A COVID-19 teve o efeito de meteoro que invadiu a nossa atmosfera e nos deixou em estado de choque. De repente entrámos todos em modo de emergência: os serviços de saúde totalmente focados na luta contra o invasor, as famílias recolhidas, a economia (quase) parada.
A concluirmos o segundo mês após o deflagrar da crise na Europa, começamos a ter a (primeira vaga) da pandemia sob controlo e é tempo de tirar conclusões, aprender com o sucedido, colocar os sistemas de saúde a funcionar de novo e relançar a atividade económica tão rapidamente quanto possível (e seguro).
Relativamente à saúde podemos desde já antecipar alguns dos impactos deste período traumático, uns de reação direta ao que vivemos e outros de caráter mais estrutural. Este raciocínio é válido para Portugal, mas também deve ser equacionado em termos europeus e mundiais.
Tendências de mudança
Também se deve dizer que, já antes da COVID-19, havia um amplo debate sobre as novas tendências da saúde e a verdade é que estas não parecem menos atuais agora. Assim, estamos numa fase da história em que o envolvimento do cidadão/doente nunca foi tão determinante e necessário e em que a dinâmica demográfica torna inevitável que demos uma atenção especial ao envelhecimento ativo. Por outro lado, a própria prestação de serviços também está marcada pelos avanços tecnológicos, pela digitalização, pela medicina de precisão e pelo foco no “value-based healthcare”. Concomitante com estas linhas, há, por um lado a perceção clara dos custos crescentes da saúde nas sociedades modernas, a necessidade de avultados investimentos em I&D e a procura das melhores soluções de eficiência.
Para uma explanação mais exaustiva sobre estes temas atrevo-me a sugerir o trabalho que o Boston Consulting Group realizou recentemente para o Health Cluster Portugal.
Voltar à normalidade. Lançar plano de emergência de recuperação da atividade assistencial
Junte-se agora a pandemia a todos estes desafios para aquilatar a dimensão dos nossos trabalhos. Diria que, em Portugal e no curto prazo, o que há a fazer é não relaxarmos a luta contra a COVID-19, voltar à normalidade com segurança e recuperar a atividade. Neste momento já é claro que entrámos numa outra fase em que, garantidas todas as condições de segurança para os doentes e para os profissionais de saúde, devem retomar-se as atividades ainda que de forma progressiva. Como referiu, por exemplo, a Ordem dos Médicos, não podemos esquecer os cidadãos com doenças crónicas como as cardiovasculares, a diabetes ou doença oncológica, e muitas outras, cuja resposta adequada e tratamento imediato não pode ser adiado. É da máxima necessidade que se avance para um plano de emergência da recuperação assistencial. Temos, enquanto país, que recuperar as listas de espera, de recuperar o que deixou de ser feito em março e abril e dar confiança aos portugueses sobre a segurança nas deslocações às instituições de saúde. Os hospitais privados estão disponíveis para esta missão e também para a colaboração que o SNS entenda necessária.
Mudanças estruturais da saúde em Portugal
A situação de partida da Saúde em Portugal apresentava diversas fragilidades. Ainda no passado dia 6 de abril, a propósito do Dia Mundial da Saúde, o INE titulava “Indicadores fundamentais de saúde apontam para melhoria nos anos recentes, embora alguns mantenham níveis inferiores aos médios da União Europeia (UE-28)”, notando também que a despesa correte pública em saúde não ia além dos 6% do PIB.
Veremos os desenvolvimentos, mas acredito que esta crise sanitária e a comoção social provocada levem a que se assuma a Saúde como uma prioridade. O desinvestimento público feito na saúde em Portugal (o valor no PIB cai de 8% em 2009 para 6,3% em 2018) teve claras implicações na oferta de cuidados de saúde, na prevenção, nos equipamentos e no acesso e também impactou fortemente nas empresas que se relacionam com o SNS (atrasos nos pagamentos, preços administrativos, taxas discricionárias, etc). A sustentabilidade do sistema de saúde e as necessidades dos portugueses exigem um aumento do investimento em Saúde em Portugal nos próximos anos. Como a Convenção Nacional de Saúde tem defendido, deve eleger-se a Saúde como uma prioridade nacional e, nomeadamente para fazer face às dinâmicas demográficas, há que evoluir para uma orçamentação plurianual e para uma lei de meios que dote a Saúde dos recursos necessários.
