Mário Jorge Machado, Presidente da Associação Têxtil e Vestuário de Portugal (ATP) traça, em entrevista, o panorama do setor neste momento da pandemia. Pede urgência nos apoios e lamenta que boa parte dos fundos europeus fique nas mãos do Estado, e não em projetos das empresas. Parte de uma entrevista que pode ser lida na edição de março da EXAME.
O Governo vai direcionar 4.600 milhões do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) para as empresas. Isto é suficiente?
Somos um país que cria pouca riqueza. O nosso PIB per capita é baixo. Precisamos muito de instrumentos que ajudem à criação de mais riqueza. Quando nos comparamos com uma série de países, vemos que, nas últimas duas décadas, temos vindo a ser ultrapassados por todos aqueles que estavam do lado de lá da cortina de ferro, que partiram de PIB per capita paupérrimos. Não estamos a dar suporte à iniciativa privada.
Quer dizer que este PRR não vem ajudar?
Vem ajudar, mas põe apenas um terço do apoio nas empresas, enquanto dois terços ficam no Estado. No mínimo, deveria ser meio por meio. Não estou a dizer que o Estado não tem de se modernizar, de investir…
No lado do Estado está a Saúde
Mas a Saúde precisa é que se crie riqueza, que possa ser taxada, e assim se suporte os custos da Saúde. A Saúde é um bem que consome muitos recursos e, para isso, o país tem de produzir riqueza. Porque é que os países mais pobres têm sistemas de saúde débeis? Porque não geram riqueza. E é a parte privada que tem de gerar riqueza. O nosso problema é ter um bolo pequeno, que tem de ser cortado em muitas fatias. Se tivesse um bolo maior, as fatias permitiriam dar mais impostos ao Estado.
Com este modelo de distribuição, estamos a perder uma oportunidade?
O PRR é uma boa oportunidade. Mas nós temos muitas PME e deveríamos ter muito mais grandes empresas. Porque quando se compara o salário medio de uma pessoa que trabalha numa grande empresa com um que trabalha numa PME, estes são sempre muito mais baixos. Ou seja, o valor de impostos que é pago por cada trabalhador é maior numa grande empresa. As nossas leis são inibidoras do crescimento das empresas. Temos 10 milhões de habitantes e o número de grandes empresas por milhão de habitantes comparado com o da Alemanha é 4 a 5 vezes menor. Estamos também muito aquém em relação ao peso que a indústria transformadora tem na nossa economia, que é inferior à média europeia. E o peso do Estado na economia é superior ao da indústria, exatamente o oposto do que acontece na UE.
Em que é que este PRR não cumpre a necessidade das empresas?
Não é não cumprir. É, mais uma vez, o Estado a ficar sempre com a fatia maior para as suas necessidades e para os seus recursos, numa visão de curto prazo. Devia investir mais na iniciativa privada, permitindo que esta seja geradora de recursos. Mas como é o Estado quem recebe e é quem vai fazer a gestão dos dinheiros que aí vêm… Este comportamento tem sido repetitivo ao longo dos anos.
Atendendo ao valor total considera isto insuficiente?
Não posso dizer que seja pouco. Não podemos ser pobres e mal agradecidos. O que digo é que, perante os montantes disponíveis, a sua repartição deveria ser mais equilibrada. E a maior parte dos investimentos que o Estado está a fazer não vai gerar riqueza. Se não geram riqueza, não geram impostos. Um terço vai gerar riqueza e dois terços são um custo afundado. Para os encargos do país, era bom que houvesse mais emprego. E que o Estado não tivesse tanto peso na economia, que não consumisse tanto volume de euros. Só há duas hipóteses: ter um Estado mais eficiente, que não seja esbanjador, e cujo funcionamento custe menos; e ter uma economia com mais pessoas a trabalhar, podendo taxar menos cada uma das pessoas. Porque quando uma empresa paga um ordenado líquido de mil euros, na verdade está a pagar 1800 euros, só que quase 800 vão para o Estado. Para pagar 2000 euros, está na verdade a pagar 4200, mas 2100 são pagos ao Estado. É cerca de metade! Isto é para que se tenha noção de que é muito caro a uma empresa contratar alguém com um salário melhor. Porque o custo para a empresa é enorme face ao rendimento que vai para o trabalhador.
Estas verbas não resolvem as necessidades financeiras com que as empresas se debatem no imediato?
