Nazaré da Costa Cabral faz um ano à frente do Conselho das Finanças Públicas e a EXAME quis entrevistá-la nesse contexto para a edição de abril da revista. Entretanto, a epidemia coronavírus explodiu e grande parte do debate económico em Portugal foi virado do avesso. A EXAME e o CFP marcaram uma segunda entrevista exclusivamente para debater a Covid-19, numa altura em que o conselho já estava a funcionar 100% em teletrabalho e já tinha sido obrigado a cancelar uma publicação, devido ao ambiente de incerteza acerca da evolução do vírus e da resposta de governos e instituições. “Os acontecimentos ocorrem a uma velocidade tal que nós não os conseguimos capturar completamente”, justificou à EXAME.
Nesta entrevista, diz temer que Portugal veja a sua dívida pública disparar e que acabe empurrado para outro ciclo de austeridade. Nesse sentido, refere a necessidade de encontrar soluções “fora da caixa” a nível europeu, como é o caso das “corona bonds”. Entretanto, assinou com dois outros membros do Conselho Superior do CFP um artigo de opinião no Jornal de Negócios, onde defende a necessidade de a União Europeia avançar essa solução. A conversa seguinte ocorreu na tarde de 19 de março, por telefone. A versão completa deste trabalho estará disponível na revista EXAME de abril.
Mesmo não quantificando, que impacto podemos esperar que o coronavírus venha a ter na economia?
Muito do que vai suceder vai depender de quanto tempo este surto vai durar e como ele irá afectar, não só Portugal, mas outras economias com as quais nos relacionamos. Mas por ora podemos dizer que as indicações não são boas. O grande problema social será o desemprego, mas há outra preocupação maior: o longo prazo. Esta crise poderá afetar o potencial de crescimento da economia portuguesa. Ao contrário das verdadeiras guerras, esta não implica a destruição de capital fixo, nem é tão letal para as camadas jovens, que compõem grande parte da população ativa. Ainda assim, pode ter um efeito no potencial de crescimento.
Como?
Ao afetar simultaneamente o lado da procura e da oferta, pode levar ao desaparecimento de empresas viáveis e à descapitalização de outras tantas. Poderá minar de forma significativa a capacidade de produção da economia.
Deixará cicatrizes?
Sim. Temos um desafio importante: procurar manter, por pequena que seja, a atividade em vários setores, para que essa capacidade produtiva não seja minada.
Que setores preocupam mais?
Obviamente, temos o caso do turismo. Ele vale 14% da procura e as exportações de turismo representaram 8,7% do PIB em 2019. Mas há outros: indústria, comércio, restauração e outros serviços. Por outro lado, estou muito preocupada com o setor financeiro, do qual temos falado pouco. Se voltarmos a ter uma espiral parecida com a de 2008, os bancos – mais do que problemas de liquidez – poderão ter problemas de capitalização, afetando a sua solvência. Como a união bancária não foi concluída, se houver esse problema, terão de ser os Estados a apoiar as suas instituições financeiras, um encargo para os contribuintes suportarem. O setor financeiro terá um papel muito importante, como se está a ver com as medidas anunciadas, mas temos de estar atentos para a evolução do próprio setor.
“Estou muito preocupada com o setor financeiro. Se voltarmos a ter uma espiral parecida com a de 2008, os bancos poderão ter problemas de capitalização”
Teme injeções públicas na banca?
Não temos um mecanismo único de resolução à escala europeia, um fundo único que apoie os bancos em situação de dificuldade, reestruturação ou resolução. Quando não temos bail-in – os bancos serem capazes de fazer o saneamento dos seus balanços -, tem de ser o bail-out. Ou seja, os contribuintes. Estou preocupada.
Quão preocupados devemos estar com o impacto nas contas públicas?
Temos de considerar não apenas os valores absolutos dos montantes para fazer face à crise, mas também o PIB. Neste momento, já há instituições europeias a dizer aos Estados que devem lançar mão de medidas de apoio ao SNS, mas também aos trabalhadores e às empresas.
Não é altura disso?
Claro. É uma necessidade absoluta. Os Estados estão a dar as respostas que se impõem. Mas a minha questão é: e depois? No caso português, vamos ter muito mais dívida pública. Isso pode ser muito dramático. O mercado da dívida já está a reagir, afetando as economias mais periféricas.
A decisão do BCE descansou?
Talvez no imediato. Veremos daqui para o futuro. Há essa indicação de que as regras orçamentais vão ser relaxadas e nós concordamos que tem de ser assim. É uma exigência. Mas, quando isto passar, teremos países com uma dívida pública muito mais elevada, que terão de cumprir esforços de redução da dívida e, se calhar, serem sujeitos a processos de consolidação orçamental que economias saídas de uma recessão não teriam condições de suportar. Não podemos resolver isto apenas a nível nacional. Temos de ter uma ação coordenada e um quadro claro de regras que enquadrem esta situação não apenas no curto prazo. Se a situação se agudizar, a Europa tem de procurar respostas heterodoxas, até porque esta não é uma crise finanças públicas. Surge de um fator anómalo, portanto não há um risco moral.
E que medidas?
Há duas frentes: a monetária e a orçamental. Na frente monetária, a medida do BCE de aquisição de ativos de emergência é uma boa iniciativa. Veremos se é eficaz. Poderemos ter de avançar com iniciativas novas, ainda mais fora daquilo que é o quadro habitual da política monetária, com os condicionalismos até legais que ela tem. Do ponto de vista orçamental, tem-se falado muito da criação de um fundo que realizasse despesa directa e indirecta relacionada com o Covid-19, com a possibilidade de abrir o financiamento deste fundo à emissão de eurobonds ou “coronabonds”. Seria uma iniciativa fora da caixa.
O CFP veria com bons olhos esse tipo de medidas?
A nossa grande preocupação é que o país se veja com uma dívida pública elevadíssima, que não terá condições [de suportar], a menos que entre numa espiral de austeridade ainda mais difícil do que aquela que tivemos de suportar durante a assistência financeira.
“A nossa grande preocupação é que o país se veja com uma dívida pública elevadíssima, que não terá condições [de suportar], a menos que entre numa espiral de austeridade ainda mais difícil do que aquela que tivemos de suportar”
O governo português não deve agir de maneira unilateral sem respaldo europeu?
Parece-me evidente. Essa coordenação deve existir. Nesta altura, a solidariedade entre os países europeus não pode ficar em casa. É uma crise que atinge a Europa no seu todo.
Seria sustentável dizer aos portugueses que, depois de anos de austeridade, teríamos de voltar a fazer um ajustamento que poderá até ser mais duro?
Não queria ver as coisas desse ponto, mas seria um processo muitíssimo doloroso e não sei se o País, se a sociedade teria condições para o suportar.
Podemos estar perante uma crise de efeitos semelhantes ou superiores à de 2008?
Infelizmente, essa hipótese não está excluída, considerando a informação que existe e que não tem sido optimista. Admito que os efeitos possam ser mais corrosivos, mas temos de esperar para ver.