números são muito semelhantes aos que vemos noutros países, como o Reino Unido, a China, a Austrália e outros. Trata-se de uma combinação de fatores – as pressões e o stresse da pandemia, as mudanças no local de trabalho, nas responsabilidades domésticas, com as crianças em casa – e é difícil perceber o que resulta do quê. Na American Psychological Association também fizemos alguns estudos sobre o impacto das tecnologias de comunicação relacionadas com o trabalho, como emails, mensagens de texto, ou as plataformas de chat, mas aí, curiosamente, encontrámos um mix de pontos negativos e positivos.
Que são…?
Passamos a vida a ouvir falar sobre os pontos negativos e a necessidade de desconectar. E é verdade que pode ser opressor, pode confundir os limites entre casa e trabalho – nunca estamos de folga, respondemos a emails ou mensagens à noite e aos fins de semana. Mas também encontrámos pontos positivos, nomeadamente a flexibilidade que isso deu às pessoas de poderem trabalhar e responder nos horários que lhes fossem mais convenientes. Descobrimos que a forma como as tecnologias afetam os trabalhadores tem mais a ver com quão bem são usadas para atender às necessidades e expectativas de cada um. Se alguém sentir que é algo que tem de fazer, que é isso que é esperado dela, e se isso se intrometer na sua vida, então terá certamente mais pontos negativos. É por isso que é importante que os gestores conversem com as suas equipas e clarifiquem as expectativas que têm, como, por exemplo, que se enviarem um email à noite ou ao fim de semana não esperam uma resposta até ao dia de trabalho seguinte. Mas se eles não deixarem essa expectativa clara, a pressão e as suposições em torno disso levarão a problemas.
Trabalho totalmente remoto ou híbrido, como iremos evoluir?
O que muitos inquéritos nos mostram é que as pessoas gostam de ter a flexibilidade de trabalhar a partir de casa. Com o regresso ao local de trabalho, muitas vezes em modelos híbridos, o que nos contam é que continuam a não gostar das mesmas coisas de que não gostavam antes – de ter de se deslocar, de se vestir para o trabalho, das políticas do escritório – mas gostam do contacto pessoal. E, por isso, os modelos híbridos funcionam bem desde que se use o remoto e o presencial para suportar as funções certas. Não faz sentido chamar toda a gente para o escritório para se sentarem nos seus cubículos e terem reuniões no computador o dia todo. As pessoas ficam ressentidas por sentirem que estão a perder o seu tempo. Há que o fazer de forma ponderada e estratégica. Quando as pessoas estão no escritório, vamos utilizar esse tempo para o tipo de trabalho em que é preciso colaboração e interdependências, ou um tipo de trabalho mais criativo. E aí elas gostam de estar presentes. Mas acho que são processos que vão continuar a evoluir. As empresas devem ser flexíveis na sua flexibilidade. Aquilo que estão a fazer agora pode não resultar daqui a um ano.
São tendências que vieram, portanto, para ficar.
No início da pandemia, temi que fosse algo apenas reativo e que passados alguns meses voltássemos ao “velho normal”. Mas o facto de a pandemia se ter prolongado por tanto tempo, e ter sido tão disruptiva, manteve este tema no centro das atenções e isso começou a mudar a forma como fazemos as coisas. E, portanto, já não era o “estamos a fazer isto para ultrapassar este momento e voltar ao normal”; começou a ser “é simplesmente a forma como fazemos as coisas”. Penso que isso, combinado com muitas diretrizes e com os recursos que apareceram, preparou o terreno para tornar o tema mais permanente. Mas, atenção, não basta colocar um “check” nas caixas corretas. Não basta ter os benefícios corretos, e os programas e as políticas. Eu conheci empresas que têm todos os benefícios e políticas que possa imaginar, e quando pergunto aos funcionários se gostam de trabalhar ali, como é que é o seu dia a dia, eles dizem-me “é terrível”. Não faz parte da cultura, é tudo muito superficial. A verdadeira cultura são as normas, os valores, as crenças e os comportamentos que estão sob toda essa camada. Só são efetivos quando se tornam embebidos na organização, na forma de fazer negócio, no plano estratégico global. Não pode ser algo compartimentado: “Aqui está a sua iniciativa de bem-estar psicológico!”
