Em nenhuma economia como nos Estados Unidos, a crise económica provocada pelo coronavírus está a ser tão visível no mercado de trabalho. Em quatro semanas, 22 milhões de americanos candidataram-se a subsídio de desemprego. É a mais rápida destruição de postos de trabalho de que há registo. Em poucos dias, um pouco por todo o país, as filas para os bancos alimentares passaram a ser medidas em quilómetros.
Cada semana que passa, as previsões de Miguel Faria e Castro tornam-se mais prováveis. Os 32% de taxa de desemprego estimados pelo economista da Reserva Federal de St. Louis ultrapassariam, por muito, os 25% atingidos durante a Grande Depressão. Embora tenha sempre sublinhado que se tratava de um “pior cenário” e que eram contas preliminares, a verdade é que, a continuar este ritmo, essa pode ser a realidade norte-americana ainda antes do Verão.
Em resposta por email às perguntas da EXAME, Faria e Castro ajuda-nos a perceber melhor como devemos interpretar os números impressionantes que nos vão chegando dos EUA. As respostas foram utilizadas num artigo sobre mercado de trabalho e são aqui publicadas em formato pergunta e resposta.
Os cálculos que fez sugerem um impacto inédito no mercado de trabalho dos EUA. Isso significa que esta crise será mais dolorosa do que a anterior ou a sua natureza é tão diferente que pode não ser necessariamente assim?
Penso que é difícil dizer se vai ser mais ou menos dolorosa para já, pois vai depender muito da sua duração. Em crises anteriores, o “choque” fundamental eram problemas graves num determinado sector da economia (financeiro e imobiliário no caso de 2008). Isto quer dizer que não poderia haver recuperação até esse sector ser “reparado”. Neste caso, o problema fundamental não tem nada a ver com a economia. É um choque que envolve uma desaceleração ou “paragem” controlada da economia e que, dependendo da sua duração, poderá ter consequências mais ou menos permanentes na sua estrutura. Se esta for uma paragem rápida, esperemos que a maioria das empresas e das relações empresa-trabalhador nos sectores mais afectados sobrevivam. Nesse caso, podemos ter uma recuperação bastante rápida (em “V”), onde a economia simplesmente “reabre” e todos regressamos ao trabalho como dantes. Caso a duração seja mais longa, muitas dessas empresas e postos de trabalho poderão desaparecer, e a recuperação terá de ser mais lenta e dolorosa. Um problema importante é que, durante a “paragem” da economia, muitas famílias e trabalhadores poderão estar sem rendimentos (devido a layoff ou despedimento). É aqui que a segurança social e a política orçamental podem desempenhar um papel muito importante para aliviar a dor causada pela paragem.
A rede de protecção social norte-americana está preparada para lidar com um fluxo tão forte de gente a entrar de repente no desemprego?
Não, e esse tem sido um problema grande nestas últimas semanas. Há aqui dois problemas. Temos um número sem precedente de pessoas que pediu subsídio de desemprego. Os subsídios de desemprego nos EUA são administrados ao nível dos diferentes estados, e o nível de recursos que é alocado a estes sistemas varia imenso de estado para estado. Logo, são mais generosos nuns e menos noutros (entre $200 a $700 semanais). Mas praticamente nenhum estado tinha os sistemas preparados para tanta gente. Outro problema grande tem a ver com o sistema de seguros de saúde nos EUA. O seguro de saúde encontra-se tipicamente associado ao posto de trabalho. Logo, um desempregado não tem acesso a seguro de saúde. Há opções, mas são incrivelmente caras (pode chegar a $1300/mês). Isto é uma grande fragilidade do sistema, principalmente numa situação em que o principal problema é de saúde pública.
O seguro de saúde encontra-se tipicamente associado ao posto de trabalho. Isto é uma grande fragilidade do sistema, principalmente numa situação em que o principal problema é de saúde pública.
Miguel faria e castro
As medidas anunciadas pela Administração Trump parecem ter uma abrangência mais ambiciosa do que outras iniciativas anteriores (dinheiro para toda a gente, mesmo quem não pague impostos). Parece-lhe que há tabus de política económica a serem quebrados?
Sim e não. Por um lado, este é um tipo de choque inédito e muito diferente do que se passou em 2008 ou em 1929. Por essa razão, é normal que as respostas em termos de política orçamental ou monetária sejam também inéditas. A dimensão menos convencional do pacote orçamental é, essencialmente, o seu tamanho (2 bilioes de dólares). Em termos de políticas propriamente ditas, as que chamam mais a atenção foram, de uma forma ou outra, também implementadas em resposta a crise de 2008: transferências diretas às famílias (a principal diferença aqui é que, em 2008, era um reembolso extra a quem paga impostos e, desta vez, serão mais incondicionais); e aumentos de generosidade do subsídio de desemprego. A parte menos convencional do pacote serão as medidas de apoio a pequenas empresas. Também houve algumas políticas deste género em 2008, mas de muito menor dimensão.
Uma taxa de desemprego de 32% pode ser assustadora, mas o mercado de trabalho americano não é comparável ao europeu, certo? Porquê?
O mercado de trabalho norte-americano é, para o bem e para o mal, muito mais dinâmico do que o europeu. Em circunstâncias normais, os EUA tendem a ter menos desemprego, mas muito mais fluxos brutos de emprego para desemprego e vice-versa. Apesar de haver um declínio secular neste aspecto, é também uma economia onde há muito maior criação e destruição de empresas e postos de trabalho. Devido a estes dois fatores, há a noção de que uma “paragem” curta da economia americana pode propiciar uma retoma muito rápida. Isto é, durante a paragem, as empresas despedem muitas pessoas, o que permite que essas empresas sobrevivam a paragem. Quando a economia reabrir, essas empresas simplesmente voltam a contratar os antigos empregados. Em sistemas mais rígidos, é mais complicado para as empresas conseguirem manter uma relação com trabalhadores sem lhes pagar. Daí que na Europa a flexibilização do layoff e os programas de ajuda a empresas sejam o principal foco de discussão de política económica de resposta a este choque. Nos EUA, por outro lado, que são uma economia mais dinâmica mas com uma rede de proteção social mais pobre, o foco é mais em programas de apoio e transferências às famílias.
Para um mercado de trabalho mais rígido, como o português, a subida do desemprego pode ser menor, mas demorar mais tempo a recuperar?
Numa economia menos dinâmica, há menor criação de postos de trabalho (ou mais lenta). Logo, há um motivo adicional para apoiar empresas existentes, para impedir que esses postos se extingam. Outra questão que eu quero realçar é que existe muito capital humano que é criado numa relação entre empresa e trabalhador, e esse capital desaparece quando o trabalhador é despedido permanentemente ou a empresa vai à falência. O desaparecimento desse capital tem consequências de longo-prazo para os trabalhadores e para a economia.