Para além de um correto financiamento do SNS, pilar determinante no sistema de saúde, a sustentabilidade e o acesso dos cidadãos à inovação e aos cuidados de saúde mais adequados deve aproveitar todos os recursos existentes no setor, e nomeadamente a capacidade de investimento e de oferta dos operadores privados. Uma das lições desta crise deveria ser que nenhuma das partes é dispensável quando falamos em saúde e exemplos como o do sistema alemão provam que a complementaridade entre público e privado é uma riqueza de que não deveremos abdicar. Como alguém diria: “Não deve ser preciso mais uma crise para os cidadãos beneficiarem dessa realidade”.
Por outro lado, é uma evidência para os cidadãos, para as autoridades e para os prestadores que o digital tem potencialidades enormes e deve ser explorado em prol da saúde. Desde as teleconsultas e a monitorização domiciliária até aos avanços determinantes em termos de recolha e gestão de dados (ex: registos nacionais de doenças e terapêuticas associadas, registo de saúde eletrónico, plano integrado para as doenças crónicas), passando pelo desenvolvimento de novas aplicações para o diagnóstico e terapêutica.
Uma palavra também para a indústria. Há muito que se defende que Portugal deve aumentar as suas competências em termos de bens e serviços da área da saúde. Para tal deve acelerar a atração de Investimento Direto Estrangeiro (da indústria farmacêutica, dos dispositivos médicos, dos equipamentos) ao mesmo tempo que deveria reforçar a sua posição nos ensaios clínicos e no envolvimento dos centros de investigação portugueses. Acresce que esta crise trouxe à tona o melhor do empreendedorismo português: desde o envolvimento de várias universidades e centros tecnológicos no desenvolvimento de ventiladores atá à reconversão de empresas do setor têxtil, dos plásticos e da metalomecânica para produzirem fatos, máscaras, viseiras, etc; e até desenvolvendo equipamentos inovadores como “câmaras de entubamento em ambiente de UCI”.
O papel da Europa
A crise pandémica pôs também a nu algumas fragilidades da União Europeia em termos de Saúde. Todos sabemos que, pelos Tratados, a Saúde é uma competência dos Estados Membros mas num momento que afeta a todos (uma crise simétrica, como se diz) é difícil de explicar que não haja capacidade de articulação, que as pessoas sintam que, salvo honrosas exceções, não se percebe o estatuto de cidadania europeia e que, pior do que tudo, até parece ter havido uma competição para aquisição de equipamentos de proteção individual (EPI) etc.
Também na Europa haverá discussões mais circunstanciais e outras mais estruturais, sendo que as primeiras não são de somenos importância.
A Comissão Europeia já se mobilizou para apoiar o financiamento das despesas de combate à COVID-19 e também evoluiu para a aquisição centralizada de ventiladores e de EPI. Acredito que as lições deste período levem a:
• Identificar os pontos em que a Europa poderia reforçar sua ação (saúde pública, gestão de stoks estratégicos de medicamentos e EPIs, possíveis compras conjuntas, fortalecimento da capacidade europeia em termos de equipamentos médicos, etc.)
• Sem pôr em causa o princípio de que os Estados-Membros têm competência específica e predominante em termos de definição de sistemas de saúde, considerar a saúde como uma prioridade da UE e, como tal, refletir sobre algumas regras básicas para que todos os cidadãos europeus tenham acesso a saúde e inovação na saúde e garantir um funcionamento harmonioso e adequado dos sistemas de saúde.
Tal como aconteceu com o Recovery Act do Presidente Obama, entendo que o Plano de Recuperação da Europa assuma a saúde seja um dos pilares de desenvolvimento, pelo seu valor intrínseco e pela enorme potencial de alavancagem da atividade económica. Neste plano europeu não precisamos apenas construir estradas ou pontes. Precisamos de investir em infra-estrutura digital, em soluções sustentáveis, precisamos investir em saúde antes do próximo vírus, precisamos de investir em tecnologia. Precisamos de:
- Europa na liderança tecnológica
- Europa que reassuma a reindustrialização inteligente
- Europa que não dependa de terceiros em relação a produtos vitais (como ventiladores e outros, etc.)
- Europa que invista mais em saúde
Conclusões
Ensina Michael Porter que o desafio da saúde é gerar valor e sabemos também dos manuais que tal exige estratégia, investimento, recursos humanos, gestão e liderança. Estamos num momento histórico em que é óbvio para todos não apenas o valor da saúde, mas também o das atividades em Saúde. Em Portugal e na Europa, não falhar este momento histórico é investir em saúde, prepararmo-nos de forma determinada, envolver os cidadãos, reforçar as interconexões com os centros de investigação, aproveitar o empreendedorismo, procurar a eficiência e ser transparente nas opções que se tomam. Todos somos precisos. Todos estamos empenhados em mais e melhor saúde.
Artigo de opinião publicado no âmbito da edição da EXAME de maio de 2020.