Os executivos de topo estão suficientemente sensibilizados para este tema?
Acho que existem cada vez mais executivos de topo sensibilizados para este tema, e para o impacto que tem na produtividade e na criatividade das equipas. Quando faço apresentações sobre os resultados de ter uma cultura organizacional saudável, mostro duas colunas: uma que é sobre a redução de aspetos negativos, como o absentismo, a rotatividade, os custos com a saúde dos funcionários, as reclamações, etc.; mas a outra coluna, que penso ser ainda mais importante, tem que ver com melhorar a performance e a produtividade, ser mais competitivo, ser um empregador de referência, melhorar a relação com os clientes. E isso é o que faz o sucesso das empresas.
A necessidade de atrair e reter talentos desempenha aqui um papel essencial.
O que mais ouço atualmente por parte das empresas é sobre a necessidade de atrair e reter talento. Todas as empresas com as quais tenho trabalhado – e tenho trabalhado com muitas tecnológicas – têm esta preocupação, porque existe um mercado competitivo e as pessoas podem ir trabalhar para qualquer lado e, possivelmente, ser mais bem pagas. E a forma de manter estes trabalhadores é pelo ambiente de trabalho, onde têm boas relações e sentem que se preocupam com eles, em contraponto com outra organização que até pode pagar-lhes mais 20% mas onde o ambiente de trabalho não é bom. Essa é a chave.
Quais são os principais fatores de stresse no trabalho e de que forma as empresas podem atuar?
Há muitos fatores de stresse. Não são apenas o excesso de trabalho ou deadlines apertados. São também não ter autonomia ou controlo sobre a forma como exerce as suas funções; podem ser exigências irracionais colocadas sobre si ou expectativas pouco claras; podem ser situações de conflito e relações pessoais negativas. Nas pesquisas que realizei ao longo dos anos, os números caíam consistentemente em 25% a 33% de trabalhadores que relatavam stresse crónico no trabalho. Se pensarmos que uma em cada três ou quatro pessoas da sua equipa se sente sobrecarregada e altamente stressada todos os dias… E quando atingem o estado de burnout isso começa a afetá-los física e mentalmente e, claro está, afeta o desempenho no trabalho. É por isso que os empregadores estão a prestar mais atenção e a perceber que se trata de um investimento, e não de um custo, porque é assim que a organização também se beneficia. Tem menos rotatividade, maior satisfação no trabalho, pode ser visto como um empregador preferencial, pode atrair e reter pessoas melhores. Nas empresas que têm uma cultura de bem-estar – e não é apenas ter um programa ou benefícios, é ter esses valores verdadeiramente incorporados na organização e nos seus líderes –, o nível de motivação dos trabalhadores para apoiarem a organização e fazerem um bom trabalho era o dobro, a probabilidade de um funcionário recomendar essa empresa a um amigo ou familiar como um bom lugar de trabalho era cinco vezes superior, e o número de funcionários que diziam pretender deixar a empresa nos próximos 12 meses era metade, face às empresas que não têm essa cultura. São diferenças brutais.
E como se cria essa cultura de bem-estar nas empresas?
De forma geral, um local de trabalho psicologicamente saudável é aquele que não só protege os trabalhadores de potenciais riscos como também promove os aspetos positivos do trabalho. Os locais de trabalho podem desempenhar um papel muito positivo na vida das pessoas. Podem dar significado às suas vidas, podem ser uma forma de contribuírem para as suas comunidades, de terem boas relações pessoais e de apoio, de crescerem e de se desenvolverem. Acho que existem três camadas: proteger, promover e fornecer o acesso a recursos que ajudem as pessoas a resolver problemas, quando precisam.
De que forma é possível medir a eficiência dessas medidas?
