O mercado de fusões e aquisições está num momento fervilhante e com tendência para crescer, avisou Filipa Barreto, durante a Girl Talk deste mês. Até novembro de 2020, e comparando com igual período do ano anterior, as operações de M&A em Portugal cresceram 26,1% em valor, atingindo o montante global de 8,8 mil milhões de euros e garantindo, assim, um desempenho superior à maioria dos países europeus. Os dados foram compilados pela Mergermarket.
O consumo alterou-se significativamente durante o último ano, mas não para direções particularmente surpreendentes. Na verdade, as megatendências já existiam, mas sofreram uma aceleração inesperada por conta da pandemia. Quem já estava de olho no que ia acontecer ganhou uma vantagem preciosa para conseguir adaptar os seus modelos de negócio; quem não estava, ou reage rapidamente – aproveitando o know-how que já existe no mercado – ou corre o risco de desaparecer. “Há quem pense que a área das Fusões e Aquisições (M&A, na sigla em inglês) está mal. Mal? Está bem e recomenda-se”, diz com uma gargalhada Filipa Barreto, Associate Partner da KPMG Portugal.
A especialista acredita que estas operações vão continuar a acelerar durante os próximos meses, sobretudo por via da necessidade de inovação das organizações, e afasta o cenário de operações que procuram exclusivamente o controlo de capital, afirmando que as parcerias são hipóteses que estão em cima da mesa.
As empresas só sobrevivem se fizerem parcerias vantajosas e sustentáveis”, começa por dizer Susana Serrano, CEO da Adalberto, a empresa que saltou para as capas dos jornais por ter sido a criadora da máscara AdTech, a primeira a conseguir neutralizar o SARS-CoV-2. Com mais de 50 anos no mercado, esta companhia familiar está pela primeira vez a ser liderada por uma gestora que não partilha qualquer relação com os donos da estamparia, que fatura cerca de €40 milhões. “Nós não somos donos do know-how. Sabemos o que sabemos, e outras empresas sabem coisas que nós não dominamos. Portanto, se pudermos pegar em todo este conhecimento e potenciá-lo em prol de uma parceria sustentável, isso faz todo o sentido”, conta, lembrando que foi precisamente assim que surgiu a parceria com a MO para a venda das máscaras.
Surgiu “pela necessidade de que isto chegasse a todas as pessoas, e também para ajudar a economia”, especifica, recordando ainda o trabalho feito em conjunto com a Universidade do Minho e com o Instituto de Medicina Molecular João Lobo Antunes, que ajudaram aos testes e à certificação da mesma.
A verdade é que tínhamos apresentado a tecnologia que usámos na máscara na Première Vision, em Paris, em fevereiro de 2020. Já estávamos a trabalhar no tecido antibacteriano quando decidimos fazer as máscaras para colmatar a paragem total de encomendas que tivemos durante a pandemia”, explica ainda a gestora. “O que fizemos não foi mais do que a Adalberto sabe fazer e já estava a fazer e a aplicar num produto que podia ser útil para a sociedade.”
Para Filipa Barreto, a Adalberto é um bom exemplo desta aceleração de disponibilidade para trabalhar em conjunto. “A atitude mais positiva em relação às parcerias começou há alguns anos, no contexto da inovação tecnológica, precisamente porque as empresas percebem que não têm essas competências e começam a apostar nestas parcerias que podem assumir várias formas. Não passam necessariamente por capital, como é o caso da Susana”, nota. “Por exemplo, as grandes empresas — com a dimensão da EDP, Semapa… — perceberam que não vão conseguir ter, dentro delas, as melhores condições para desenvolver a inovação de que precisam. Portanto, criam alguns fundos e vão investindo e comprando participações em startups. Isto dá-lhes agilidade e menos riscos: eu vou investir em 10, mas sei que as 10 não vão resultar; vou ficar a observar e quando perceber qual é a que vai fazer sentido, vou alocar o meu capital de forma mais inteligente”, explica. “Há certas empresas que não vão conseguir fazê-lo” , vaticina. “A máscara funcionou bem na Adalberto, porque isso estava no ADN da empresa. Mas se não estiver no ADN, temos de assumir que pode não resultar”, aponta ainda a especialista.
