Há alturas, até, em que é meio indiferente àquilo a que nos vai saber um vinho, se a história for tão boa que podemos, quase, ignorar a sua proveniência – não é o caso do que vos vou contar a seguir, mas bem que podia ser.
No livro “Le vin et la guerre”, o especialista Christophe Lucand conta-nos como o vinho foi um importante ativo das tropas nazis, que estiveram sempre muito cientes da importância do produto – e que contaram até com a colaboração de muitos franceses para os roubos que foram feitos durante a II Guerra Mundial. Numa altura em que o impensável aconteceu e que a Europa voltou à luta armada, torna-se emotivo – como não? – provar um vinho proveniente de uma das mais icónicas casas vitivinícolas da Crimeia?
Construído no final do século XIX por Semyon Vorontosov, porque o Czar Nicolau II queria vinhos elegantes que fossem dignos dos paços que habitava, o palácio que deu origem à casa Massandra guarda em si a História de revoluções, guerras, crises políticas, egos de governantes, crises económicas, sanções e acordos. E também de nacionalizações, desmantelamentos territoriais e reanexações.
Como não podia deixar de ser, Massandra é também solo fértil para lendas – diz-se, por exemplo, que Estaline teria bebido um vinho semi-doce da Geórgia com Winston Churchill e Benjamin Roosevelt nas imediações do palácio, aquando da Conferência de Ialta, em 1945. Esse episódio não está confirmado, mas é certo que Vladimir Putin recebeu nele Silvio Berlusconi após a anexação da Crimeia – altura em que Massandra deixou de pertencer à Ucrânia e voltou a ser considerada território russo – e abriu uma garrafa de Jerez de 1775. O episódio fez com que o governo ucraniano acusasse a administração de Massandra de peculato, por ter permitido a abertura de uma garrafa tão historicamente importante. Estima-se que seria o vinho mais antigo do mundo preservado em perfeitas condições.
Uma das mais antigas e icónicas adegas daquela região, Massandra é conhecida por ter um espólio incomparável em idade e em valor estimado de garrafas – são cerca de um milhão, com vinhos que podem datar do século XVIII. Foi responsabilidade de Lev Golitsyn, príncipe e viticultor russo, a produção de vinhos com castas como Riesling, Sercial e Pinot Noir e foram as suas garrafas as primeiras a contar nos seus rótulos com o brasão dos Romanov – conseguiu-o nos espumantes e também nos fortificados de Massandra.
A queda de Nicolau II em 1917 mudou o xadrez político, como todos sabemos, e em 1922 Massandra foi nacionalizada e a produção regulamentada e protegida por lei. Na década de 1930 começou a produzir em larga escala, para consumo interno, o que comprometeu, dizem os historiadores, a qualidade dos vinhos.
Naquela casa acumulavam-se, ainda assim, exemplares raros e únicos de vinhos que iam desde Madeiras a Portos, passando por Jerez e Tokaji, e a produção de Massandra tentava imitar cada um deles à sua escala.
O colapso da União Soviética, no início dos anos 1990, ameaçou a casa agrícola com uma falência estrondosa – e o desemprego de 4500 trabalhadores na altura – pelo que a decisão foi a de vender alguns dos seus melhores vinhos a colecionadores do Ocidente. Foi a primeira vez, desde a sua fundação, que Massandra se desfazia de espólio. Nem durante a II Guerra Mundial o stock foi afetado, uma vez que Estaline se encarregou, pessoalmente, de ordenar que toda a coleção de vinhos pertencente a Massandra fosse levada para a Geórgia para a proteger das tropas nazis.
Mas tudo o que pertence a Massandra está sempre condicionado pelas decisões políticas. Assim que a vitivinícola voltou às mãos russas, depois da anexação da Crimeia, a União Europeia e os EUA fecharam as portas às exportações, pelo que só alguns privilegiados conseguem passar as suas portas e provar alguns dos tesouros que por lá se encontram.
Por isso, quando Juan Manuel Bellver, responsável pela Lavinia, surpreendeu todos os presentes numa prova exclusiva de lançamento da garrafeira em Portugal, com uma garrafa de Muscat de Massandra de 1949, percebemos todos uma coisa: íamos ter a oportunidade única de provar um pedaço de História que de outra forma não nos chegaria.
A assinalar praticamente um ano desde a invasão da Rússia à Ucrânia, foi num silêncio bastante emotivo que se abriu “uma garrafa única que nem sabemos se está em condições” para fechar uma prova absolutamente surpreendente.
Depois de vinhos de Jura, um maravilhoso Vin de Constance 2019, um surpreendente Goutte d’Eau Sel de Soleil 2006 e um Riesling de Zind-Hambrecht, entre outros, este Massandra até pode não ter sido o melhor vinho deste flight de vinhos doces – apesar de ser um vinho incrível. Tem notas de frutos secos, muita avelã e, claro, muito mel e uma cremosidade que só a sua vetusta idade lhe poderia conferir.
E foi, claramente, aquele que nos fez ter aquela experiência de que Seely falava. Porque em tempos de guerra da Ucrânia, beber um vinho produzido na Crimeia, é beber um nadinha da História que se contou enquanto se mantém a esperança no futuro daquela que queremos contar.
Brindámos à sorte e ao privilégio com aquele bocadinho de Muscat no copo. Eu, em silêncio, brindei a todos os que continuam a lutar para defender algo maior do que a vida: a liberdade de que todos nós gozamos, livremente, e em paz.
E demos-lhe um AAA, mas avisamos que foi por razões emocionais.