Com uma economia paralisada pelo coronavírus, famílias e empresas viraram-se para o Estado para encontrar proteção e apoio. Apesar dos atrasos, limitações financeiras e problemas de implementação, houve bons exemplos de reação do setor público à pandemia e que permitiram, para já, evitar uma crise tão dramática como na recessão anterior. Dois deles foram: o lay-off simplificado, criado pelo Instituto de Segurança Social; e o programa Máscaras Acessíveis, lançado pela Câmara de Cascais. Entre 75 candidaturas, essas foram as duas vencedoras do Prémio IPPS-ISCTE Políticas Públicas, organizado anualmente pelo ISCTE. De que forma é que ambas se destacaram?
“No caso dos lay-off simplificados, valorizo muito dois aspectos: resposta rápida e de enorme alcance a um problema premente, muito eficaz no seu propósito, que era conter a escalada do desemprego. Foi provavelmente a política com mais impacto em Portugal”, explica Ricardo Paes Mamede, enquanto presidente do Instituto para as Políticas Públicas e Sociais (IPPS) do ISCTE.
O lay-off simplificado esteve disponível para trabalhadores do setor privado cujas empresas tiveram de fechar as portas (totalmente ou de forma parcial) para responder às regras de saúde pública ou que tenham sofrido uma quebra de faturação de pelo menos 40%.
O arranque da medida foi rodeado de alguma confusão, atrasos, constantes acertos para a tornar mais abrangente e algumas dificuldades de operacionalização pela máquina da Segurança Social. Paes Mamede reconhece esses obstáculos, mas lembra que, no ano passado, tinham sido processados apenas 154 pedidos de lay-off. “Como se pega numa estrutura com poucas dezenas de processos para passar a tratar de milhares?”, pergunta, notando que o facto de essas dificuldades terem sido ultrapassadas merece ser valorizado.
Embora não tenha feito parte do júri, o economista elogia “grande capacidade dos serviços para se mobilizarem”, aproveitando este novo programa para melhorar a qualidade da informação sobre os beneficiários, o que poderá agilizar futuras medidas.
A outra política pública premiada foi a distribuição de máscaras pela Câmara de Cascais. O município liderado por Carlos Carreiras investiu 500 mil euros na importação de duas máquinas da China que permitiam a produção de mais de cinco milhões de máscaras por mês.
“A Câmara de Cascais fez algo que nem todos municípios podem fazer. Numa fase muito precoce, fretou um avião para ir buscar máscaras à China, mas percebeu cedo que fazia mais sentido comprar equipamento para as fabricar”, explica Paes Mamede. “Conseguiram produzir máscaras a preços muitos inferiores aos praticados no mercado e criar emprego de proximidade. Tiveram ainda uma capacidade admirável de envolvimento do tecido local no processo de fazer chegar as máscaras às pessoas.”
Como reagiu Portugal?
Se estes são dois bons exemplo, também é verdade que, regra geral, Portugal não é conhecido por um planeamento meticuloso das suas políticas públicas, nem por uma avaliação das mesmas. Paes Mamede nota que, mesmo entre as 75 candidaturas que o IPPS recebeu, nem todas as iniciativas seguiam os passos que seriam de esperar no desenvolvimento dessas medidas. “Há muitas e importantes exceções, mas normalmente a política pública tem uma natureza muito ad hoc em Portugal. A maior parte das entidades públicas está pouco sensibilizada para a importância de um planeamento participativo. E o mesmo em relação à avaliação.”
Ainda assim, o economista faz uma apreciação “moderadamente positiva” da forma como o Estado e as autarquias reagiram à Covid-19. “O aparelho do Estado foi rápido a dar resposta. O SNS deu um salto brutal, houve capacidade de resposta das escolas e universidades e, no campo da proteção social, houve a preocupação de tentar garantir que todos ou quase todos os segmentos estivessem cobertos”, acrescenta.
No entanto, identifica várias “falhas graves”, como a situação dos lares, “que ainda não está resolvida” e uma mobilização “insuficiente” de recursos financeiros que não assegura necessidades fundamentais, deixando dúvidas de que, numa próxima pandemia, tenhamos “um planeamento mais bem conseguido”.
Recorde-se que Portugal é um dos países europeus mais cautelosos nos estímulos orçamentais, apesar de ter uma das economias potencialmente mais afetadas pela Covid-19. Com os fundos europeus a demorarem ainda vários meses a chegar, não é claro se as medidas já anunciadas são suficientes para travar os efeitos da crise, principalmente se estas novas regras de limitação da circulação se estenderem por muito mais tempo.