Susana Serrano dá o exemplo da rastreabilidade dos produtos, uma das tendências de consumo mundiais que se tornaram ainda mais relevantes no último ano. “Estamos a fazer coleções 100% biodegradáveis e rastreáveis. O que significa que eu tenho de começar a estabelecer parcerias logo com quem produz o fio. Acreditamos na transparência, seja no B2B seja no B2C, porque é importante mostrar aos clientes o que estão a comprar e porque estão a comprar, desde o início. Quando dizemos que colocamos um QRCode numa peça é para que as pessoas saibam onde o fio foi produzido, transformado, quanta água consumiu, por onde passou, qual a pegada ecológica… e isto só é possível com parcerias em toda a cadeia de valor”, adianta.
Por seu lado, Filipa confirma a tendência: de acordo com o KPMG, CEO Pulse Survey 2021, um inquérito que a consultora realiza há vários anos junto dos presidentes-executivos, cerca de 61% dos CEO estão a considerar ter operações de M&A nos próximos três anos, com configuração distintas, “e sobretudo ligadas à aquisição destas competências tecnológicas e digitais, para usar na transformação do modelo de negócio e na melhoria da experiência do cliente fina”, revela. A executiva refere que no mercado global de transações continuará a assistir-se a um elevado número de operações no setor tecnológico, telecomunicações, energia e infraestruturas, e que “as mega-trends continuarão a ser o suporte para esta dinâmica de mercado.
A pandemia veio acelerar esta tendência, com a maior prevalência da economia digital e com a consciência de que a sustentabilidade é um fator crítico de sucesso em qualquer indústria. Não há qualquer indústria ou setor que possa ignorar o digital (Inteligência Artificial/IA, automação, data analytics, 5G, convergência entre a mobilidade e a tecnologia, entre outras), o processo de transição energética e a pegada ambiental da sua atividade”, remata. A título de exemplo, adianta ainda, “na KPMG, atualmente estamos a trabalhar em cerca de 20 transações, em áreas tão diversas quanto as infraestruturas, energia, consumer goods, financial services, real estate and leisure, e nos últimos meses concluímos quatro transações com valor médio de €100 milhões. E isto sem considerar as transações de non performing loans (NPL)”.
Desafios e preocupações
Para ambas as executivas, há outra questão fundamental para se conseguir um melhor trabalho em rede por parte dos vários agentes da economia nacional. “Dentro das organizações, há uma cultura que tem de ser mudada para estar alinhada com estes movimentos”, defende Susana Serrano, “porque, quando há mudanças, há sempre uns a quem custa mais, e outros, menos. É muito difícil, também internamente, criarmos este alinhamento para que rememos todos para o mesmo lugar.
A questão da formação, das competências, as pessoas entenderam muito bem porque estamos a mudar, tudo isso é muito importante”, defende. Já Filipa salienta a questão do impacto e da cada vez maior responsabilidade que os consumidores pedem às empresas de cujos produtos são utilizadores. “Há aqui o tema das tendências do consumo e do impacto que as empresas têm na sociedade. Por exemplo, o tema do ESG — melhores práticas ambientais, sociais e de governança, ESG na sigla em inglês, e como são conhecidas internacionalmente — já era importante, mas agora ganha uma importância maior precisamente pela noção de impacto: as decisões de cada organização têm impacto no consumidor final e, consequentemente, na sociedade… Por exemplo, há produtos que não vão acabar. Mas se calhar temos de apostar mais na economia circular, na reciclagem, na forma como estes produtos são produzidos.
As empresas de grande consumo não vão conseguir resolver esse problema, mas terão de trabalhar com toda a cadeia de valor para tentar fazê-lo, porque a empresa de grande consumo vai ter um impacto enorme na sociedade. Mas não vai conseguir resolver tudo sozinha, e essa consciência é também um dos fatores indutores da necessidade das parcerias”, explica.