Não. Os programas que ainda estão em vigor previam alguns apoios para as empresas que estiveram paradas, mas que têm de ter quebra de faturação [acima de 25%]. Continuamos com apoios desajustados. O governo está muito lento a reagir. Entrámos novamente numa fase muito complicada da economia, em que só os que estão fechados por decreto têm acesso ao lay off simplificado. E os que estão na fileira industrial parados, e a abastecer os que estão fechados por decreto, estão a ficar com os prejuízos, porque os apoios não estão adequados a essa situação. Se o governo não ajustar medidas, há sérios riscos de começar a haver insolvências a curto prazo. A corda está a esticar, esticar, esticar e, não tenhamos dúvidas, de que em algumas situações vai partir. Pode não ser já agora em março ou abril, mas vão ficar de tal forma fragilizadas que, ao longo deste ano, a situação pode tornar-se muito complicada. E corremos o risco de chegar ao final do ano com valores de desemprego preocupantes. Com muito menos dinheiro do que aquele que se meteu na TAP, podia ajudar-se as empresas a salvar muitos milhares de postos de trabalho.
Com muito menos dinheiro do que aquele que se meteu na TAP, podia ajudar-se as empresas a salvar muitos milhares de postos de trabalho.
Um inquérito da ATP junto das empresas do setor concluiu que 65% terão quebras de faturação de 10% neste trimestre e 30% terão quebras entre 10 e 25%. Logo, a grande maioria das empresas do setor estarão fora dos apoios à retoma progressiva, apenas válido para quebras iguais ou superiores a 25%. Se, por um lado, isto pode ser mau, por outro significa que a grande parte das empresas não foi tão impactada pela crise pandémica quanto se poderia prever. Não é um bom sinal?
É um bom sinal. Mas uma coisa é ter uma quebra de 40% em dois meses. Outra, é ter uma quebra de 20% em quatro meses. Fico com o mesmo problema, perdi o mesmo volume de negócios e tive o mesmo nível de prejuízo. A pandemia está a prolongar-se por muitos meses. E isso é muito diferente de dizer que o apoio é só para quem teve uma quebra de 40% [em dois meses]. Se tenho 4 meses a quebrar 10%, já tenho uma quebra de 40%. Uma empresa que tenha uma quebra de 25% ao longo do ano vai ter fortes prejuízos, vai ter muita dificuldade, vai ter de se endividar para pagar salários, vai limitar a sua capacidade de investir para inovar, vai limitar a sua capacidade de investir em feiras e em novos produtos. Teremos um setor muito fragilizado. Por isso essas empresas também devem ser ajudadas
Pediram também a substituição do termo “quebra das receitas” pela “quebra das encomendas”. Isto não é mais difícil de escrutinar? Qual a vantagem desta troca?
A quebra das encomendas vai-se traduzir na quebra das receitas. Este setor exige rapidez na resposta. E o problema é este: estou em fevereiro, há atrasos na entrega de encomendas, porque estamos todos confinados. Vou chegar ao final do mês com uma quebra de faturação de 20 ou 30 ou 40%. E não posso ter apoio nenhum. Porquê? Não tenho encomendas e só em março é que vou pedir uma ajuda, dizendo que em fevereiro tive uma quebra de 40%. Não faz sentido esperar por março, quando estive parado metade do mês. É o mesmo que dizer estou com febre, mas tenho de esperar 8 dias antes de começar a tomar o antibiótico. Corro o risco de, quando me derem o antibiótico, já estar tão debilitado que já não vai a tempo. Há setores em que as encomendas são dadas para vários meses e não se põe esta questão. Mas no têxtil [não é assim]… Temos de ajustar as medidas aos setores. Porque senão é a receita para que certas empresas fiquem fortemente fragilizadas e sejam criadas condições para o desemprego.
E porque tem havido tão pouco desemprego no setor?
Por dois motivos. Um, é que as quebras que existiram foram concentradas e houve apoio para essa altura. O lay off simplificado ajudou e foi uma medida excecional para salvar dezenas de milhares de postos de trabalho no global da economia portuguesa. Foi uma medida eficaz e bem pensada. O outro é que formar um trabalhador numa fiação, tecelagem ou estamparia são muitos anos de investimento. A última coisa que o empresário quer é perder esse ativo de conhecimento. Estando todos nós convencidos de que vai haver uma retoma, será mais difícil retomar se perder esse ativo. Isto tem sido muito importante. Mas vamos ver o ano de 2020 e a maior parte dos resultados das empresas baixaram ou entraram no negativo. Porque quem está a ficar com os prejuízos são as empresas. A grande maioria dos trabalhadores recebeu o mesmo ou quase.