O que é uma boa política pública?
Não existe propriamente uma definição universal do que é uma “boa” política pública, mas ela tem de responder a vários critérios de avaliação. Paes Mamede sintetiza em três: “tenho de pensar em objetivos, processo e resultado”. Ou seja, em primeiro lugar, ela tem de ter objetivos relevantes. Ter como propósito lidar com um problema existente na sociedade ou uma oportunidade que tem de ser aproveitada. “Tem de ter valor social, com objetivos que valorizem o bem comum.”
Quando pensamos no processo, é preciso ter em conta “a fundamentação da política, legitimação junto dos atores relevantes, seja Estado ou as partes interessadas e procurar ter uma dimensão participativa”, diz o economista. Avançar sem essa consulta e envolvimento mais alargado da sociedade torna a política mais frágil à partida.
Por último, é preciso também que ela seja eficaz. Paes Mamede não concorda que esse deva ser o alfa e o ómega da tomada de decisão – “pode haver políticas autoritárias eficazes, mas eu não as consideraria boas” -, mas reconhece que ele é fundamental e deve ser adotado numa perspetiva sustentável. Por exemplo, “se construirmos autoestradas magníficas num momento em que há muito trânsito, a política pode parecer muito eficaz, mas ela tem de ser mantida ao longo dos anos, ter mecanismo de financiamento, etc.”
O papel do Estado
Desde as primeiras semanas em que foi decretada a pandemia e os primeiros confinamentos que houve bastante debate sobre a influência que o combate ao vírus pode ter na visão que existe sobre o papel do Estado. De um dia para o outro, o governo mandou toda a gente para casa, “fechou” a economia, pagou salários, segurou créditos, criou novos apoios sociais, controlou de forma apertada o movimento das pessoas, decidiu quando “reabrir” a atividade… Esse Estado mais musculado, que fez rapidamente o que antes se achava impossível, irá deixar marcas? As famílias e empresas vão esperar mais do setor público?
“Não acho que o que se passou seja irrelevante. Já não estamos naquela fase de final de março em que víamos economistas liberais a pedir planeamento central, mas percebeu-se a importância da solidariedade coletiva e de uma centralização da coordenação da atividade económica. O valor do Estado ficou mais claro para as pessoas”, refere Paes Maemede.
A chegada das primeiras vacinas é outra oportunidade para referir o papel das políticas públicas. Uma delas, criada pela Moderna, foi 100% financiada por fundos públicos, enquanto a outra, da Pfizer/BioNTech recebeu 375 milhões de euros do governo alemão. Além disso, a investigação que está na base de ambas – a exploração da tecnologia mRNA -, foi também desenvolvida em laboratórios com dinheiros dos contribuintes norte-americanos.
Nos Estados Unidos, os Institutos Nacionais de Saúde gastaram 792 mil milhões de dólares entre 1936 e 2011 no desenvolvimento de biotecnologia e medicamentos. “Na maioria das novas entidades moleculares consideradas prioritárias – os medicamentos mais inovadores – é possível traçar a sua origem até aos Institutos Nacionais de Saúde”, nota a economista Mariana Mazzucato, autora de “O Estado Empreendedor”. Neste caso, a colaboração entre setor público e privado pode ter permitido chegar à vacina mais rápida de sempre.
Paes Mamede cita precisamente o trabalho de Mazzucato para notar que “as farmacêuticas desenvolvem conhecimentos que já existem e têm tradução para medicamentos vendáveis e com garantia de retorno”. “É uma realidade antiga no mundo dos medicamentos: a investigação fundamental tenta responder a problemas que não são óbvios. Além disso, estas empresas sabem que os Estados vão comprar toda a produção que fizerem. Sem esse compromisso, isto não existiria”, explica.
Entre os outros finalistas do prémio de políticas públicas estavam iniciativas como um programa de prevenção da Covid-19 nas prisões, o #EstamosOn com as escolas, a política de mobilidade avançada pelos serviços municipais de transportes do Barreiro e um programa da Câmara do Porto para identificação de contágio em lares de idosos.
O júri é composto pelos professores do ISCTE Maria Asensio, Helge Jörgens e Paulo Marques.
Na edição de 2019 deste prémio, os vencedores foram a Câmara do Fundão, com o projeto “Ubbu – code literacy” (competências de programação digital para alunos do básico); e a Direção de Energia e Geologia, com a Tarifa Social de Energia, que introduziu um desconto automático na eletricidade e gás natural.