Oportunidade para transformar
No universo das médias e de algumas grandes empresas, isto começa a desenhar-se na transformação dos modelos de negócio, explicam ainda. Há cadeias de valor que foram ou que serão totalmente alteradas, modelos muito diferentes de negócios que obrigarão as organizações a uma agilidade a que, porventura, não estão habituadas ou para a qual não estão preparadas, e tudo isto vai impactar profundamente o tecido empresarial.
E atenção que “haverá sempre M&A oportunista, que isto é uma sociedade capitalista” esclarece Filipa Barreto com um sorriso. “Agora, aquilo que se perspetiva é que exista um movimento de M&A associado a esta questão de transformação de negócios, e isso vai criar valor. Peguemos precisamente no que estávamos a falar, no tema da descarbonização: se não o considerarem, as empresas vão ser penalizadas pelos investidores e pelos consumidores. O ESG já é uma variável de decisão e pode levar a que o investidor não avance com o seu investimento porque a empresa em questão não cumpre os requisitos de ESG. Se calhar, num espaço de três ou cinco anos, as empresas que não cumpram esses princípios vão ter problemas no seu modelo de negócio, que afetarão a sua capacidade de geração de cash-flow”, avisa, recordando o Green Deal Europeu que está em cima da mesa, bem como os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável. “Vai haver uma legislação muito apertada no que diz respeito à sustentabilidade — e que já foi aprovada pela UE em dezembro”, salienta Susana, avisando que “as empresas que não aceleraram neste último ano e que não tenham isto como política vão ter muita dificuldade em cumpri-la. Vai haver uma obrigatoriedade de aceleração em relação a este tema”.
E, também por isso, a CEO da Adalberto pede atenção à forma como vai ser distribuído o dinheiro que está disponível através do Plano de Recuperação e Resiliência, sobretudo pela indústria têxtil — “e aqui não falo em nome da Adalberto, porque nós fazemos tudo com capital próprio e não temos dívida”, congratula-se. “Preocupa-me imenso a forma como vão distribuir esse valor pela indústria, sendo que as várias empresas estão todas em estágios tão diferentes. Como vão avaliar o valor desse financiamento? Porque planos toda a gente sabe fazer. Mas há aqui uma questão que é relevante, que é a avaliação da empresa com os projetos, porque eles nem sempre casam…”, lamenta. “É preciso ter o histórico das empresas porque é dinheiro que vem para Portugal e que deve ser aproveitado por quem realmente queira fazer e queira criar valor…”
Aproveitando a deixa, Filipa acrescenta que, apesar de os pacotes de estímulo à economia serem sempre questionáveis, “o que nos parece é que os critérios que estão a ser afinados, para os diferentes instrumentos, vão ser diferentes. No PRR, o ponto é esse efeito de arrastamento na economia, a capacidade de chamar empresas que consigam consorciar-se, para garantirmos essa criação de valor, e nessa medida as grandes empresas vão ter de ser chamadas. Não é possível fazer projetos de hidrogénio sem os grandes operadores, por exemplo. E não querendo fazer publicidade, mas aproveitando que aqui estou [risos], na KPMG temos uma área de incentivos que tem imensa experiência na constituição desses consórcios, para que se produza o melhor resultado… como a Susana diz, toda a gente sabe fazer planos de negócios e projeções! Podem é não saber fazê-los de forma a maximizar os investimentos e os fundos”.
EM DESTAQUE
Energia e infraestruturas
Foram claramente os setores vencedores, sobretudo no que se refere ao valor das transações, em Portugal. Destaque para as operações que envolveram a Brisa (€4,1 mil milhões) e a Galp Energia (€1,07 mil milhões), ao superarem os €1 000 milhões. Nota ainda para a aquisição do Grupo Rovensa pelo Partners Group que, entre as operações por parte de Private Equities, foi a transação de maior valor: mil milhões de euros.
60 transações
O volume de transações chegou às seis dezenas, numa altura em que várias organizações estão à procura de outras oportunidades, de se reinventarem para fazer face às atuais dinâmicas de mercado ou, simplesmente, estão a aproveitar oportunidades. Filipa Barreto e Susana Serrano acreditam que esta tendência veio para ficar e que vai continuar a acelerar nos próximos anos.