É difícil e os esforços estão consideravelmente atrasados. A maioria das empresas não mede ou não o faz de forma eficaz. Na melhor das hipóteses, estão a rastrear quantas pessoas participam nos programas. E isso é importante, mas não lhes diz se estão a mudar comportamentos ou a ter algum impacto. É também importante perceber se estão a chegar às camadas certas da força de trabalho. E isso implica pensar em questões de diversidade, equidade e inclusão. Porque o que vimos na pandemia, por exemplo, é que teve um impacto maior nas mulheres, em grupos minoritários e em pessoas com rendimentos mais baixos. É preciso prestar uma atenção especial a diferentes grupos. Há empresas a constituírem uma espécie de “grupos de apoio de pares”, que são lugares importantes para envolver esses trabalhadores no desenvolvimento, na implementação e na avaliação de facto das políticas, em vez de existir alguém que decide o que é melhor para eles. Mas é possível medir várias camadas: qual é a taxa de utilização dos programas? Qual é a taxa de resolução positiva desses problemas? Qual é a taxa de sinistralidade? Qual é a tendência de custos ao longo do tempo? Acompanhar também os resultados organizacionais: Qual é a taxa de retenção e de rotatividade? Qual é a relação custo/retorno desses programas? E eu não quero focar demasiado esta questão porque acho que as empresas por vezes se concentram demasiado no retorno do investimento. No fundo, é um equilíbrio entre os resultados de bem-estar dos funcionários e os resultados de desempenho organizacional. Mas a verdade é que o elemento de bem-estar da força de trabalho começa a ser incluído no “S” de ESG [Environmental, social and governance], e começa a ficar vinculado a relatórios que têm impacto nas finanças e até nos empréstimos. Vivemos num tempo interessante.
Temos ouvido falar sobre o “quiet quitting”. É um fenómeno real?
É um fenómeno real, mas não é um fenómeno novo. A terminologia é nova, mas este tipo de coisas acontece há décadas nas organizações. Tem que ver com a psicologia organizacional e com o equilíbrio entre esforço e recompensa. Se as pessoas sentirem que estão a colocar mais numa relação do que aquilo que estão a retirar, elas vão tentar tornar essa relação mais justa e equitativa. E, portanto, ou procuram aumentar a recompensa – ter acesso a mais formação, a mais oportunidades, a um aumento salarial – ou vão colocar menos esforço no que fazem de forma a balancear a relação. É real, mas estas dinâmicas não são novas. E não estou a tentar diminuir o fenómeno, porque é importante. Se existe uma nova geração que está ciente destes desequilíbrios e age perante isso, acho que é algo benéfico.
Outra tendência que tem causado alguma polémica é a semana de quatro dias de trabalho…
Acho que pode funcionar muito bem nalgumas organizações e não tão bem noutras. Tem potencial, mas temos de olhar para os diferentes contextos. Existem empresas onde funciona lindamente. Já se estivermos a falar de uma fábrica, é altamente ineficiente. Existem setores, como a saúde ou a assistência social, que necessitam de suporte 24 horas por dia. Embora nestas funções já tenha visto casos em que simplesmente têm um dia rotativo e assim asseguram a continuidade do trabalho. Outra situação em que a semana de quatro dias não funciona é quando as expectativas dos líderes e dos gestores não se adaptam a esta nova realidade. Já trabalha 60 horas por semana e agora tem de “enfiar” todo esse trabalho em quatro dias. Não é realista. E não é que alguém vá forçá-la a trabalhar durante as horas de folga, mas sabe que se não for assim não vai conseguir fazer o seu trabalho e cumprir prazos. Ou mesmo que consiga, vai chegar a segunda-feira com uma montanha de trabalho e começar a semana já sobrecarregada e stressada.
Como é que vê a evolução da psicologia aplicada no contexto empresarial, nos próximos cinco a dez anos?
Penso que existe uma enorme necessidade de ter psicólogos envolvidos nas organizações. E tendemos a falar destes temas de forma muito focada nos funcionários, mas penso que há aqui também um papel relativo ao governance das organizações. No trabalho direto com os quadros e com as lideranças, num papel de aconselhamento especializado, de apresentação de evidências, para que consigam rastrear os resultados ao longo do tempo.