O grande problema é a liquidez de tesouraria?
É um dos grandes problemas. E é consequência da falta de encomendas. Se os meus custos fixos se mantêm e tenho menos receitas é claro que vou ter um problema de liquidez. Como resolvo? Vou-me endividar. Vou ter de pagar essas dividas mais à frente. E vou ter mais dificuldade em fazer investimentos para me tornar mais competitivo, mais inovador, contratar quadros com outro tipo de competências. Este é o grande perigo, o de deixarmos a economia muito endividada, porque as empresas estão a tentar não entrar em insolvência. Se não ajudamos as empresas, o endividamento vai ser maior e vai ser mais difícil a recuperação. Há um exemplo fácil de perceber: uma empresa que tem 100 trabalhadores, se pedir ajuda para pagar o salário a 30 desses trabalhadores, o Estado tem um custo mensal que é cerca de dois terços. O que dá um valor incomparavelmente mais pequeno do que a empresa ir para insolvência e mandar 100 trabalhadores para o [subsídio de] desemprego, onde podem lá estar um ou dois anos. É muito melhor investimento do dinheiro dos nossos impostos ajudar a pagar o salário às pessoas que não têm agora trabalho, do que mandar a empresa fechar e as 100 pessoas para o desemprego.
Além de que recuperam parte desse dinheiro através do IRS
Exatamente. É melhor ajudar as empresas a pagar salários por causa da pandemia do que mandar empresas para a insolvência.
Sabe se vão ter novamente direito ao lay off?
Uma das situações que temos vindo a falar com o governo é que deveria ser implementado novamente o lay off. Estamos em negociações. O nome que é dado ao mecanismo… Gosto muito do ditado de Deng Xiaoping que diz: não quero saber se o gato é branco ou preto, quero é que o gato apanhe o rato.
Diz isso porque o programa está desenhado para uma retoma, quando afinal o quadro é ainda de confinamento?
Sim. Mas o importante é que chegue o apoio às empresas. E o facto é que o apoio, da forma como está desenhado e pensado para a retoma, não é um programa pensado para empresas que têm uma quebra no volume de encomendas como estamos a ter neste momento. Tem de haver programas desenhados para agora, a economia tem de ser ajudada a aguentar. Se não, os problemas a seguir serão muito maiores. Digo com muita frequência que deveria ser proibido falar de dinheiro do Estado, porque se trata de dinheiro dos contribuintes. As pessoas que estão em lay off estão a viver do dinheiro de todos nós, que estamos a pagar impostos para eles estarem em casa a receber o seu salário.
Isso não é uma forma simplista de ver as coisas?
Não. Quando alguém está em lay off quem está a pagar são os impostos dos salários dos portugueses. Devia ser proibida a expressão ‘dinheiro do Estado’, só devíamos usar ‘dinheiro dos impostos dos portugueses’. Todos percebemos isso de forma diferente. Os anglo saxónicos usam o ‘taxepayers money’. Temos de ter consciência disso. O próprio ministro da Economia, Siza Vieira, disse, e muito bem, que as ajudas de hoje serão os impostos de amanhã. Daí que defenda que é muito melhor utilizar o dinheiro dos impostos pagando para a empresa não ir para a insolvência. Porque senão vamos todos pagar impostos para as pessoas estarem no fundo de desemprego e, então, teremos de pagar muito mais impostos depois. Vai-nos sair mais caro a todos. Por isso, vamos aplicar o dinheiro onde é mais necessário para ajudar a economia. Daí fazermos sempre a analise do pay back dos investimentos.
Precisam de receber o dinheiro até quando?
Agora.
E para já o lay off era suficiente?
Como já vimos, foi a medida mais eficaz para ajudar a salvar empregos. A grande vantagem é que os mecanismos já estão implantados, os processos já estão a funcionar. Aliás, estão mesmo a funcionar [de novo] para as empresas que foram obrigadas a fechar por imposição da lei. O que acontece no têxtil é que há um conjunto de empresas que abastece o retalho. E se o retalho está fechado, os seus abastecedores ficam sem encomendas, mas não foram obrigados a fechar. E ficaram com um problema na mão, que é o que está a acontecer numa grande parte das indústrias. A ATP tem estado em conversações com o governo exatamente para fazer sentir a importância de tomar medidas para ajudar as empresas a aguentar esta travessia dos confinamentos, porque estamos numa situação muito idêntica à de abril e maio do ano passado. E depois, estão mais debilitadas com tudo o que passaram em 2020. Além de estar pior, as empresas estão mais frágeis.