A Covid-19 obrigou os Estados a exercitar os músculos orçamentais. Distribuição de cheques, apoios inéditos, emissões conjuntas de dívida, intervenção no mercado e evidenciação de necessidades de investimento. Muitos acharam que poderia ser uma tendência passageira, motivada por um cisne negro pandémico, que acabaria por desaparecer. O peso que o Estado atingiu no pico do combate ao coronavírus pode ser insustentável, mas outras emergências (invasão da Ucrânia) e desafios estruturais (alterações climáticas) podem ajudar a que esses músculos não voltem a atrofiar.
“A intervenção pública terá um papel mais forte do que no passado”, sublinhou o Comissário Europeu para a Economia, Paolo Gentiloni, durante um painel de debate no Fórum Económico de Bruxelas esta quinta-feira, 4 de maio. “Não lhe estamos a dar a responsabilidade da transição verde e digital, mas parte dessa corrida será apoiada pelos governos e essa dimensão tem de lá estar, a nível nacional e europeu. Já não estamos na fase de correr para a globalização barata, cadeias de abastecimento baratas, trabalho barato.”
Nadia Calvino concorda. A vice-primeira-ministra e ministra da Economia de Espanha apontou para o crescimento do emprego no seu país como contraste face à crise anterior. “Diferentes países têm medidas e sucessos diferentes na inflação, no crescimento e nos salários. Mas há um ponto em comum: os cidadãos de todos os países estão numa situação de incerteza e ansiedade, o que exige um padrão mais elevado ao setor público. Os cidadãos exigem que sejamos mais eficazes do que no passado”, afirmou.
Liina Carr, representante da Confederação Europeia de Sindicatos, também vê essa ansiedade nos trabalhadores sindicalizados, apontando para o número crescente de greves e manifestações um pouco por toda a Europa. “Não teria sido possível atravessar a crise da Covid e a que estamos a viver sem apoio do Estado. As consequências teriam sido desastrosas”, sublinhou a dirigente da maior confederação europeia, com 45 milhões de trabalhadores e 93 sindicatos, incluindo a CGTP e a UGT. “Esse apoio não foi sempre na melhor direção e uns países usaram-no melhor do que outros, dirigindo mais as medidas ao invés de passarem cheques em branco para toda a gente”, acrescentou.
Para Gabriel Zucman, o que tivemos até agora foram “medidas de curto prazo”, havendo agora “desafios estruturais que temos de enfrentar”. “Provavelmente o maior é a falta de progressividade – e até regressividade – dos nossos sistemas fiscais. Quando olha para todos os impostos, nós pagamos muito. Mas há uma excepção: os muito ricos. Os multimilionários têm taxas efetivas muito mais baixas”, argumentou o economista, que recebeu recentemente a prestigiada medalha John Bates Clark. “Há necessidade de mais receita para abater a dívida pública e combater a inflação? Devemos começar pelos elementos da população que pagam menos impostos”, conclui, referindo-se às multinacionais e milionários.
Má competitividade
O debate tinha como título “um modelo de competitividade assente na coesão social”, e procurava refletir sobre a tensão entre desenvolvimento económico e a proteção e apoio às famílias. Como conciliar? “Com crescimento sustentável”, responde Gentiloni. “Devemos estar orgulhosos da reação europeia e nacional depois de dois cisnes negros consecutivos. Agora, depois de uma recuperação mais rápida e com menor dependência do gás russo, temos dois objetivos: reduzir a dívida e diminuir a inflação. Mas temos uma montanha de investimentos à nossa frente e temos de proteger as famílias.”
Zucman, especializado em desigualdade e tributação de riqueza, e um dos principais responsáveis por estimar a dimensão da utilização de offshores por multinacionais, vê na cooperação fiscal a principal via de atuação. “Competitividade não é um fim em si mesmo. É uma ferramenta para atingir objetivos”, explica. “Há formas de competição que são boas. Por exemplo, países competirem para chegarem mais rápido a emissões zero ou para ter o melhor sistema de saúde. Mas há também más formas de competitividade. A competição fiscal é má. Para a Europa, é um jogo de soma zero ou, pior que isso, soma negativa, porque esses processos aumentam a desigualdade.”
Liina Carr lembrou a atuação dos governos durante a última crise. “A palavra competição arrepia-nos, porque envolve uma corrida para o fundo. Cortar, cortar. Tornar o trabalho mais barato”, disse a sindicalista. “Tem havido muito debate sobre o que está a provocar inflação. Os dados mostram que o crescimento dos lucros e das margens tem sido considerável. Também tivemos um debate intenso sobre regras orçamentais. Para nós, não podemos voltar aos cortes e usar a mesma prescrição da crise de 2008. A austeridade não funciona e só estrangula mais as economias.”
“Fuck GDP”
O Fórum Económico de Bruxelas foi ainda marcado por um protesto climático. Durante o último debate do dia, sobre política industrial europeia – e no qual participava o vice-presidente da Comissão Europeia, Valdis Dombrovskis – duas pessoas subiram ao palco com uma tarja na qual se podia ler “growth kills” – o “crescimento [económico] mata”. “Temos de produzir e consumir menos”, gritaram.
Quando esses manifestantes foram retirados do palco, outros começaram a aparecer entre o público e nas galerias. Dois empunhavam outra tarja com “fuck GDP”. “Ajam agora! A minha geração vai sofrer a maior disrupção de sempre”, gritava outra manifestante na plateia. No final, acabaram aplaudidos por alguns dos presentes.
Questionado sobre as preocupações daquelas pessoas, já depois de todas terem sido expulsas, Dombrovskis defendeu que a União Europeia está a fazer o seu papel. “Estamos a acelerar o Green Deal”, argumentou. “Mas temos de o fazer de uma forma que seja aceite pela sociedade em geral. Só vai acontecer se for socialmente aceite. É bom termos os ativistas connosco, mas temos de ter também o resto da sociedade.”
*O jornalista viajou a convite da Comissão Europeia